The Hot One Hundred Choreographers, de Cristian Duarte / Foto: Carol Mendonça.

7×7 – The Hot One Hundred Choreographers, de Cristian Duarte

O 7×7 é um projeto de diálogos entre artistas sobre trabalhos artísticos. Este projeto nasceu na segunda edição do Festival Contemporâneo de Dança (SP/2009) e em 2011, além do festival de SP, cobriu os Festival Panorama (RJ), Olhares sobre o Corpo (Uberlândia), FID (BH), Panorama Sesi (SP) e Festival Contemporâneo de Dança (SP), dialogando com cinco eventos de dança do Brasil e produzindo em torno de 100 críticas artísticas. Cada um desses eventos é encabeçado por um crítico-artista do 7×7: Sheila Ribeiro (conceitualizadora), Arthur Moreau, Sidney Padilha, Rodrigo Monteiro dos Santos e Bruno Freire, respectivamente e tem como designer colaboradora Caroline Moraes. O idança, nosso parceiro desde sempre, publica sete de nossas críticas. Para ver todas as críticas: http://projeto7x7.wordpress.com.

No terceiro texto desta edição da série, Arthur Moreau analisa o trabalho mais recente de Christian Duarte, The Hot One Hundred Choreographers, apresentado no Festival Panorama, em novembro de 2011.

AS PROFANAÇÕES DE CRISTIAN DUARTE

São muitas referências da história da dança, artistas internacionais, nacionais e alguns nomes muito conhecidos. Sempre que uma pessoa ou uma obra é citada em outra, isso é, em algum nível, uma homenagem. Ainda mais, nesse caso, quando em alguns momentos a música The Time Of My Life (de Franke Previte, John DeNicola e Donald Markowitz) é tocada. É uma declaração de empatia e de admiração explícita. Vai também além dessa estreita questão, pois, como ele as profanam, tornam-se citações ou reproduções numa reconfiguração geral crítica. De um modo que Cristian Duarte vai na contramão de muitas coreografias que se inspiram em obras distintas da dança para construir seus passos. Quando utilizam esse tipo de processo, o fazem, majoritariamente, tendo como ponto de partida direto obras literárias, da música, do cinema ou das artes plásticas. Através da metalinguagem, The Hot One Hundred Choreographers discute dança: o seu fazer, as capacidades de movimentos dos seus artistas e a sua permanência na memória da cultura. Como afirma o filósofo italiano Giorgio Agamben no seu livro Profanações (Boitempo, 2007), profanar pode significar abolir e cancelar separações ou aprender a fazer delas um uso novo. Cristian Duarte trafega desses modos por movimentações e músicas de 100 artistas. Ele divulgou de maneira muito engenhosa sua seleção nesse site: http://www.lote24hs.net/hot100/.

Foi um trabalho de curadoria. Optou por criadores cujos trabalham se deram nos últimos cem anos. A coreógrafa listada mais antiga é a americana Isadora Duncan, que viveu de 1877 a 1927, e o mais antigo é o austro-húngaro Rudolf Laban, que viveu entre 1879 e 1958. Na lista constam outros artistas importantíssimos como os já falecidos o russo Vaslav Nijinsky (1890 – 1950), os norte-americanos Merce Cunningham (1919 – 2009) e Martha Graham (1894 – 1991), os japoneses Kazuo Ohno (1906 – 2010) e Tatsumi Hijikata (1928 – 1986), a alemã Pina Bausch (1940 – 2009) e o francês Maurice Béjart (1927 – 2007). Há algumas estrelas da dança que estão vivas, como a belga Anne Teresa De Keersmaeker (1960), as norte-americanas Yvonne Rainer (1934) e Trisha Brown (1936), o suíço Gilles Jobin (1964) a francesa Maguy Marin (1951) e o australiano Lloyd Newson (1954). São entorno de dez brasileiros na lista que estão em plena atividade, entre eles Alejandro Ahmed, Marta Soares, Adriana Grechi, Vera Sala, Lia Rodrigues e a colega de Cristian no projeto Desaba, Thelma Bonavita. Coreógrafos internacionais menos conhecidos localmente, mas muito conhecidos fora, completam a lista junto com nomes da cultura pop como o sino-americano Bruce Lee (1940 – 1973) e os norte-americanos Michael Jackson (1958 – 2009) e Gene Kelly (1912 – 1996).

