A dança contemporânea não existe: ela se declara

Pesquisadora de dança e coordenadora do curso de Pós-graduação em Dança Contemporânea da UniverCidade, Thereza Rocha faz sua estréia como colunista do idança. Seu primeiro texto trata da polêmica em torno do texto publicado pelo colunista e editor do Segundo Caderno do Jornal O GLOBO, Artur Xexéo (para saber mais sobre o assunto, clique aqui). A nova colunista escreverá mensalmente.

Inaugurando minha contribuição como colunista aqui no idança, não pude furtar-me da oportunidade de dar à dança contemporânea ainda outro espaço de resposta pública ao lamentável texto publicado pelo editor do Segundo Caderno do jornal O Globo, em sua coluna na Revista do Globo do mesmo jornal, no último dia 4/5/2008, intitulado A dança contemporânea. Direito de resposta, este aqui, correlato ao movimento de uma parte da classe que se organizou como signatária da Carta da Dança (leia o conteúdo da carta aqui), enviada por email ao próprio jornalista em questão, bem como a seus chefes diretos. Carta sem autor, porque coletiva, mas, dado o seu caráter, nunca anônima. A tentativa, neste texto, será frear um pouco o esbravejar da letra que faria jus à minha indignação com o conteúdo do texto do jornalista, e chamar a todos para uma boa conversa, a la Mauricio de Souza, com os personagens da trama dialogando de fora do quadrinho. Falar deste outro lugar importa, pois, antes de entrarmos na discussão das opiniões apresentadas no texto do jornalista, é necessário que discutamos o que é ou deveria ser um caderno de cultura de um dos maiores jornais do país, uma vez que ele é seu editor. Depois disso então, nos será necessário apresentar para discussão alguns aspectos que importam à arte contemporânea, e dentro dela à dança, mediados por informações (de fato) balizadas e que merecem (urgente) discussão. De posse destas informações, convidar o leitor a apreciar, a partir de seu próprio arbítrio, a propriedade ou a impropriedade das opiniões do jornalista; a pensar as graves questões que sua publicação suscita; a avaliar o desserviço público prestado por ele em seu texto, para, ao fim, perguntarmos juntos se este é um editor de cultura que queremos ou merecemos.

Uma vez atuando no espaço da internet, livres, portanto, da descomunicação perpetrada por um jornalismo cultural muitas vezes medíocre, a produção contemporânea de arte e seu público podem estreitar o contato em conversa mais direta. A decadência do jornalismo realizado nos grandes meios de comunicação contrasta com a qualidade de toda uma nova gestão de conteúdo viabilizada pela rede e pelo livre acesso às ferramentas de produção e veiculação da informação. Lá, vemos, por exemplo, toda uma jovem crítica de arte produzindo interlocução transversal com a excelência de críticos atuantes na grande imprensa, incluindo aí a crítica de dança realizada no próprio jornal O Globo, cuja letra, de maneira geral, sobrevive em espaço cada vez mais exíguo. Isto é edição e isto é grave. Se um editor de informação não possui aparato conceitual suficiente para lidar com as questões urgentes e desafiadoras da cultura contemporânea, o que ele fará, em seu trabalho, senão de(sin)formar os seus leitores? A pergunta que não quer calar é: a quem e a que interessam as opiniões preconceituosas de Artur Xexéo a respeito da dança contemporânea? Elas nos importam sim, pois elas são reveladoras de (grave) sintoma. Elas nos importam, sobretudo naquilo que o caso específico informa da condição geral.

