PIRACEMA / Foto: Sammi Landweer

7 x 7 – Piracema, de Lia Rodrigues Companhia de Danças

O 7×7 é um projeto de diálogos entre artistas sobre trabalhos artísticos. Este projeto nasceu na segunda edição do Festival Contemporâneo de Dança (SP/2009) e em 2011, além do festival de SP, cobriu os Festival Panorama (RJ), Olhares sobre o Corpo (Uberlândia), FID (BH), Panorama Sesi (SP),  Festival Contemporâneo de Dança (SP),  entre outros dialogando com cinco eventos de dança do Brasil e produzindo em torno de 100 críticas artísticas. Cada um desses eventos é encabeçado por um crítico-artista do 7×7: Sheila Ribeiro (conceitualizadora), Arthur Moreau, Sidney Padilha, Rodrigo Monteiro dos Santos e Bruno Freire, respectivamente e tem como designer colaboradora Caroline Moraes. O idança, nosso parceiro desde sempre, publica sete de nossas críticas. Para ver todas as críticas: http://projeto7x7.wordpress.com.

No quarto texto desta edição da série, Wagner Schwartz analisa Piracema, trabalho da Lia Rodrigues Companhia de Danças, que estreou no 104 Centquatre, Paris, no fim de 2011.

(Foto: Sammi Landweer)

11 VEZES, PIRACEMA

Como falar sobre uma peça de Lia Rodrigues? Essa foi minha primeira dúvida após de ter sido convidado para escrever sobre Piracema. Sinto um certo receio porque vivo longe das favelas do Rio de Janeiro, onde a companhia trabalha. Acredito que a favela da Maré seja uma importante fonte de inspiração na construção das obras coreográficas desenvolvidas por Lia e pelos 11 dançarinos: Amália Lima, Ana Paula Kamozaki, Jamil Cardoso, Leonardo Nunes, Lidia Larangeira, Thais Galliac, Calixto Neto, Gabriele Fonseca, Francisco Cavalcante, Paula de Paula, Bruna Thimóteo. Nesse caso, permito-me escrever enquanto membro de um público que observa a evolução de um tema distante de sua realidade e, potencialmente, próxima daquela que se inscreve ao seu redor.

O Brasil é o maior país da América do Sul e o quinto maior do mundo em área territorial, além de ser uma das nações mais multiculturais e etnicamente diversas do planeta, resultado da forte imigração vinda de muitos países. Na verdade, são mais de 192 milhões de habitantes em um território em que pululam culturas, religiões, classes sociais distintas, expressões idiomáticas diferentes, tornando impossível falar sobre identidade brasileira ou ainda, embevecer-se de confiabilidade social com a frase: “aqui nós pensamos desse ou daquele modo.”

Acompanhando a evolução desse pensamento, esse texto foi escrito por uma pessoa que experiencia de longe e de perto todas as implicações da miscigenação, a começar por seu próprio nome, Wagner Miranda Schwartz, que só poderia existir em um país sem “nós”. Nesse ambiente surge, também, Piracema.

Em sua definição mais simples, piracema é o movimento dos cardumes que nadam rio acima, contra a correnteza, para realizar a desova no período de reprodução. De acordo com Lia, Piracema é uma peça feita para 11 dançarinos. Acredito que essa seja uma peça para ser vista 11 vezes, uma vez que se apresentam em cena 11 pessoas, 11 espaços vivos, 11 acontecimentos autônomos, saltando aos olhos 11 narrativas, cada qual singular – 11 heterônimos de peixe.

Pensando na estética das favelas, é possível ver o argumento coreográfico sendo emancipado em acordo com a lógica da arquitetura vernacular em confronto com a rigidez da arquitetura erudita, que evita a espetacularização e se funde aos imperativos da vida quotidiana. E, como nas favelas não existem sobras, a dança que surge nas margens desse espaço utiliza todos os recursos disponíveis, todo material é valorizado e está potencialmente vivo. Nesse lugar não existe uma força homogeneizadora, mas uma lógica de criação complexa e auto-organizativa.

Do início ao fim da peça, fui levado a acompanhar o deslocamento de um grupo que se gesticulou, cantou, respirou, produzindo sons advindos do cansaço e do esforço físico. As ações individuais, no entanto, não se chocaram com as do coletivo porque, segundo Lia, “Piracema se articula à ideia da vida coletiva, do viver junto”.

Em seu percurso coreográfico e de cidadania, Lia reforça que “essa questão se tornou essencial”, talvez porque não seja possível separar o artista de seu entorno; ou ainda, falar do ambiente em que ele viva seja uma expressão involuntária e reflexiva; e, talvez porque não seja necessário ir tão longe para se contarem histórias.

A peça, revisitando o conceito de “viver em conjunto”, criado por Roland Barthes, inscreve um espaço de narração individual específica. Piracema é um manifesto contra a uniformização. Em cena, quando o espaço é preenchido pelos dançarinos, pode-se até mesmo existir uma relação de conjunto mais visível nos momentos destinados ao “período de desova”, mas, nesse alinhamento, cada qual possui uma trajetória única.

Uma dica para o público internacional, Piracema não é um cartão postal. Não se pode chegar perto do Brasil idealizado assistindo a peça. Mas é possível se sensibilizar com um trabalho que foi criado em uma pequena parte desse país vasto e cheio de ondas. O que está à vista, não é uma lembrança, mas a transcriação de uma paisagem artística.

E, assim, se apresentam todos os aparatos técnicos que se justapõem à criação coreográfica. A iluminação cria um ambiente que não para de ser construído, como uma resposta ao impossível controle do movimento do cardume. A música é feita pelo som que sai dos corpos dos dançarinos: cantos, respirações, gemidos, declarações ininteligíveis. A sonoridade é sempre muito íntima e tem a dimensão de 11 experiências.

Nara Leão, a voz mais frágil da música brasileira, surge ao final do percurso coreográfico com certa timidez, para desacelerar o ritmo final da desova. “Wave”, de Tom Jobim, embala o repouso dos peixes-performers após a reprodução. A Bossa Nova foi associada ao crescimento urbano brasileiro, e Piracema se funde ao fluxo dessa evolução com espontaneidade e comprometimento.

Wagner Schwartz é coreógrafo, performer, linguista  e explora os efeitos da migração em suas performances.