7×7 – Uma discussão das frestas entre realidade e arte | 7×7 – A discussion about loopholes between reality and art

Aqui vai o sexto texto  da série 7X7, em que convido jovens artistas a escreverem suas visões sobre os trabalhos de outros artistas – neste caso os programados na segunda edição do Festival Contemporâneo de Dança, realizado em novembro, em São Paulo. O intuito é o de criar uma ação sinérgica instigando a análise crítica e sensível sobre a arte da dança por novos artistas que crescem dentro dela. Sheila Ribeiro.

Sònia Gómez por Rodrigo dos Santos Monteiro

Em cena nos últimos dois dias de apresentações do 2º Festival Contemporâneo de Dança, na Galeria Olido, em São Paulo: Sònia Gómez e sua mãe, Rosa Vicente. E é, talvez, justamente por isso que o trabalho se chame Mi madre y yo. Partindo dali mesmo, do título, vemos que aquilo que se desenrolaria por toda a apresentação seria um interstício que se localiza entre a arte e a vida.

Como aqui a obra trabalha uma relação íntima entre arte e vida, ou seja, é uma artevida/vidaarte, faz-se necessário um aquecimento (um aquecimento-cena): com as vozes em off, ainda por trás da rotunda do teatro, Sònia explica, narrando, o aquecimento para cada parte do corpo, seu e de sua mãe. Depois, com roupas de baixo, as duas, agora no palco, dançam, pulam, giram, tudo ao som de uma música, daquelas típicas para se aquecer em academias (como Fannypack, Hey Mami)

Depois de aquecidas e cansadas, uma pausa: neste momento, onde Sònia e Rosa vestem-se e retomam o fôlego. A quebra de um contínuo que, até então, era alegre e energizante, funciona, pelo menos, para mais três coisas quase diferentes: comer os cookies feitos por Rosa, que são distribuídos à plateia; distanciar o efeito dramático do trabalho e mostrar que tudo não passa de uma apresentação; instaurar um momento onde a convivência do público tenha o foco, uma vez que foi dada a permissão de se falar.

De cara percebe-se bem que, em Mi madre y yo, as linguagens da dança, do teatro e da performance não demonstram limites claros. A mistura caracteriza bem o trabalho, a ponto de descaracterizar as categorias e colocá-las em um jogo de combinações. Outras combinações são feitas com a mesclagem de projeções de imagens, abstratas, de Sònia dançando, com músicas eletrônicas que são usadas no decorrer da apresentação. Uma leitura cabível, talvez, em uma das misturas mais pertinentes do trabalho, é o diálogo que há na figura de Rosa com Sònia: uma combinação trazida pela tradição da mãe com a energia de inovação da filha. Desta maneira, pode-se perceber, em Mi madre y yo, através da combinação de idades e valores diferentes de mãe e filha, aquilo que o teórico pós-colonial Homi Bhabha diz a respeito de cultura e tradição, tratando a primeira como construção e a segunda como invenção. Ou seja, a vontade de combinar um trabalho onde duas pessoas de uma mesma família, que possuem uma grande intimidade entre si, e trazer esta relação para um espetáculo de dança contemporânea, promove não apenas um conflito de valores, mas um diálogo que estabelece acordos em função da arte-vida.

As memórias pessoais são constantemente resgatadas e transformadas em material artístico. A entrevista que Sònia faz à Rosa mostra o potencial que tem um simples depoimento bibliográfico de se tornar cena. Aqui, mais uma vez, Mi madre y yo se mostra como um trabalho onde a intimidade da vida de uma família se coloca na publicidade (para o público) de um espetáculo, passando pelos depoimentos nostálgicos de Rosa e pelas danças em vídeo feitas por Sònia.

Talvez o momento mais acentuado da ambivalência da arte com a vida seja o do vídeo, que primeiro somente é comentado por Sònia, e depois, mostrado: o abate de uma galinha por Rosa. Uma proposta que mexe com a percepção e diferencia as representações de um mesmo ato: a que é feita com palavras faladas, da que é mostrada, de forma impactante, pela imagem visual. A provocação é ainda mais ressaltada, depois de exibido o vídeo, quando Sònia põe um penacho vermelho nas costas e corre e dança pelo palco. Neste ponto, após o choque para o olhar, no momento anterior, imagens, acompanhadas de inquietações, nos vêm: a do frango ou a do pano das touradas narradas por Rosa? Mi madre y yo – um jogo delicado com os sentidos (fisiológicos, semânticos, filosóficos, epistemológicos, etc) e com as sensações.

Um espetáculo presente para uma mãe e para uma filha, onde um presente, dado no final à Rosa, sela uma série de trocas entre as duas: de lembranças, de conversas sobre amor, de danças… Um trabalho que aproveita as informações íntimas da vida e as re-elabora em uma linguagem da arte. É uma indicação de que, nas artes contemporâneas, os assuntos tratados podem ser estruturados em um outro modo de fazer, sendo aqui, pautado nas confusões proporcionadas pela relação arte-vida da mãe e da filha. E é justamente este modo como Mi madre y yo é feito que impede que o espetáculo caia no domínio da catarse e plane sobre os territórios da reflexão.

Rodrigo dos Santos Monteiro é graduando do curso de Comunicação das Artes do Corpo na PUC-SP

Leia também: 7×7 – Quando se desprendem as partes?

7×7 – Corpo em resignação

7×7 – Dançando para além da porta

7×7 – A bandeira que não é branca

7×7 – Tudo o que você sempre quis saber

7×7 – Armazenamento de energia para quem…

This is the sixth text of the series 7X7, in which I invite young artists to write their reflections about the work of other artists – in this case, those programmed at the second edition of Festival Contemporâneo de Dança, held in November in São Paulo. The idea is to create a synergetic action instigating sensitive a critical analysis of the art of dance by young artists that are growing within it. I invite all readers to comment, reflect, participate… This helps to feed this little project intending to speak and write about dance. Sheila Ribeiro.

Sònia Gómez por Rodrigo dos Santos Monteiro

On stage, in the last two days of performances in 2º Festival Contemporâneo de Dança, at Galeria Olido, in São Paulo: Sónia Gómez and her mother, Rosa Vicente. And it is, maybe, exactly because of that the show is called Mi madre y yo. From that point, the title, we could see that what would unravel throughout the entire presentation would be an interstice between art and life.

Since the piece deals with an intimate relationship between art and life, that is, it´s artlife/lifeart, some warming up is necessary (a scene warm-up): with the voice-overs, still behind the theater’s background curtain, Sónia explains, narrating, the warm-up for each part of the body, hers and her mother’s. Later, both in underwear, now on stage, dance, jump, spin, all to the sound of music, those typical gym warm-up songs (like Fannypack’s Hey Mami).


After they get warmed-up and tired, a pause: at this moment, Sónia and Rosa get dressed and catch their breath. The break of a continuum that up until then was happy and energizing, works, for at least three almost different things: eating cookies made by Rosa, which are distributed to the audience; distancing the dramatic effect of the work and showing that everything is no more that a performance; establishing a moment in which the relationship with the audience is the focus, since they were allowed to speak.

Up front, it´s possible to see that in Mi madre y yo the languages of dance, theater and performance don´t have clear boundaries. The mixture characterize the work to the point of mischaracterizing and putting them in a game of combinations. Other combinations are made by merging abstract image projections of Sònia dancing to electronic songs that are used throughout the performance. A suitable reading, maybe, in one of the most pertinent mixtures of the piece is the dialogue that takes place between Rose’s figure with Sònia: a combination brought by the mother’s tradition with the daughter’s innovative energy. Thus, it can be perceived that in mi madre y yo, through the combination of different ages and values of mother and daughter, that which post-colonial theoretician Homi Bhabha says about culture and tradition, regarding the first as construction and the second as invention. That means that the desire to combine a work in which two people of the same family, who have great intimacy among them and bring this relationship to a contemporary dance show, promotes not only a conflict of values, but also a dialogue that establishes agreements in favor of art-life.

Personal memories are constantly retrieved and transformed into artistic material. The interview Sònia does with Rosa shows how much potential a simple bibliographic statement has when it takes the stage. Once again, Mi madre y yo reveals itself as a piece in which intimacy in the life of a family is placed in the publicity (for the audience) of a show, going through Rosa’s nostalgic testimony and dances in a video made by Sònia.

Maybe the most accentuated moment of ambivalence of art with life is the video, which is only commented by Sónia at first and later shown: the slaughter of a chicken, performed by Rosa. A proposal that stirs perception and differentiates the representation of the same act: the one that is made with spoken words from the one that is shown strikingly through the visual image. The provocation is even more highlighted after the video is shown, when Sònia puts a red panache on her back and runs and dances all over the stage. At this point, after the shock on the eyes, on the previous moment, images, accompanied by restlessness, come to mind: that of the chicken or the cloth of the bullfights narrated by Rosa? Mi madre y yo – a delicate game of senses (physiological, semantic, philosophic, epistemological, ect) and sensations.

A show that is a gift for a mother and a daughter, in which a gift, given to Rosa in the end, seals a series if exchanges between the two: of memories, conversations about love, dances… A work that takes advantage of intimate information of life and re-elaborates them in an art language. It´s an indication that in contemporary art, the subjects dealt with can be structured in another way of doing, in this case, guided by the confusions provided by the art-life relationship of mother and daughter. And it´s exactly the way how Mi madre y yo is made that prevents the show from falling the realm of catharsis and floats over the territories of reflection.

Rodrigo dos Santos Monteiro is a graduate student in Communication of the Arts of the Body at PUC-SP.