Receitas e Dúvidas / Foto: Leco de Souza

7 x 7 – Receitas e Dúvidas, de Gustavo Bitencourt, Sheila Ribeiro e Wagner Schwartz

O 7×7 é um projeto de diálogos entre artistas sobre trabalhos artísticos. Este projeto nasceu na segunda edição do Festival Contemporâneo de Dança (SP/2009) e em 2011, além do festival de SP, cobriu os Festival Panorama (RJ), Olhares sobre o Corpo (Uberlândia), FID (BH), Panorama Sesi (SP) e Festival Contemporâneo de Dança (SP), dialogando com cinco eventos de dança do Brasil e produzindo em torno de 100 críticas artísticas.
Cada um desses eventos é encabeçado por um crítico-artista do 7×7: Sheila Ribeiro (conceitualizadora), Arthur Moreau, Sidney Padilha, Rodrigo Monteiro dos Santos e Bruno Freire, respectivamente e tem como designer colaboradora Caroline Moraes. O idança, nosso parceiro desde sempre, publica sete de nossas críticas. Para ver todas as críticas: http://projeto7x7.wordpress.com.

No sexto texto desta edição da série, Cinthia Kunifas escreve sobre Receitas e Dúvidas, trabalho de Gustavo Bitencourt, Sheila Ribeiro e Wagner Schwartz, apresentado em, junho, no Teatro José Maria Santos, em Curitiba.

Hoje eu fui assistir “Receitas e Dúvidas, uma peça sem luto dedicada aos mortos…” E, talvez, por ser dedicada aos mortos, eu presenciei a vida (a minha vida, através da vida de outros). Saí de lá com a alma lavada, ou melhor dizendo, com o corpo lavado, todo lavado – músculos, pensamentos, emoções, sangue, lágrimas, pele… Quando fui ao camarim cumprimentar os artistas, encontrei pessoas (é claro!). Mas tive receio de não encontrar… tive receio de encontrar “egos de artistas”… talvez, o maior receio não fosse o de encontrar pessoas desse ou daquele jeito, mas o de simplesmente não conseguir ENCONTRAR. Hoje, no teatro, na platéia e depois nos bastidores, tive encontros, desses que não é um que procura o outro nem só o outro quem procura o um, mas é quando ambos se encontram, simples assim. Não tão simples talvez, pois não foi à toa que vocês vieram para cá, não é à toa que vocês seguem fazendo arte e também não foi à toa que saí da minha casa, num domingo a noite, deixando minha prole e marido assim assim… com um pouco de preguiça, mas sabendo que iria me arrepender se não fosse… afinal, não foi tão simples assim. Mas foi a “simplicidade” do trabalho e seus vazios plenos de espaço para a gente poder ser (para o público poder SER e não apenas os artistas), espaços cheios de significado, sentido, simplesmente cheios de espaço. Ai que bom!!! ESPAÇO!!!! Foi esta “simplicidade” que me tocou profundamente, me emocionou, me aquietou os pensamentos, sempre analíticos quando vou ver dança ou teatro. “Simplicidade” está entre aspas pois é claro que se trata de um simples que emerge como síntese de vidas inteiras de trabalho, vidas vividas nas suas “escolhas cotidianas” (RIBEIRO, 1º. jul. 2012). Depois de conversar com Wagner e Sheila, ficou claro porque vi aqueles corpos em cena, e não outros …

Hoje, no teatro, eu vi pessoas “falando com as próprias palavras” (ouvi isso na semana passada, de Christine Greiner, ao citar uma poetisa). Eu sei o que não quero mais ver na dança, nem em parte alguma… falas sem sujeitos, falas sem corpo próprio! E pensei nos meus colegas de trabalho aqui em Curitiba, nos meus amigos parceiros que tornam a vida na dança em Curitiba possível, que me fazem acreditar e querer continuar sem pestanejar.

Para tentar falar um pouquinho da cena, é muito bom ver corpos cênicos que não re-presentam o que fazem, porque “simplesmente”, o fazem. Sem excessos, sem sobras, com tudo o que é necessário. As escolhas de vida, as coisas que o corpo faz / pensa aparecem como um discurso claro do artista e parece que não importa o que ele faça, seu discurso estará sempre lá. Mas importa o que se faz, é claro. gostei das imagens, daquilo que normalmente é só adereço ou efeito especial e que, normalmente, nem é para aparecer em cena, mas aparece, muitas vezes, mais do que a própria cena (o som do salto do sapato da dançarina ao sair de cena e que continua fora / dentro da cena; o descer e o subir do telão e o som da máquina que o faz, desengonçadamente; a fumaçinha que dança no espaço e é tão legal de ver, mas nunca temos a chance porque sempre tem tanta coisa acontecendo junto…!; os passos da dança a dois que parecia um tango em 3 (?) e porque não se transforma em nada do que se espera, transforma-se em tantas outras coisas. Muito obrigada!).

Gostei de ver o não-rosto, as pernas, os tacos dos sapatos, a barriga do Gustavo (pensamentos suaves que passavam pelo teatro, cinema, drama, dança e nenhum deles ao mesmo tempo); o corpo vestido (vestido adjetivo e vestido substantivo) da Sheila. Será que é por causa da moda? (tenho o hábito de querer encontrar a causa das coisas). Corpo displicente de bailarina.

Displicente porque vai na contramão daquele da bailarina “disciplinada”. Acho que não agüento mais ver corpos “disciplinados” (e não que eu não seja um… talvez por isso mesmo!)

Um corpo menos que é mais.

O Wagner quando cantou lindamente e dançou com os braços e ombros e com a coluna vertebral…! pensei na minha amiga Gladis e nas palavras que brotam de seu corpo quando dança. Acho que naquela coluna vertebral e nos ombros e braços enxerguei toda a história da dança, aquela que conheço, pelo menos. Mas uma história atualizada, cheia de conquistas e perdas (como mencionou a Sheila no camarim), plena de ESCOLHAS. Nunca dançamos as perdas, nem queremos falar delas e parece que quando o fazemos sempre temos que preenchê-las. Nunca o vazio!!!! Não temos nem mais um espacinho em branco, nem ao menos uma frestinha nessa nossa vida louca e destrambelhada. “Frenética” acho que é a palavra que usa André Lepecki.

O canto e a dança do Wagner emocionaram-me profundamente. Fiquei me achando uma tola, sentimental… viajei embalada como me deixo embalar pelas baladinhas do rádio que adoro ouvir, especialmente para curtir nostalgia de adolescência. E, ao mesmo tempo, aquele corpo que cantava não era o corpo do cantor do rádio, mas o corpo do dançarino que viajava por ossos, músculos, pele, fluxos como se estivesse dando uma volta ao mundo. Parece exagero, eu sei! Mas não é. É que não sou boa com palavras assim como posso ser “sentindo”, e sou judia, por isso, “naturalmente” muito exagerada.

Algo que me desconcertou muito e sempre me desconcerta na arte é quando presencio limites tênues entre o trabalho sério e a bobagem, um posicionamento político e o simples deboche.

Sei que a “bobagem” pode ser tão seriamente colocada como qualquer outra coisa e que o deboche pode ser em si, um posicionamento político. Ainda não sei formular bem, parece uma discussão ética e política, mais do que estética… Neste trabalho havia uma poesia em toda graça e ironia e um corpo que falava com as próprias palavras. Isso me fez muito bem.

Cinthia Kunifas é dançarina, pesquisadora e docente; há dez anos investiga o micromovimento.