Cavalo, de Michelle Moura

7×7 – Cavalo, de Michelle Moura

O 7×7 é um projeto de diálogos entre artistas sobre trabalhos artísticos. Este projeto nasceu na segunda edição do Festival Contemporâneo de Dança (SP/2009) e em 2011, além do festival de SP, cobrirá os Panorama de Dança (RJ), Olhares sobre o Corpo (Uberlândia), FID (BH), Panorama Sesi (SP) e Festival Contemporâneo de Dança (SP), dialogando com cinco eventos de dança do Brasil e produzindo em torno de 100 críticas artísticas. Cada um desses eventos é encabeçado por um crítico-artista do 7×7: Sheila Ribeiro (conceitualizadora), Arthur Moreau, Sidney Padilha, Rodrigo Monteiro dos Santos e Bruno Freire, respectivamente e tem como designer colaboradora Caroline Moraes. O idança, nosso parceiro desde sempre, publica sete de nossas críticas. Para ver todas as críticas: http://projeto7x7.wordpress.com.

O segundo trabalho analisado nesta edição da série é Cavalo, de Michelle Moura, apresentado no FID e no Festival Contemporâneo de Dança. Desta vez, são dois olhares diferentes sobre a mesma peça. Bruno Levorin e Daniel Kairoz escrevem suas reflexões.

 

O que não

existe

só uma vez e       

dura mais que um

instante?*

 

Por: Bruno Levorin

 

Trata-se da metamorfose de uma criatura. Ela acaba de desembarcar em um lugar totalmente diferente daquele que esperava chegar. Nada nem ninguém a reconhece. Sua língua não aparece naquele tempo. Comunicar parece impossível. Tudo é ansiosa informação. Nesta região, apesar da primeira impressão solitária da linguagem e da auto-suficiência e onipotência dos que cavalgam, os olhares não contemplam a distância. Próximo é arranha-céu. O horizonte tornou-se ficção.

Estranhamente, o circulo cromático do tempo retêm outras cores. Veloz como um relógio de corrida, o “branco-teórico” não é resultante da dinâmica circular. Cinza.  Cronologicamente acinzentado. Assim, as coisas aparecem para a criatura em pequenas tramas reticulares de medo e vigilância.

Diante de tal situação, uma crise movimenta. Um diálogo interno se inicia.

Já que o outro não o atravessa e nem mesmo é possível considerar o outro responsável por todo impedimento, afinal não existe sequer um interlocutor com quem possa compartilhar a sua angústia, por que não amplificar o que é comum?  Entretanto, o que é comum em tal estado? Talvez a respiração, o som dos seus ouvidos, a torção do seu corpo, a ponta dos seus dedos? Fabricar um modo de ser amplificado por uma tecnologia que desperta regiões sensoriais. Desenhar uma coreografia que exterioriza tais regiões, possibilitando para si e para o outro uma clareza maior do movimento das hierarquias existenciais.

Durante um momento de instabilidade, o que prevalece? Quais mecanismos de auto-organização estão sendo sensibilizados nesta criatura que distorce o sentido de realidade, definido pelo filósofo francês Gabriel Tarde como o que existe só uma vez e  dura só um instante.

Um estrangeiro. Um cavalo. Uma transformação ontológica do humano.

Michelle Moura, intérprete, criadora em dança e integrante do Couve-Flor Mini comunidade Artística Mundial, em seu novo trabalho intitulado “Cavalo”, desperta e distorce essas regiões sensoriais. Com a colaboração do músico Rodrigo Lemos, que alonga o seu corpo sonoro, Michele experimenta outros modos de ser. Na imersão de um ritmo respiratório, a bailarina caminha para uma consciência onde o verbo se descaracteriza em onomatopeias.

A caixa preta é recortada por uma imaginação ativa, por um universo onírico onde a possibilidade de travessia por outras condições do humano são instauradas. Em cena, não existe apenas uma situação vigente. Moura é uma máquina que produz outros planos de existências. Produz conflitos, desejos, transforma o tempo em alucinação. É como se fosse possível ao Cavalo desmantelar o seu padrão de conduta e navegar por uma aventura ontológica, por um tempo do sonho onde o volume da relação corpo/ambiente é acrescido.

Ele não está sozinho. Nesta fabricação alucinógena, cada existência que aparece, permanece. Mesmo quando a convivência se torna impossível entre os seus diferentes modos de ser, os conflitos não são descartados. É como se fosse possível ao Cavalo instituir outros estados, entretanto não fosse permitido a ele exclui-los. Ele está em constante convivência com o Outro sem se fixar a nenhuma forma emergida durante sua metamorfose.

Ao cavalo, as rédeas estão anuladas. Seus dedos são postiços.

Assim o animal torna-se estrangeiro em seu próprio modelo de conduta. Ele exige silêncio. Inicia um processo de falência, grande dobra, morte iniciática que de forma alguma pressupõem o fim de algo, mas a passagem para um primeiro e último modo de ser. Descobre-se uma criança que não abre mão dos seus medos, angústias e felicidades por um padrão social. Tudo que se passou até então, torna-se um ato total de vida para o desequilíbrio do mundo na criatura. Um ser sem cela e sem pelego que saliva a angústia e a dificuldade de desafiar a poderosa ideologia do corpo como suporte.

Uma criatura acaba de desembarcar em um lugar totalmente diferente daquele que esperava chegar.  O Lugar é uma Conurbação chamada existência.

 

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Sobre um Cavalo

Por: Daniel Kairoz

Escrever sobre uma dança. Escrever sobre um Cavalo. Eu escrevo para quem viu o Cavalo? Escrevo para quem não viu o Cavalo? Escrevo para alguém? Para o Cavalo? Para a Sheila Ribeiro que me convidou a escrever este texto, crítico, diga-se de passagem? É possível escrever sobre um Cavalo? Sobre uma dança?

