Pig Lalangue, de Gustavo Bitencourt / Foto: TiagoLima
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Conectivos Críticos III (2011) – NONONONONONO

A apresentação é simples assim. Ao microfone, ele conta uma história numa língua que só ele conhece. Ele termina, agradece e é aplaudido. Tudo não dura mais que 30 minutos. Para criar Pig Lalangue (2010), espécie de stand up comedy, o curitibano Gustavo Bitencourt (1976) gravou a história na frente de uma câmera de vídeo, transcreveu o texto e depois partiu para o trabalho árduo: fazer uma espécie de criptografia, ou seja, traduzir o causo para uma linguagem que ele criaria especialmente para esse propósito. Isso implicaria, portanto, na transformação do português brasileiro, na produção artificial de palavras e na investigação linguística da sua própria intimidade. Ora, pois.

Então, quer dizer que o artista cria uma língua que só ele entende e sobe num palco para compartilhar uma história para quê – se não pode, ao mesmo tempo, comunicá-la e ser compreendido pelos ouvintes? O que ele consegue comunicar de fato? O que é possível comunicar? Qual é a participação do ouvinte na construção da história? O que é possível acessar do que é dito através de gestos e de modulações da fala? Será que não seria justamente na ausência da compreensão do significado dos sons que poderíamos entender melhor o que acontece nos processos de comunicação verbais humanos? Ou talvez seja mais simples: o que podemos fazer com as palavras?

A musicalidade do título e do texto de Pig Lalangue é bastante sedutora e atraente (leia em voz alta o trecho abaixo para conferir). A goteira faz papel de um metrônomo e o microfone de pedestal nos remete aos cantores. No trabalho anterior, Peça de pessoa, prego e pelúcia (2010), em colaboração com Neto Machado, Ricardo Marinelli, Cândida Almeida e Elisabete Finger, Gustavo Bitencourt inventou um personagem que falava em gromelô (do francês grammelot), um recurso utilizado em pantomimas e comédias que consiste em encadear sons (combinados com inflexões e movimentos corporais) que não se agrupam em palavras, mas que podem ganhar algum significado de acordo com a forma como são ditas. Segundo o criador, o gromelô “funcionava como uma alegoria, uma espécie de moldura para ações que eram mais importantes. Com o tempo, foi se tornando mais elaborado, fazendo referência à sonoridade de línguas específicas”.

Durante a criação de Pig Lalangue, ele aprofunda esse interesse ao estudar línguas artificiais como o esperanto e a interlíngua, e também outras variações inventadas como o pig latin, que é uma inconstância do inglês e que se tornou uma espécie de código entre alguns grupos. Além disso, como o artista, “a noção lacaniana de lalangue me incentivou a perceber a fala e a língua de uma outra forma. Para Lacan, o inconsciente tem uma estrutura linguística que é anterior à fala, e que encontra no outro um espelho dessa língua, dessa lalação, que é íntima”. E assim, ele foi criando uma nova língua e “tendo que resolver, por exemplo, como eu conjugaria os verbos, se usaria ou não artigos definidos, que gírias e expressões idiomáticas caberiam ali”.

Entre outras coisas, o que fica muito claro nessa história é que ruídos e distorções são condições constituintes da comunicação. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Paraná e com uma atuação artística diversificada – trabalha como ilustrador, designer gráfico, redator, tradutor, performer, ator, diretor teatral, compositor – o coração de seu interesse parece mesmo ser a palavra e a escrita em suas possíveis implementações.

 

INVENTA-LÍNGUAS1 DE UM SOLILÓQUIO

Pig Lalangue tanto é um exercício de articulação coreográfica da língua no sentido do órgão muscular móvel, situado na boca e que serve para sentir os sabores, deglutir e articular sons, quanto a invenção de um novo sistema de comunicação verbal que permite a expressão de seu único usuário. De fato, o vernáculo de Pig Lalangue fica em algum lugar entre a língua, a linguagem, o código secreto e a performance.

Há muitas versões para a história que Gustavo Bitencourt conta em cena, mas nenhuma delas é considerada nem legítima, nem falsa. Até porque é a própria estrutura desse idioma que permite certas ambiguidades interpretativas, de acordo com o contexto em que é contada. E, também, porque 1) a gestualidade presente no falar (há uma partitura de gestos associada ao discurso) pode negar, ironizar, reforçar, desdizer, delatar… as palavras que estão sendo pronunciadas e 2) o próprio modo de falar pode denunciar subtextos (como no caso anterior) através das modulações da voz que dão acesso a aspectos relevantes do “conteúdo”, ainda que não nos seja permitido compreender a narrativa. Para aquele que desconhece o código, ele poderia estar falando em russo ou hebraico, com a diferença de que cada uma dessas organizações verbais, incluindo Pig Lalangue, tem sonoridades próprias.

Com isso, podemos intuir com uma boa probabilidade de acerto quando ele pode ter dado com a língua nos dentes, quando dobrou a língua pra revelar certo detalhe, ou ainda, no momento em que foi ferino ou jocoso. O que ninguém pode negar é que a língua estava afiada como um canivete naquela noite de 16 de junho de 2011, quando apresentou o trabalho no teatro do Instituto Cultural Brasil Alemanha, em Salvador.

 

EXTRA! EXTRA!