Se fôssemos considerar a importância histórica nacional e internacional dos artistas durante esse mesmo período, muitos coreógrafos não apareceram na lista. Eis uma outra suplementar: o hot músico suíço Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950), os norte-americanos Ruth St. Denis (1879 – 1968), Ted Shawn (1891 – 1972), Charles Weidman (1901 – 1975), Alwin Nikolais (1910 – 1993), Murray Louis (1926), Buirge Susan (1940) e Carolyn Carlson (1943); a polonesa radicada na Inglaterra, Marie Rambert (1888 – 1982), o russo George Balanchine (1904 – 1983), o húngaro Aurélio Milloss (1906 – 1988), os franceses Roland Petit (1924 – 2011), Janine Charrat (1924) e Alain Platel (1959), o dinamarquês Peter Martins (1946), o alemão Raimund Hoghe (1949). Quanto a quem fez dança no Brasil pode e deve-se, lembrar dos brasileiros Klauss Vianna (1928 – 1992), J. C. Violla (1947), Ivaldo Bertazzo (1950), Umberto da Silva (1951 – 2008) e Carlinhos de Jesus (1953), as brasileiras Yvonne Daumarie (1903 – 1977), Chinita Ullman (1904 – 1977), Heros Volúsia (1914 – 2004), Angel Vianna (1928), Marilena Ansaldi (1934), Márcia Haydée (1937) e Janice Vieira (1940), Clarisse Mattos Abujamra (1947), Helena Bastos (1958) e Sheila Ribeiro (1973); quem se radicou na Brasil, como as russas Maria Olenewa (1896 – 1965) e (Dona) Nina Verchinina (nasceu entre 1903 e 1912 – 1995), os tchecos Veltchek (1896 – 1967), Zdenek Hampl (1946 – 2006) e a tcheca Vera Kumpera, o italiano Aurelio M. Milloss (1906 – 1988), o estônio Yuco (Johannes) Lindberg (1908 – 1948), a polonesa Yanka Rudzka e Maryla Gremo (1911 – 1985), a francesa Renée Gumiel (1913 – 2006) e a húngara Maria Duschenes (1922). E, principalmente, o casal fundador do pioneiríssimo Ballet Stagium, fundado em São Paulo em 1971: a húngara naturalizada brasileira Marika Gidali (1937) e o mineiro Décio Otero (1933). Seus trabalhos são símbolos de movimentos ou estéticas, de lideranças emancipatórias, de instituições que dirigiram, ou, até, de um pequeno número de obras, mas que, devido às propostas radicais encenadas, foram marcantes. Mesmo essas pessoas tiveram ajuda de outras para suas ações e para a divulgação das mesmas. Todavia, suas denominações são mais proeminentes na representação dos seus rastros históricos.

A presença de uns e ausência de outros é o salário da visibilidade, das possibilidades e iniciativas de registro (seja do artista ou do historiador ou de outrem), da conquista de público, da quantidade de obras. A cultura perpassa esses artifícios, suas possíveis repetições e memórias. O registro dessas danças no youtube parece ter sido mais um limite para essa memória. A partir desse pré-requisito, Cristian reelaborou seu conhecimento de dança com edição, remixagem, mestiçagem, colagem, sobreposição. São artifícios que, talvez, sejam ações inexoráveis da criação. Das coreografias que Cristian viu e ouviu, ele destacou 100 como as mais quentes, ou seja, as que mais teriam alterado seus pensamentos de coreografia para ser o coreógrafo que é hoje. Mas apenas alguns pequenos trechos delas ele traduziu, performando-as. Aí está a profanação, pois os deslocamentos sofreram muitas interferências e a escolha por artistas criadores e pesquisadores faz sentido nesse corpo, no corpo dele. Além da sua trajetória artística de interrogar fazeres da dança, afetações publicitárias e de memória corporal (Alta Necessidade, de 2003, O Revisor em Série, de 2008, etc). O figurino, com símbolos orientais estampados, o solo fixo, uma alusão, quem sabe, a um fragmento de uma cultura local distante que teria pouco a comunicar conosco, que também poderiam ser os próprios passos cuja soma é um retalho. Essa sensação de um alto deslocamento entre os passos originais e os apresentados é estimulada pela iluminação. Mantendo sempre uma cor predominante, como se cada uma da pequena palheta de opções coubesse em qualquer um dos passos. Eles estão lá de passagem, de rodízio. A sonoplastia, de modo semelhante, é, muitas vezes, independente da movimentação original dos passos de durações curtíssimas.

O envolvimento, a experiência corporal pela qual passaram os artistas homenageados, ou seja, qualidade da dramaturgia do corpo deles, não está no corpo de Cristan Duarte. Ora, as 100 coreografias não estão lá. Apenas singelas dicas de suas origens. Expor um recorte específico ou apresenta-lo como pronto e numa ordem de grandeza exclui possíveis reflexões que as experiências íntegras de cada um poderiam provocar, mas a simplificação das partes pode sustentar a complexidade que a coesão de uma lista, de caráter pós-industrial, pode expressar. Ele sabe que é uma dança que não conhece e não pode conhecer todas, ou a maioria, das obras que a antecedem e que, também, por vezes, a fundamenta. Assim, a mimetização executa a qualidade modesta que lhe cabe, ou seja, curta duração de passos cujas execuções se dão com precisão e rigor, mas, inevitavelmente, com um corpo com tônus genérico.

A composição de uma lista de artes figurativas é capaz de sugerir elencos infinitos, até quando a representação parece severamente limitada é a questão discutida no livro A vertigem das listas, do Umberto Eco (Editora Record, 2010), pela qual Cristian se orientou para a concepção da temática de The Hot One Hundred Choreographers. A arbitrariedade de se fazer uma lista ordinária e eleita prescinde de debate. As forças que motivam suas elaborações e que lucram com elas, não.

Contudo, é um método explícito de seleção de fenômenos que provocaram mais, que afetaram mais e que, portanto, teriam, nesse caso, contaminados mais o artista, mesmo que isso não inclua questões formais. Memória é um processo de esquecer e lembrar, cujos critérios prezam pela manutenção de uma evolução cega, mas que pode nos causar danos quando imposta com radicalidade. Assim, limitar e regrar a construção cultural com leis estéticas impõe dependências simbólicas externas, que apagam, em blocos, conjuntos de recursos de adaptação local. Escolher o que dançar e sobre o que dançar é um desafio emergencial de quem deseja ser artista criador de dança. Nesse caso, a afirmação como um visitante específico e geral é, principalmente e acima de tudo, uma arte crítica à sua história. Portanto, refazer as obras dos antecessores é, com certeza, uma motivação admirável. Também faz lembrar a falta de historiadores da dança, falta urgente de livros e bons livros, ou mesmo outros tipos de registro de história da dança e de história da dança feita no Brasil, para que não sejam feitas injustiças de desconhecimento de artistas de quem estuda essa arte – assim como as que eu devo ter cometido nesse texto. Cristian incita a reelaborar uma análise sobre o panorama recente que, embora não possa ser abarcado, precisa ser reparado com liberdade e propósit

Arthur Moreau é artista, bacharel em Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP) e estudante de Direção, na SP Escola de Teatro.