Dance (Praticable) / Foto: Jônia Guimarães

7×7 – Dança praticável

Esta semana chegamos ao fim da segunda edição do projeto 7×7. Abaixo, o 7º texto da série, que traz críticas de alguns dos espetáculos apresentados durante o Festival Panorama 2010, no Rio de Janeiro, e o Festival Contemporâneo de Dança, em São Paulo. O projeto foi idealizado por Sheila Ribeiro/dona orpheline para promover diálogos entre diferentes instâncias do meio artístico da dança. Para isso, abre espaço para que os próprios artistas do meio possam expressar suas opiniões estéticas e políticas sobre as obras dos colegas. Depois da primeira série de textos 7×7 (clique aqui para conferir), os autores vão criar um blog para reunir todas as publicações. Na primeira leva de textos 7×7, Laura Bruno escreveu sobre o espetáculo Quando se desprendem as partes? (clique aqui para ler).

Frédéric Gies por Laura Bruno

Ao assistir Frédéric Gies se mover, no espetáculo Dance (Praticable), a percepção navega por diferentes qualidades de movimento, como que sintonizadas randomicamente. Tem-se a impressão de que uma função shuffle foi acionada fazendo com que o intérprete mude o padrão da movimentação de quando em quando, com qualidades que parecem compor um mesmo álbum. Logo se tem a impressão de que conhecemos este álbum, ou já o ouvimos em algum lugar, ou reconhecemos algum trecho, ou parece-nos tão familiar…

É que ao mesmo tempo que acompanhamos esta, aparentemente aleatória, alternância de padrões de movimento, reconhecemos alguns deles. Podemos identificá-los assim: parece alguém dançando em uma pista de dança, lembra dança do ventre, remete a um show de rock, já vi parecido em um musical. Talvez até saibamos nomeá-los, e neste caso poderemos identificá-los assim: tem momentos que lembram Cunningham, em outros tem um quê de Trisha Brown, um tanto de Isadora Duncan, um pouco de contato-improvisação.

Gies propõe em Dance justamente esta operação: partir de diferentes qualidades de movimentação que aludam a diferentes ‘estilos’ de dança por derivação, ou seja, em consequência da forma que cada qualidade constroi no espaço. Como esta forma não é buscada a priori, o reconhecimento de algum ‘estilo’, bailarino ou técnica se dá por alusão. Daí a impressão de que já vimos isto antes.

O interessante a respeito desta operação é que ela carrega em si um questionamento a respeito de autoria e apropriação. Se a identificação se dá pela forma derivada da qualidade do movimento, isto é uma apropriação? Ou ao contrário; determinadas qualidades de movimento foram anteriormente apropriadas por ‘estilos’ de bailarinos e técnicas? Quem é o autor do movimento identificável?

A coreografia se desenrola na alternância entre o silêncio e três músicas do disco de Madonna, Confessions on a Dance Floor. O que agrega à operação em curso: a presença da música pop imprime ao corpo do intérprete uma conotação mais cotidiana, enquanto a ausência de som confere à movimentação um caráter mais investigativo. A escolha de Madonna no contexto deste espetáculo provoca um duplo efeito. Por um lado, situa a operação de apropriação no cerne da cultura pop, dimensionando a questão em um campo mais amplo que o da dança. Por outro promove certo grau de banalidade à tal operação, correndo o risco de camuflar os próprios questionamentos suscitados por ela. Porque a força icônica de Madonna praticamente anula a questão da autoria. Não se pergunta que qualidades musicais foram apropriadas pela cantora; seu selo é tão forte que dilui quaisquer referências. É esta a ambiguidade que carrega a trilha sonora: ao mesmo tempo banaliza e redimensiona as questões de apropriação e de autoria.

Dance foi concebida no contexto do coletivo Praticable, do qual Gies faz parte. Embora no Festival Contemporâneo de Dança tenha sido apresentada em sua versão solo, também foi criada uma versão em grupo performada com outros artistas do coletivo. E também foi elaborada e publicada a partitura na qual a coreografia é baseada, que está disponível para download na internet (a partitura está disponível aqui). Qualquer um pode executá-la, desde que seja, por recomendação de Gies, praticante de Body and Mind Centering, técnica utilizada para conceber a movimentação.  O BMC propõe o estudo de qualidades de movimento a partir dos sistemas do corpo (órgãos, fluidos, ossos, músculos, glândulas, sistema nervoso etc). A partitura de Dance contém, além do roteiro dos sistemas corporais utilizados na composição, as indicações espaciais e musicais do espetáculo.

A disponibilização da partitura coreográfica é uma ação de compartilhamento do trabalho coerente com a sua concepção, e Gies considera todos que a interpretam como co-autores. O que garante que a coreografia seja realizada é a execução das qualidades de movimento no roteiro espaço-musical; ou seja, qualquer um capaz de aplicar os princípios do BMC tem condições de fazê-lo. O grau de competência da interpretação vai depender justamente da habilidade de transitar com rigor e precisão entre as qualidades exigidas, coisa que Gies faz com excelência. A sua interpretação permite que apenas a transição entre os padrões de movimentação confiram ao espetáculo humor, sobriedade e despojamento.

Laura Bruno é co-idealizadora e performer do Projeto DR, pesquisadora do núcleo Tríade e mestranda em artes cênicas pela ECA / USP.

Leia também: 7×7 – O que pode (ser) um caminhar (?)

7×7 – Um rico diálogo entre as sensações

7×7 – Discurso pelo simples

7×7 – O político no intercâmbio das culturas

7×7 – Explosão de plasmas

7×7 – desfractalizados estamos