Formas breves / Foto: Sammi Landweer

7×7 – Discurso pelo simples

O idança publica o segundo texto do projeto 7×7, que traz críticas de alguns dos espetáculos apresentados durante o Festival Panorama 2010, no Rio de Janeiro, e o Festival Contemporâneo de Dança, em São Paulo. O projeto foi idealizado por Sheila Ribeiro/dona orpheline para promover diálogos entre diferentes instâncias do meio artístico da dança. Para isso, abre espaço para que os próprios artistas do meio possam expressar suas opiniões estéticas e políticas sobre as obras dos colegas. Depois da primeira série de textos 7×7 (clique aqui para conferir), os autores vão criar um blog para reunir todas as publicações.

Lia Rodrigues Companhia de Danças (Formas breves) por Mariana Barcelos

A Lia Rodrigues Companhia de Danças apresentou-se no Festival Panorama de Dança 2010 comemorando seus 20 anos de carreira. Dentre os quatro espetáculos em cartaz, Formas breves (de 2002) foi apresentado no dia 8 de novembro no Teatro Municipal Carlos Gomes, no Centro do Rio de Janeiro.

Uma bailarina caminha até o centro do palco, no chão espalha alguns papeis à sua frente. Despe-se de uma roupa básica, como que de ensaio. Nua, olha atentamente para os papeis no chão, e, lentamente, linhas simples surgem no seu corpo. Parecem imitar desenhos de corpos contidos nos papeis. Diminui o tempo entre uma forma e outra, entre a transformação do corpo. Poucos minutos após a aparição da primeira bailarina, o público já detinha o vocabulário da peça: silêncio, corpo nu, palco nu, exatidão dos movimentos, solos, diálogo com o ritmo, formas breves.

Os bailarinos apresentam-se sós no palco sem cenário e sem música praticamente durante o espetáculo inteiro. Muitas coreografias solos são dançadas com o corpo nu. Os movimentos seguem um fluxo de formas que não criam associação entre si, ou, em outras palavras, que definam padrões lógicos de interpretação. O que os une é a forma em sua crueza, a geometria dos corpos. Porém, alguns momentos de ruptura evidenciam um tensionamento. A destacar: a bailarina que não dança cantarola uma música que anuncia que nada “dará certo”; o bailarino que sai da plateia e entra no palco com roupas cotidianas, abre uma lata de refrigerante e dança como numa festa casual no único momento em que toca uma música animada e dançante. Todo esse contraste apresenta um território em que a dança é problematizada. No mesmo palco, a tentativa de alargar suas potencialidades divide espaço com um repertório considerado basilar.

Esta referência à simplicidade pode ser compreendida e acobertada de mais questões, uma vez que se sabe que as pesquisas para a formação da peça começou com o estudo/encontro da estética do pintor alemão Oskar Schlemmer (1888-1943), que foi um dos fundadores da ideologia da Bauhaus. E, também, com a obra do escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985), importante integrante do partido comunista, e intelectual de literatura. No livro intitulado Seis propostas para o próximo milênio (1990), Calvino enumera pontos que considerava prioritários para o desenvolvimento da literatura no século XXI: “leveza”, “rapidez”, “exatidão”, “visibilidade” e “multiplicidade”. A sexta proposta, “consistência”, não entrou no livro, pois o autor faleceu antes de terminá-la. Retomando Oskar Schlemmer, suas obras apontavam para o estudo da estética do corpo humano reduzida à plástica mais linear e simples possível. Em comunhão, obviamente, com o funcionalismo e racionalismo da estética bauhausiana.

Os dois autores citados, todavia, ainda têm um lugar de interseção que impulsionaram suas respectivas obras. É um posicionamento político inerente aos seus pensamentos estéticos, artísticos e literários. Era contra o caos, o abandono e a destruição do mundo pós-guerras que seus discursos se direcionavam, era também a favor do que os novos tempos vislumbravam como um caminho possível. E isso com a racionalidade, a velocidade, a exatidão. A materialidade desses apontamentos estava contida nos corpos dos bailarinos da maneira mais clara. Era também visível nas roupas básicas, sem cores vibrantes, fáceis de vestir e despir. E ainda, na iluminação, que opta por uma luz geral branca, que se mantém quase que a peça inteira, sem muitas alterações, a não ser os raríssimos momentos de foco branco. O “simples” anunciado por artistas do século passado enfim chegando ao nosso tempo. Será?

Talvez não. E talvez por isso a criação de Lia Rodrigues tenha exposto este discurso por mais uma vez. A tão esperada “simplicidade” não atingiu a importância prevista no mundo de hoje. De qualquer maneira, as escolhas das contaminações teóricas alimentam outra característica importante da arte contemporânea: o encontro das linguagens. Não é para se estranhar que as apostas da escrita literária para o século XXI, dispostas por Calvino, tenham encontrado na escrita corporal lugar para acontecer. A dramaturgia tem, inclusive, espaço na ficha técnica do espetáculo, preenchida pelo nome de Silvia Soter, crítica de arte e dramaturga, que inseriu o diálogo com os dois artistas citados na criação coreográfica.

A coreografia opta pela singularidade e particularidades dos corpos. Como já mencionado, os solos são predominantes na apresentação, porém, isso não impede que as formas se repitam e se resvalem em outros momentos. Exemplo disso: uma sequência coreográfica extremamente detalhista e com ritmo lento, em que três bailarinos a refazem seguida e separadamente, ficando um em cima de um suporte, enquanto outros dois integrantes o fazem girar durante a realização da partitura. O foco permanece apenas no corpo que se mexe, e, ainda que os dançarinos partam do mesmo começo, é durante o desenvolvimento que os particularismos se fazem notar. São possibilidades de cada corpo de se encaixar numa mesma estética de movimentos.

Particularizar, no século XXI, também é simplificar. É não se encaixar na ideia de massa, multidão. No único momento em que estão todos juntos no palco, a companhia enfileirada no proscênio canta Meu pintinho amarelinho…, ressaltando a crítica que se faz às generalizações, ao universo coletivo. Por fim, fazendo uma última referência ao novo, uma dançarina nua enrola por todo o seu corpo rolos de fita adesiva. Imóvel, do ponto onde estava, observa, enquanto outros bailarinos correm terminando de desenrolar as fitas até todas as extremidades do teatro, do palco à porta de saída. De um só corpo saem diversos caminhos.

Quando acaba a peça, a ideia que se tem é que se iniciou uma série de buscas. A busca pelo particular, pelo corpo simples, a busca pela dança de agora. Em meio ao caos a Lia Rodrigues Cia. de Danças pede atenção para as brevidades.

Referências bibliográficas:

MEDEIROS, Silvio. Reler Ítalo Calvino. Em: Recanto das Letras; endereço virtual: http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/104517.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas, bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO, e também é aluna de licenciatura em Ciências Sociais pela UFRJ.

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