Com exclusividade para o Conectivos Críticos II e para o V Interação e Conectividade, conseguimos uma cópia do texto de Pig Lalangue. Acompanhe a seguir um trecho da obra inédita, em sua escrita original:

Vua dileta fejel camiwa, pedio flo bo ficel cam ujus, gi bo fejeu toe niom, paltoe leojmiote bo niom padie. Dó teve froshie ome sunsheo sun ile flo cese, sun dalmil omes twas naites, preciova ile. Buá uju fejó toe shu jeveve nu panta. Fai camiwa etói le Loi Belbase, fitunas esperonda lu busza, lu medruwoula. Mes ói toe lu medruwoula ficeve nu panta pumba omes dais minotas gi dó sbuáe. Le sheas toe bo teve inda flo fije, uju shu pedió flo bo ficel, fejó toe toske psheseda sheita un shel, gi ushete pu bujó, gi fai jinda. Fitunas jontas pi nava etói omes twas pi telpi, gi cambinunas pi pu shecantrel pi naite nu Dajales, pal vajte mue naite.

Existem várias traduções para a obra, mas nenhuma delas foi reconhecida como autêntica pelo autor até o momento. Segundo Bitencourt, o inventa-línguas, apenas três pessoas no mundo inteiro detêm o conhecimento da história verdadeira, a original em português. Para segurança deles, seus nomes são mantidos em sigilo. Estudiosos de linguística da Universidade de Uberlândia reconhecem a autorreferencialidade explícita tanto no roteiro textual quanto na partitura de gestos, que acompanha a narração. Eles chegaram a essa conclusão ao perceberem certos padrões dominantes na estruturação do dialeto.

Após inúmeras investigações e com a ajuda de dispositivos tecnológicos modernos, como visualizadores de dados de quinta dimensão e leitura óptica do manuscrito, nossa equipe chegou a uma possível (e bastante provável) tradução para Pig Lalangue. Especialistas em arqueologia da dança, entre eles, a doutora Gislene Camargo Soares e o doutor Uildemberg da Silva, ambos da Universidade da Serra da Capivara, juntamente com especialistas em distúrbios da linguagem da Universidade de São Paulo, atestam que esse texto, na verdade, se refere a um solo mais antigo de seu autor, chamado Bife (2008). De acordo com essa teoria, o artista promoveria um talk show para descrever uma versão em vídeo da obra acima mencionada, uma maneira, também, de mantê-la viva. A hipótese parece bem esquisita mas ainda não ganhou réplicas suficientemente fortes que justifiquem sua derrubada.

Procurado inúmeras vezes por nossa equipe para testar a confiabilidade da tradução, Gustavo Bitencourt preferiu não se pronunciar a respeito da polêmica. Em sua página no Twitter, se limitou a postar a enigmática frase “Twas fai fejó”.

Leia, em primeira mão, um trecho da tradução não-autorizada de Pig Lalangue.

 A coisa começa com ele montando os instrumentos no palco. Ou seja, aquilo que, usualmente, é pano de fundo se torna a própria obra. Ele entra e sai, trazendo e conectando os equipamentos. Ele monta a banda, afina a guitarra e toca sozinho. Bate na guitarra. Dedilha a guitarra. Começa a expirar forte, uma vez atrás da outra, sem parar. A cada expiração, uma “guitarrada”. Pula e se desloca, desengonçado e interessante. Sua expiração dá ritmo. Tira os tênis e as meias e dança desse jeito largado e inusitado para um artista. Depois coloca saltos altos e vai para o microfone, expandindo a intensidade (e o volume!) da respiração. Pára. Tira a camisa. Gordinho. Continua a tal dança e a tal respiração. Sinto nojo, às vezes. Gosto da dança. Ele se joga. Tira a calça, a cueca é branca. De cima para baixo: óculos, cueca e sapatos de salto. Respiração é dança. Ele cospe. É nojento. Segura (ou coça) o saco. Dança. Sai correndo pela coxia. Volta e dança sob a batida constante e ritmada da caixa de som. Toma água. Sai de cena. Volta com um cigarro aceso e… dança. Expira pelo nariz incessantemente. Baixou o santo? Ele é bonito. Um moleque sensível. Cada vez mais desajeitado em sua dança, vai até o computador e, sentado no chão, altera a batida e velocidade do som. Levanta e recomeça. Corre, cai, levanta, bebe água, apaga o cigarro e…. dança. (Impossível descrever essa dança, acho que é para isso que ela serve, falar das coisas de um jeito que não dá para escrever ou falar). No microfone, ele, tipo, sonoriza seu corpo, meio bicho, meio nem aí. Dança. Cospe (nojento). (pq não acaba logo?) ele segura ou mexe no pinto. Sua. Dança. Altera a batida. Vai pirar na batatinha de novo. Pega uma gosma e põe nos mamilos (sempre respirando do jeito acima mencionado). Põe também na boca, ela é vermelha e escorre. Ele dança. A meleca cai. Ele põe uma música, bebe água e sai. Volta, desliga o som e pega a guitarra. Restos de meleca digo, geleca, persistem em seu corpo. Ele toca e canta. Termina, põe a guitarra no chão e sai pela plateia, com a bunda metade para dentro, metade para fora da cueca branca.

 1. Termo de Haroldo de Campos no livro “Galáxias”.

Maíra Spanghero é crítica de dança e professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia.