2ª Mostra (in)dependente sugere um outro estado através da dança

A “revolução” que se constroi na trajetória de Sandro Borelli nasce nos becos das ruas e não no gabinete. Desde que condensou a sua linguagem independente, com a criação do grupo F.A.R 15, em 1997, Sandro vem construindo ferramentas para a sua “guerrilha silenciosa”. A mais recente delas é a realização da 2ª Mostra (in)dependente de dança?, realizada em agosto em São Paulo. O que começou no ano passado em parceria com o Teatro de Paisagem, este ano ganhou força com a criação do Kasulo Espaço de Cultura e Arte, um antigo prédio na Barra Funda transformado em espaço para ensaios da Cia. Borelli de Dança e para apresentação de espetáculos. A iniciativa de Sandro soma-se a outras, como a da Cia. Corpos Nômades, que no ano passado iniciou a mostra D(r)amas da Meia-Noite na sua sede, e do Estúdio Nave, que promove o Teorema, também no seu espaço.

A mostra abriu com Estado Independente, nova coreografia de Sandro Borelli, inspirada no legado de Che Guevara. Com o palco inundado por uma escuridão ainda mais densa, Sandro invoca mais uma vez a metáfora da metamorfose tão cara à sua pesquisa artística e adiciona a ela elementos de uma guerrilha poetizada. Obstinados e até certo ponto reprimidos ao nível do chão, os bailarinos buscam pontos de apoio inventivos com o objetivo de transmitir algo que é a própria mensagem de Sandro: protagonizar, num futuro absoluto, uma rebelião anárquica e libertina contra os mecanismos de poder. O coreógrafo faz uso de duetos que se desprendem com naturalidade da espécie de coro sempre presente no palco – como se Sandro quisesse reforçar a necessidade da coletividade na arte. Os movimentos secos, rasteiros, cautelosos e de certa forma cíclicos anunciam a tensão para algo ainda não acontecido, para um futuro ainda não conquistado.

Mas é justamente nesse “campo minado” que Sandro encontra as chaves de um entendimento artístico revolucionário que chega a um ponto culminante em Estado Independente. É este terreno “acidentado” que o faz igualmente “engravidar corpos”, mesmo que estes sejam masculinos, como no dueto final de Roberto Alencar e Vanessa Macedo. Talvez por isso Borelli tenha optado por um ambiente escuro, com apenas um lampião a costurar as cenas. Para que os espectadores forcem também a própria visão no cenário ermo e obscuro em que se encontra a dança independente hoje. Para onde caminha a dança (e a arte como um todo)? Como deixar de ser refém de editais e formatos privados? Como tornar-se um artista empreendedor e, no limite, guerrilheiro?

A resposta de Sandro parece residir no outro, nas diversas possibilidades de apoio no outro para que em conjunto seja criada uma rede menos entregue às artimanhas do capitalismo. Foi por isso que Sandro convidou artistas igualmente instigados como Mariana Muniz, Jorge Garcia e Gilsamara Moura. Mariana Muniz apresentou Speranza, Dona Esperança, inspirado na personagem criada por Ruth Rachou e José Possi Neto para o espetáculo Sonho de Valsa, de 1979. Mariana mostra toda a sua densidade cênica ao narrar a solidão de uma mulher atada à pobreza de sua rotina como lavadeira. A intérprete utiliza-se de elementos como um balde, uma cama, uma mesa e sobretudo a iluminação e a trilha sonora para compor o universo onírico da personagem. Em momentos de extrema poesia e expressividade corporal, Mariana mostra sua habilidade em provocar uma postura outra voltada para os processos intuitivos, menos racionais, da admiração e da beleza.

Estado independente / Foto divulgação

Estado independente / Foto divulgação

A J.Gar.Cia apresentou Cabeça de Orfeu, espetáculo criado a partir de um trabalho inspirado no mito de Orfeu feito em 2007 no departamento de dança-teatro da escola de artes de Amsterdam Theaterschool. Como você imagina a sua morte? O que seria do corpo sem a cabeça? A partir de respostas a perguntas como estas foram sendo criadas as cenas do espetáculo, montadas como pequenos esquetes que se sobrepõem umas às outras. A ideia do dissecamento e, no limite, a do retalhamento, aparecem em momentos particularmente inspirados do espetáculo. É o caso do dueto inicial com Natália Mendonça, da leitura do texto sobre uma dissecação feita por Alexandre Magno, e dos closes fotográficos feitos em cena, enquanto os bailarinos passam uma rolha de boca em boca – a máquina como um instrumento de análise do corpo, aproximando-se aí da experiência erótica da morte. A televisão presente em cena durante todo o espetáculo parece ser a metáfora maior da cabeça decepada de Orfeu. O momento final em que ela é apagada condensa em si a mensagem do espetáculo. Como usar a morte para valorar a vida, torná-la menos brutal e, sobretudo, mais poética e humana. Nesse sentido, Jorge é muito bem-sucedido.

A mostra agregou grupos do interior de São Paulo, como o Grupo Gestus, de Araraquara, que apresentou o novo espetáculo Sobre todos nós, criado a partir da experiência vivida com 16 crianças. O Grupo Pró-Posição, de Sorocaba, apresentou Linhagens, nova pesquisa de Andréia Nhur e de sua mãe Janice Vieira, que juntas propõem uma reflexão sobre historicidade da dança, e a Cia. Fragmento de Dança, que apresentou Versos da última estação.

Além dos espetáculos, a 2ª Mostra (in)dependente de dança? contou com três debates: A Crítica nas Artes Cênicas, A Dança na Universidade Privada e Videodança: Escolha Estética ou Modo de Sobrevivência?. Houve também o lançamento do livro Sonhos Intranquilos, escrito por Mauro Fernandes, para celebrar os 12 anos de existência da Cia. Borelli de Dança.

Assista ao vídeo e veja o que dizem Sandro Borelli, Jorge Garcia e Andréia Nhur sobre os espetáculos apresentados na mostra:

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Edição: Deborah Rocha Câmera: Rodrigo Moraes

Deborah Rocha é jornalista e dançarina de Dança Clássica Odissi.