Talvez,

, escrevendo sobre algo podemos acabar por encobrir este algo; o texto sobre a coisa, em cima da coisa. A coisa soterrada pelo texto.

, escrevendo sobre algo criamos uma dívida externa, uma dívida que jamais poderá ser quitada, tamanho juros que se acumulam a cada palavra. Toda a intenção do texto voltada para fora do texto, para um referencial externo jamais alcançável.

Sendo assim, poderia me retirar em direção ao silêncio e nada escrever. Com isso perderíamos este Cavalo no silêncio, ou pior, outro poderia matá-lo com palavras. É preciso escrever para deixar algo acontecer, mesmo que um Cavalo. É preciso escrever para dar ao Cavalo uma pervivencia (Fortleben). Este acontecimento-Cavalo me obrigou a escrever. Ele e suas evocações. Um apelo-chamado (Rufen) que me convoca a esta Tarefa-renúncia (Aufgabe) em ex(ek), crer, vê-lo.

Como realizar esta Tarefa sem que o texto se afunde em dívidas ou acabe por soterrar-se em palavras mortas e pesadas?

Há um Cavalo. Não posso falar nada sobre o Cavalo. Descrevê-lo é pouco, não diz do acontecimento que é, da cena-fulgor que instaura. Poderia ficar aqui descrevendo-o: “ele age assim”, “faz um som assim”, “se desloca assim”. O que isso diz? Pouco, quase nada. Nos usos instrumentais da linguagem, pretensos objetivos, cheios de intenção de comunicar algo, a linguagem se coloca como limite. Preciso partir do limite, partir da linguagem, para que algo aconteça, no caso, um Cavalo. Me distancio do Cavalo, dou um passo ao lado, saio do caminho para, quem sabe, dar passagem à ele. Para que ele se faça presensausência em texto. Neste texto. Inscrever a ausência do Cavalo. O que resta do Cavalo?

Posso dizer que ele me trouxe até aqui, sou sua metáfora. Sou a metáfora deste Cavalo. Ele é minha realidade. O Cavalo me move e eu movo o Cavalo.

As palavras parecem impedir que o Cavalo se aproxime, talvez seja preciso falar de outra coisa, como que distraidamente deixá-lo ganhar confiança. Deixar que venha até nós. As palavras podem ter este poder mágico.

A palavra antes de comunicar, diz(é).

 

A FIGURA – Cena Fulgor em Quatro Atos

I.

silêncio de luz

tempo verde

(insinuações ao porvir)

uma figura quase nada

evocando ante-

passados neste presente palco

arquitetura dorsal de uma convulsão

um corpo-palavra-sopro

Gnoise!

opera uma nova ideia de

uma nova opera

de corpos-ruídos

que gaguejam sentidos

o som é o espaço entre um tempo e outro

a figura é o teatro ruído

arquitetado numa língua-

viagem

incompreensível para quem quiser compreender

este discurso convulso

de quem engoliu o som e cagou dança

gestos precisos em sua gagueira

suas patas anunciam a loucura daquele

que agarrado em seu pescoço

teve seus últimos momentos de lucidez

em forma de dança

alucinada em sua rija estrutura

 

II.

esta figura vinda de Sírius

volta à terra para sua coroação

em cerimônia capriconírica

evoca o poema anterior à realidade

(esta figura é o prenúncio

de algo maior que ela)

se fazem presentes

espíritos de outros tempos

um lúcido-lucifer com um enorme falo de prata

um elegante e perturbado jovem

que engoliu o teatro

e teve seu corpo roubado por algum Deus ladrão

uma diva enlouquecida por sua sanidade

gritando verdades em sons inaudíveis

um ronin enfurecido que engoliu sua espada

que engoliu seu falo

que engoliu seu logos

um poeta filosonico

que confundiu-se com sua música

e atravessou o espelho de Orfeo

Evangellion!

uma legião de anjos caídos (Ícaros?)

que portam a Boa-Nova

todos presentes neste vácuo

que chamam teatro

para o fechamento da representação

 

III.

esta rainha

nua em sua realidade

tem uma fenda que divide sua barriga em duas

suas entranhas já não conhecem mais a intimidade do dentro

mínimalâmina rasgou seu ventre

de onde saem feixes de luz verde

dá à luz

uma geometria fluida em espectros de sons

a compor um corpo

pois não temos um

muito menos somos

é preciso criar(poiesis)

um corpo para si

para ser e ter existência

consistência

para quem sabe

chegar a ter a competência de existir

 

IV.

sua boca agora aberta

diz das verdades a mais insuportável

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sua boca já não pode mais se fechar

 

* . Título-Pergunta produzido pela inversão da definição de realidade estabelecida pelo Filósofo Francês Gabriel Tarde (1843 – 1904), no ensaio Os Possíveis (1910), que integra o livro Monadologia e Sociologia – e outros ensaios, organizado por Eduardo Viana Vargas, traduzido por Paulo Neves e publicado pela editora CosacNaify, 2007. “ A realidade, dissemos, é o que existe só uma vez e dura só um instante.” (Tarde.G, Os Possíveis, 1910, p.212).

Bruno Levorin é estudante de filosofia, bailarino, músico entre outras coisas. Daniel Kairoz é filósofo autodidata e coreógrafo de formação. No ano de 2010 finalizou seu primeiro longa-metragem, ? (kawa, chuan, rio) que mais se parece com um livro. Atualmente estuda as diferenças entre dança e coreografia e suas possíveis aproximações.