7×7 – Quando se desprendem as partes? | 7×7 – When are the parts detached?
Com este texto de Laura Bruno, enfrentando o trabalho do Coletivo o12, chegamos ao fim da série 7×7. Nela, convidei jovens artistas a escreverem suas visões sobre os trabalhos de outros artistas – neste caso, os programados na segunda edição do Festival Contemporâneo de Dança (novembro 2009, São Paulo). O intuito foi o de criar uma ação sinérgica, instigando a análise crítica e sensível sobre a arte da dança por novos artistas que crescem dentro dela.O primeiro texto traz meu trabalho por Bruno Freire, em seguida Rafael Alvares por Mariah Polati etc e assim concluímos 7 textos por 7 artistas, sempre disponíevis aqui no idança. Boa leitura! Sheila Ribeiro.
Coletivo o12 por Laura Bruno
O espectador entra para assistir ao espetáculo do Coletivo o12, de Votorantim, literalmente pisando em ovos. Várias cascas quebradas estão dispostas no chão da porta do teatro. Já no palco, cinco integrantes do Coletivo entram semi-nus, vestindo apenas underwear brancas, e deitam-se espalhados pelo espaço.
A primeira cena é emblemática em relação ao que virá. O sexto integrante do o12 entra e arrasta cada um dos demais intérpretes, inertes, pela boca, pela cabeça, ou pelos cabelos. Amontoa-os todos em um bolo de corpos humanos para, por fim, juntar-se a eles. Há uma situação que explicita violência, na qual um grupo é subjugado por um indivíduo em uma relação inequívoca de dominação. Desta condição inicial o ‘bolo de corpos humanos’ começa a se mover e, uma a uma, as partes se desprendem.
A partir daí, sucedem uma série de relações modelares entre as partes. Na primeira delas, três pares desenvolvem uma relação de dependência mútua, em um jogo de tensão e contrapeso entre os corpos que promove escape seguido por novo engate. Em seguida todos se separam e vestem diferentes combinações de peças brancas, como que vestindo uma personalidade sobre a base uniformizada. Novamente pares se formam e estabelecem uma relação desigual, na qual uma parte sobe nos ombros da outra tampando-lhe o rosto. A base reage movendo mãos, braços e pernas do outro corpo, que voltam a grudar no seu. Por fim, o parasita escorrega do hospedeiro e é por ele conduzido à autonomia, do chão até ficar de pé, passando pelo engatinhar.
Esta imagem de conquista da condição bípede repete-se mais adiante no espetáculo, em seu único solo. Neste, tal conquista acontece após uma série de movimentos contorcionistas, que revelam-se constitutivos do processo de individuação.
É na cena seguinte que se dá o ponto de virada de todo esse processo em direção à conquista de autonomia. As partes já se soltaram do ‘bolão’. Elas já experimentaram diferentes formas de relação entre si. Já se individualizaram. E agora elas se relacionam sem ingenuidade. Todos entram no palco criando breves relações de tensão na ocupação do espaço, como que disputando territórios. Encaram-se até que alguém desista e mude de lugar, estabelecendo novo território. A tensão se intensifica e as estratégias da disputa também. Multiplicam-se com a tomada do lugar do outro, não mais apenas pela intimidação do olhar, mas pelo seu deslocamento. Este se dá com violência, com uma parte movendo a outra pelo pescoço ou pelo rosto, ou ainda carregando-a e arremessando-a em outro lugar.
Se as partes se soltam (do bolão) já no início, é só então que elas realmente se desprendem. No momento em que se colocam como agentes da disputa por poder, tão capazes de promover como sofrer violência; num jogo de alternância constante dos papeis de dominante e dominado. A conquista de autonomia se dá juntamente com a aquisição da capacidade de assumir a responsabilidade pelos papeis desempenhados em cada relação. Do ponto de vista do desenvolvimento individual, autonomia pode ser quase sinônimo de maturidade; esta capacidade de estar no mundo sem necessidade de tutela, de se desprender das condições de origem para gerenciar a própria vida.
