Encarnado / Foto: Sammi Landweer

7×7 – Explosão de plasmas

O idança entra 2011 publicando mais um texto da série 7×7, que traz críticas de alguns dos espetáculos apresentados durante o Festival Panorama 2010, no Rio de Janeiro, e o Festival Contemporâneo de Dança, em São Paulo. O projeto foi idealizado por Sheila Ribeiro/dona orpheline para promover diálogos entre diferentes instâncias do meio artístico da dança. Para isso, abre espaço para que os próprios artistas do meio possam expressar suas opiniões estéticas e políticas sobre as obras dos colegas. Depois da primeira série de textos 7×7 (clique aqui para conferir), os autores vão criar um blog para reunir todas as publicações.

Lia Rodrigues Companhia de Danças (Encarnado) por Cristiano de Oliveira

Lia Rodrigues, com seu sentido antropofágico e arrebatador de desafiar os costumes e modismos da arte contemporânea, as nuances da forma, o detalhe dos corpos. Como uma grande aula de anatomia, apresentando os interiores e os detalhes das coxias do Teatro Carlos Gomes iluminado sempre com a mesma luz básica do início ao fim.

Encarnado faz alusão aos sentidos do que se é entendido como folclórico. Advindo dos cordões dos pastoris e da terra de massapé, como nos contos de Mário de Andrade onde o profano ganha seu lugar. A ciranda andava em passos marcados de um metrônomo, como num grande pelotão do exército pronto para a execução. Pronto para sacrificar a eleita. Um corpo que expõe suas vísceras.

O quadro era como se fosse da Semana de Arte Moderna de 22, com 12 bailarinos expondo seus anseios e experiências e querendo nos falar sobre um modo diferente de ver e pensar a dança: Uma dança sem arcaísmos, sem erudição.

Lia continua seu trabalho através do movimento que vem do âmago, do grito esbravejante que se faz ecoar por todo o teatro, que se faz sentir lá dentro e que fica, e que marca, e que sangra. Um grito de dor, de horror, que ecoa até a Grécia Antiga. Foi um momento crucial. Temos o antes e depois do grito. Uma espécie de despertador dos corpos dos espectadores convocando-os a estar presentes na cena também. Interessante era todo trabalho cênico de preparação e limpeza dos bailarinos. Uma espécie de pré-cena que, em alguns momentos, foi tão forte ou mais do que a cena principal.

As esculturas se metamorfoseavam a cada instante, como uma pintura lânguida de Exéquias[1] e que ia se derretendo a partir dos olhares daqueles que assistiam. Os corpos nus do vaso grego explodiam formas e tônus, mas morriam a cada instante.

Analisá-la como uma peça autofágica talvez seja o modo mais apropriado. É realimentar-se como num sistema de feedback, uma espécie de retroalimentação dialética, reflexiva e cruel. É gritar, é bater, é estourar um saco, um coração, a vida… O sangue derramado do saco plástico pelo dançarino foi assustador. Isso porque ele se apresenta como o plasma que pulsa nas nossas cavidades e perpassa todo o nosso corpo; que bombeia todas as nossas emoções, desejos e esperanças. Essa dor, que ao estourar, jorrou ali no chão e desapercebidamente nos levou a uma espécie de Batalha de Oxossi terrena, numa briga pela vida em câmera lenta, onde assistíamos à encarnação, o desejo de viver e de ser.

Era transcender a carne como numa espécie de vudu ou de um mantra onde eram ressuscitados nomes como Francis Bacon, Goya, Michelangelo. Foi um diálogo do Demônio com o Deus, na idealização de um corpo nu que remonta à perfeição e que nos leva ao paraíso ou à perdição. Levar ao fundo do nosso pensamento. Tão fundo, mas tão fundo, que além de todo funcionamento das costelas e diafragma na respiração, via o coração dela. Olhava para o esterno e não acreditava. Era um corpo flamejante, o corpo que fluía no mais alto grau de vivacidade e poder. Era um corpo nu com todas as curvas e texturas.

A cena onde os animais arrancavam-lhe a roupa poderia fazer analogia à história de Amala e Kamala[2]. Será que elas sobreviveriam àquilo, à fome do homem contemporâneo na busca de si mesmo? As muitas crises que abalam o mundo hodierno (do Estado, da família, da economia, da cultura etc.) não constituem senão múltiplos aspectos de uma só crise fundamental, que tem como campo de ação o próprio homem. Em outros termos, essas crises têm sua raiz nos problemas de alma mais profundos, de onde se estendem para todos os aspectos da personalidade do homem contemporâneo e todas as suas atividades. Ou seja, o coexistir é um vocábulo quase que inexistente no nosso mundo atual. A nossa proteção faz-nos isolar de toda a sociedade. Uma proteção velada, mas existente.

Proteção essa representada pela cena da bailarina dentro do saco que foi simplesmente exuberante. É estar dentro e fora ao mesmo tempo, é ser e não ser. É ser a interface de um mundo externo, mas sem saber nada sobre ele. Isso é natural dos mamíferos. No sentido de aventura, de evolução. Os símbolos, a atmosfera e tudo que envolvia-nos naquele ritual de sacrifício, um mantra da demarcação do corpo, cânticos que exorcizavam e ao mesmo tempo convocavam.

O trabalho de Lia nos leva para um lugar de simbologias e questionamentos acerca da própria vida. O não-ser-imaginado, o devir. Pois a grande graça da vida é não saber quando e de que forma ela termina. A explosão de sensações durante nossa vida faz-nos perceber o quão supérfluo é o que fazemos na nossa estadia aqui na Terra. Uma simples passagem e que devemos sempre estar preparados, em potencial, a cada instante, a cada pré-movimento.

Cristiano de Oliveira é bacharelando em dança pela UFRJ. É diretor e coreógrafo da Metamorphose Cia. de Dança.


[1] Exéquias foi um antigo pintor grego de vasos e cerâmica, que viveu aproximadamente entre 500 a.C. e 525 a.C. em Atenas. Ele trabalhou basicamente com a cerâmica preta (figuras negras). Seu estilo é reconhecível de imediato e bastante realista. Ele foi o maior pintor de Atenas. (GOMBRICH, E. H. “A História da Arte”, Ed LTC, 1999. p 78-81)

[2] Amala e Kamala – Também conhecidas como meninas lobo, foram duas crianças selvagens encontradas na Índia em 1920. A socialização delas foi bastante penosa. (LEYMOND, B. “Le development social de l’enfant et  del’adolescent”. Bruxelles: Dessart, 1965. p 12-14.)

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