Projeto Co / Foto: Lucas Pacífico

7×7 – Projeto Co, de Paula Petreca

O 7×7 é um projeto de diálogos entre artistas sobre trabalhos artísticos. Este projeto nasceu na segunda edição do Festival Contemporâneo de Dança (SP/2009) e em 2011, além do festival de SP, cobriu os Festival Panorama (RJ), Olhares sobre o Corpo (Uberlândia), FID (BH), Panorama Sesi (SP) e Festival Contemporâneo de Dança (SP), dialogando com cinco eventos de dança do Brasil e produzindo em torno de 100 críticas artísticas.
Cada um desses eventos é encabeçado por um crítico-artista do 7×7: Sheila Ribeiro (conceitualizadora), Arthur Moreau, Sidney Padilha, Rodrigo dos Santos Monteiro e Bruno Freire, respectivamente e tem como designer colaboradora Caroline Moraes. O idança, nosso parceiro desde sempre, publica sete de nossas críticas. Para ver todas as críticas: http://projeto7x7.wordpress.com.

No sétimo e último texto desta edição da série, Rodrigo dos Santos Monteiro escreve sobre o Projeto Co, trabalho de Paula Petreca, apresentado em São Caetano do Sul, dentro da programação do ABCDança.

Quem disse que aquinãomerelaciono.com?

Passo por estações de trem com uma certa frequência. Por escadarias também. Tanto nas estações quanto nos trens, que são considerados como meios de passagem, percebo que grande parte das pessoas se esquece que estes lugares não são apenas passagens (meios de). Não é porque são meios de transporte, no caso dos trens, ou lugares que levam de um espaço para o outro, no caso das escadarias, que esses ambientes devem ser esquecidos: o endereço “aquinãomerelaciono.com” não precisa ser acessado. Nas passagens precisam constar passagens (meios para)… Até mesmo os hikikomoris*, que ficam o tempo todo trancados dentro do quarto acessando “aquinãomerelaciono.com” estão o tempo todo trocando. O quarto fechado em tempo integral e a clausura também são passagens. Ônibus, metrô, trem, escadaria, elevador não são apenas ambientes onde só há passagem; também há vida, há relação. No entanto, um fenômeno hikikomori parece se alastrar; saiu do Japão, e atinge até mesmo aqueles que andam em bando. Tudo bem, tudo bem… Alguns vão me dizer que esse comportamento se justifica por conta das pressões do dia-a-dia, do estresse do trabalho. Que o aumento do preço da passagem dificulta a passagem, e tudo o mais… Mas então, é por isso mesmo que precisamos destas tais passagens, da exploração do através.

Na estação de trem de São Caetano do Sul, no dia 23 de junho de 2012, dentro da programação do ABCDança, Paula Petreca proporcionou aos passantes daquele lugar um momento de respiro poético, vindo das folhas marrons e secas que compunham, junto com seus movimentos, a paisagem. Paisagem esta que se modificou fugazmente a partir da observação daqueles que ali estavam. Um acontecimento paisagem-passagem que durou 35 minutos, algumas passagens de trens, de pessoas e a transição do fim de tarde para o começo de noite. Será que esse acontecimento durou apenas aqueles minutos, ou até menos para os que simplesmente passaram por ali? Creio que não. Porque uma dose de estranhamento como essas, afinal, não se toma todos os dias. A dança dos olhares vira dança da reflexão, dança da liberação. Liberação das formas cristalizadas de se passar, de olhar e de conviver naquele lugar. Uma desconcretização dos concretos da cidade. Paradas rápidas de observações, olhares de estranhamento. Por quê? Seria um esquizóide ali se movimentando em um lugar onde outras formas de movimento já estagnaram a cartografia de afetos de seus passantes? Uma escadaria de uma estação de trem – se a estação de trem já é lugar de passagem, a escadaria seria a passagem da passagem? Tomo passagem por dois sentidos. O primeiro diz respeito aos ambientes onde não se fica muito tempo – simples assim: trens que vão e vêm; pessoas que não param; coisas que acontecem sem serem percebidas. O segundo se refere à troca, à relação; às possibilidades de troca, de diálogo, de ver um mesmo lugar de um jeito diferente – um momento que é passageiro, mas que abre as passagens. A passagem é imanente, e não transcendente.

Projeto Co, de Paula Petreca, foi experimentado pela primeira vez como um site specific em uma escadaria do bairro histórico da Mouraria, em Portugal. No Brasil, a artista chama seu projeto de site generic. Site specific X Site generic: dá pra sair do específico e cair em um genérico? Não será que é o específico como diferente que causa a diferença? Genérico (instead generic, why not?!) não seria a fórmula do remédio, o princípio ativo, que pode ser produzido por laboratórios de diferentes marcas? Será que o contexto não pede uma homeopatia? As escadarias podem ser outras agora; no caso, a escadaria de uma estação de trem de uma cidade do ABC paulista (specific?). O que vale é a forma como Paula propõe mudanças na cartografia dessas passagens. Os melhores lugares jamais vistos para que a passagem propicie PASSAGENS (de relação, de afeição) estão sendo soterrados pelas forças do malvado concreto e da aterrorizante rotina?! Será que esse design não é passagem para outras passagens? E o corpo que vive nesse ambiente – ou melhor, nesses ambientes, já que ele passa de uns para os outros, constantemente – como fica nessa história? Um corpo-de-si-para-si-não-me-toque! Mas e as conversas, o “bom dia”, “boa tarde”, “com licença”, “muito obrigado”, são apenas estratégias protocoladas e carimbadas que servem de passe para a co-vivência na sociedade? O que será que aconteceu com os passantes daquele lugar? O que será que alterou em suas rotinas depois de uma experiência como aquela? Será mesmo que alguma coisa foi alterada? Lembro-me de “Zona Autônoma Temporária” (Hakim Bey).

A paisagem-passagem criada por Paula Petreca é uma espécie de levante. Porque desestabiliza, momentaneamente, os hábitos, os caminhos conhecidos pelos quais as informações estão acostumadas a circular. Nesse remexer de rotas e mapas conhecidos e não-mais-suportados, Projeto Co, na passagem, abre a passagem para as passagens (e sem cobrar passagem!). Em uma escadaria de uma estação de trem de uma cidade metropolitana, quantas pessoas passam por dia? E quantas param? Mas elas param? Em uma rotina do dia-a-dia, quantos detalhes de um mesmo lugar passam despercebidos? Dados os happy hours fastfoods e seus respectivos modus operandi, o corpo na cidade, mesmo no momento time for fun, não passa de uma engrenagem que permite o seu funcionamento. Quando uma proposta como a de Paula Petreca acontece, essas engrenagens se enroscam, se entrecruzam, param, aceleram. Elas se reconfiguram e mostram outras possibilidades do funcionamento da cidade. Não à toa, quem habita o lugar onde aconteceu esse levante poético, como os funcionários da limpeza da estação, não hesitaram, por conta da curiosidade, em escancarar a visibilidade que normalmente lhes é tão negada. Em uma estação de trem do ABC, uma paisagem-passagem como essa ajuda a remexer aquelas outras paisagens-e-passagens. O corpo-imune, aquele que fortalece suas barreiras, fecha-se no espaço da individualidade, dentro de cidades que passam por processos frenéticos de urbanização.

Projeto Co é uma ação local, mas com traços e urgências globais. A singularidade, que é o contrário da individualidade, pois não se fecha em si mesma e permite a afetação por parte do outro, do estranho, é capturada por dispositivos invisíveis; eles a emudecem. E é através de outros dispositivos, também invisíveis, que o convívio deve garantir momentos de alívio. Uma imanência de potencialidades, um campo em que as virtualidades se coçam enquanto possibilidades. Uma atualização das formas de andar e ocupar a cidade são visíveis em Projeto Co. A cidade precisa se atualizar, movimentar outros afetos, para que não se sufoque em seus concretos-prédios, concretos-pessoas. Aumentemos as passagens!

* Termo de origem japonesa que designa um comportamento de extremo isolamento doméstico.

Rodrigo Monteiro mora e atua como artista-produtor-curador na região do ABC paulista. Está interessado nas transformações cartográficas dessa região.

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