É inevitável relacionar a metáfora da autonomia apresentada no espetáculo à própria biografia do o12. Os integrantes do Coletivo são dissidentes do Quadra Pessoas e Ideias, também de Votorantim, do qual se desvincularam em fevereiro de 2008. Ao se desprenderem daquele ‘bolão’ criaram o o12, propondo-se a construir um espaço onde, segundo suas próprias palavras, “as resoluções de um coletivo sejam, de fato, decididas e assumidas por cada um do coletivo” (clique aqui para ler mais sobre o assunto). A ideia de co-dependência entre as partes com alternância de responsabilidades está expressa no único dueto solo do espetáculo. Nesta cena, um único par estabelece uma relação entre um corpo suporte e um corpo suportado na qual trocas velozes de posição subvertem constantemente estes papeis.
Quando se desprendem as partes é o primeiro espetáculo do o12 e acaba sendo também uma espécie de ritualização do seu próprio processo de conquista de autonomia. Como espetáculo inaugural de um grupo formado por artistas muito jovens – têm, em média, cerca de 20 anos – funciona muito bem sendo auto-referente e autobiográfico.
As partes no coletivo
A autonomia financeira é também uma meta do o12. O Coletivo nasceu com 12 integrantes e hoje conta com a metade. Esta baixa se deu principalmente pela dificuldade de sobreviver de dança. Cerca de um ano após a sua criação o o12 criou a Associação dos Amigos do o12 – AAo12 – uma organização jurídica com fim de arrecadar dinheiro para garantir a subsistência e continuidade do grupo. Os associados contribuem com valores entre R$ 5 e R$ 100, e são informados, semestralmente, sobre as atividades do grupo. Esta forma criativa de sustentabilidade da produção artística é a materialização de reflexões acerca das relações entre arte, consumo e sociedade. Mas, se a maturidade de assumir a responsabilidade pelos papeis que desempenhamos no mundo dá capacidade de gerenciar a própria vida, a conquista da autonomia do ponto de vista financeiro é mais complexa. Envolve questões sócio-político-econômicas que extrapolam os processos de desenvolvimento individual; como a inexistência de políticas públicas para a dança e um mercado cultural incipiente.
O encaminhamento destas questões a médio e longo prazo será um fator decisivo para a manutenção de projetos como o Coletivo o12. Eles são – eu já mencionei? –muito jovens e têm o combustível necessário para apostar e investir nas ideias em que acreditam. Mas é bastante grave para a sociedade um contexto em que a sobrevivência da dança esteja condicionada apenas à capacidade criativa de iniciativas dos próprios artistas. A cena final do espetáculo ilustra bem este cenário: todos os integrantes estão sentados à frente de imensos cálices d’água, na boca de cena, e mergulham a cabeça neles. Cada um se levanta e mergulha novamente conforme a própria necessidade de respirar; compondo uma sinfonia de respirações, sons, feições e gestos ofegantes. São partes que co-habitam o mesmo ambiente e são afetadas pela precariedade das mesmas condições. Esta sinfonia de auto-afogamento coletivo é uma excelente metáfora do que padecem arte e sociedade.
NOTA: Para mais informações sobre o Coletivo o12 e a Associação dos Amigos do o12 (AAo12) ver: http://odoze.blogspot.com / o.doze@hotmail.com
Laura Bruno é co-idealizadora e performer do Projeto DR, pesquisadora do núcleo Tríade e mestranda em artes cênicas pela ECA / USP.
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We reach the end of the 7×7 series with this text by Laura Bruno about Coletivo o12. In this series, I invited young artists to write their views on the work of other artists – in this case, those programmed in the second edition of Festival Contemporâneo de Dança (November 2009, São Paulo). The goal was to create a synergistic action, instigating critical analysis about the art of dance by young artists who are growing within it. The first text brings Bruno Freire writing about my work, then Rafael Alvares por Mariah Polati and so we completed 7 texts, by 7 artists, always available here at idança. Enjoy! Sheila Ribeiro.
When are the parts detached?
The spectator comes in to watch the show of Coletivo o12, from the city of Votorantim, literally walking on eggshells. Several broken shells are placed on the floor at the theater’s entrance. Five members of Coletivo come to the stage half-naked, wearing only white underwear, and lay down scattered around the space.
The first scene is emblematic of what will come next. The sixth member of o12 comes in and drags each of the other inert performers by the mouth, by the head or by the hair. He piles them up and then joins them. There is a situation that expresses violence, a group is subdued by an individual in an unequivocal relationship of domination. From this initial condition, the ‘pile of human bodies’ start to move and, one by one, the parts are detached.
From then on, a series of model relationships between the parts takes place. In the first one, three pairs develop a relationship of mutual dependency, in a game of tension and counterbalance between the bodies. A game that promotes escape and is followed by new couplings. Then they all separate and put on different combinations of white clothes, as if they were wearing a personality on a uniform basis. Again, news pairs are formed and establish an uneven relationship, in which some climb on the shoulders of others, covering the face of the base, who reacts by moving the hands, arms and legs of the other body, which again stick to them. In the end, the parasite slides off the host and is conducted to autonomy, to the floor until they start crawling and then stand up.
This image of conquest of the biped condition is repeated later on in the show, in its only solo. This time, such conquest takes place after a series of contortionist movements that are revealed to be constitutive of the individuation process.
The turning point of this whole process towards conquering autonomy takes place in the following scene. The parts are already detached from the pile. They already experienced different forms of relationship among them. They have already individualized. And now they relate to each other without naivety. They all get into the stage creating brief tense relationships, occupying the space, as if they were fighting over territory. Staring at each other until someone gives up and moves, establishing a new territory Tension intensifies and also the dispute strategies. The strategies multiply by taking the other’s place not only by the intimidation through staring, but also by displacement. This happens violently, with one part moving the other by the neck or the face or even dragging or throwing them to another place.
Even if the parts already detached (from the pile) in beginning, it is only then that they actually detach from each other. In the moment they place themselves as agents in a dispute for power, equally capable of promoting and undergoing violence; in a game of constant alternation of the roles of dominant and dominated. The conquest of autonomy happens along with the acquisition of the ability to take responsibility for the roles played in each relationship. From the perspective of individual development, autonomy may be synonymous with maturity; this ability to be in world without guardianship, of letting go of conditions of origin to manage one’s own life.
It is inevitable to make a connection between the autonomy metaphor presented in the show with the very biography of o12. The members of the collective are dissidents of Quadra Pessoas e Idéias, also from Votorantim, from which they disconnected on February 2008. When they detached from that ‘pile’, they created o12. The proposal was to build a space in which, according to their own words, “the resolutions of a collective are in fact decided and assumed by each one in the collective”. The idea of co-dependency between the parts with alternation of responsibilities is expressed in the show’s only duet. In this scene, a single pair establishes a relationship between a supporting body and a supported body in which quick position changes constantly subvert these roles.
Quando se desprendem as partes (“When the parts are detached”) is o12’s first show and ends up being also a kind of ritualization of their own process of conquering autonomy. As a debut show of a group composed of very young artists – they are in their twenties – being self-referent and autobiographical works very well.
The parts of the collective
Financial autonomy is also a goal for o12. The collective was born with 12 members and now has only half. This happened mainly because of the difficulty of living out of dance. About a year after its creation, o12 created AAo12 (“Association of Friends of o12”), a legal organization to raise funds to assure the survival of the group. The associates contribute with R$ 5,00 to R$ 100,00 and are informed about the group’s activities semiannually. This creative way of sustaining artistic activity is the materialization of reflections about the relationship between art, consumption and society. But, if the maturity to take responsibility for the roles we play in the world provides ability to manage our own lives, the conquest of autonomy from a financial point of view is much more complex. It involves social, political and economic issues that go beyond the process of individual development; such as the non-existence of public policies for dance and a incipient culture market.
The conduction of these issues in a medium and long term will be a decisive factor for the survival of projects like Coletivo o12. They are – have I mentioned this? – very young and they have the necessary fuel to bet and invest on the ideas they believe in. But a context in which the survival of dance is conditioned only to the creative initiative of the artist is very serious for society. The show’s final scene creates a good image of this situation: all the members are seating in front of large glasses of water, at the proscenium and they dip their heads into them. Each once raises and dips according to their own need to breathe; creating a symphony of breaths, sounds, expressions and panting gestures. They are parts that co-inhabit the same environment and are affected by the precariousness of the same conditions. This collective self-drowning symphony is an excellent metaphor of what art and society suffer.
Note: For more information about Coletivo 012 and AAo12 visit: http://odoze.blogspot.com / o.doze@hotmail.com
Laura Bruno is co-founder and performer of Projeto DR, researcher of Tríade and mastership candidate in performing arts at ECA/USP.