Conforme todos sabem, Artur Xexéo exerce dupla função no jornal O Globo: como editor e como colunista. Que o colunista se ocupasse de elogiar e festejar, com todos os fogos de artifício disponíveis na literatura, seu deflagrado apreço pela obra da coreógrafa Deborah Colker, nada haveria a comentar. Que o colunista citasse com aspas e referência, como manda o figurino, a crítica de Cruel, recente estréia da coreógrafa na cidade, publicada por Roberto Pereira, no Jornal do Brasil, em 27/4/2008, com cujo texto o seu “dialoga”, seria no mínimo mais honesto. Nada temos a dizer ao colunista que se vale da licença da pena a ele concedida pelo jornal para deitar sobre o papel suas opiniões estéticas. É a coincidência entre o colunista e o editor que compõe a gravidade do fato e o interesse do caso. Pois, estamos tratando aqui, antes de qualquer coisa, do aparato conceitual, no caso o estético, com o qual o jornalista Artur Xexéo arbitra sobre a produção de arte. E seríamos muito ingênuos em acreditar que onde fala o colunista, cala-se o editor, ou seja, que as ferramentas estéticas utilizadas pelo jornalista para ler a cena contemporânea de dança (e eu estenderia aqui à arte contemporânea como um todo) sejam diferentes em cada lugar. Deste modo, é importante reiterar, nosso interesse principal aqui não é responder ao jornalista mais uma vez (este texto não é uma carta). Falando daquele outro lugar, importa-nos, antes e sobretudo, utilizar todo este imbróglio suscitado pelo texto para um exercício de análise do imbróglio cultural generalizado em que estamos metidos e que é denunciado todas as vezes em que uma obra de arte (de fato) contemporânea aparece. Assim, poderemos dar voz ao relevante debate estético e à política a ele concernente que se esgueiram nos interstícios dos textos.

A arte não existe mais. Ela se declara.

Harold Rosenberg

A arte produz sempre e a cada vez as suas próprias palavras. Em movimento que lhe é próprio (relação tensa e paradoxal entre história e atualização; entre antigo e novo), ela mesma cunha os conceitos com os quais a crítica (incluindo aqui não só a crítica especializada, mas todos os produtores do assim chamado criticismo) e o público constituirão a lida com as obras. Se a história adicionou ao vocábulo ‘arte’ o conceito de contemporaneidade, há algo aí a ser visitado a partir ao menos do respeito ou, quando é possível, do bom senso.

Sendo arte, a contemporânea também inaugura conceito no mundo. O que é peculiar em seu gesto é inventar o conceito de dentro da obra produzindo concomitantemente, ou seja, também de dentro da obra, os pressupostos que lhe darão sentido. Para isso, questiona inevitavelmente pressupostos vigentes que assegurariam de antemão a uma obra tornar-se de arte. Ao fazê-lo pergunta antes e concomitantemente na obra: o que é arte? Sua escolha é caminhar por sobre terreno acidentado, abrindo mão das garantias em favor da atenção dedicada do artista àquela composição (nascimento) em particular. Na arte contemporânea, os pressupostos que mediam o contato entre obra e espectador, seja este especializado ou não, são contraditoriamente não-apriorísticos, ou seja, só se dão a ver depois. Depois de que? Depois que a obra está pronta, poderíamos dizer. Mas, se tomarmos como princípio que a obra de arte contemporânea nunca está pronta, pois admitiu o provisório no reino da criação e do conceito; pois ela depende do contato com o espectador para encontrar seu sentido e que, sendo assim, ela não pertence ao artista, mas à relação, não existe nunca um depois da obra contemporânea. Nem um antes. Na verdade, para que a arte possa constituir sentido contemporâneo na obra, teríamos que falar de uma concomitância entre obra e conceito, de uma relação de colaboração ambivalente entre eles, um sempre contemporâneo do outro. Quando dizemos arte contemporânea, estamos dizendo que a arte pode ser ou não ser contemporânea. Visitando a véspera do nascimento da arte, estamos fazendo deste fato (do nascimento da obra) um problema estético.

Quando dissermos dança contemporânea, portanto, não estamos, por obra do capricho, dizendo a mesma coisa que seria dita com dança moderna ou com dança atual. Se uma ou outra dança é dança contemporânea é também porque há algumas tantas outras que não o são. Se a dança é contemporânea é porque sempre e a cada vez, a cada nova obra, ela, a dança, deambula na direção da origem, daquilo que lhe deu sentido, para perguntar: – O que é dança? O que constitui algo em dança como arte? Arrastará todos os mecanismos disponíveis, e inventará ainda uns tantos outros, no esforço da única mis-en-scène que lhe cabe em tal contexto: em cena, a pergunta.

Se a dança é contemporânea é porque faz da cena, hoje em dia, nesta cidade, quase que exclusivamente no Espaço SESC, uma oportunidade de encontro de fato contemporâneo, ou seja, fazendo da cena um espaço de permuta democrática dos pressupostos (o conceito de Arte cunhado na eternidade) que confeririam inadvertidamente valor ou desvalor à obra, não fosse seu questionamento público. A dança é contemporânea também porque encena todos os problemas que envolvem o contato obra/espectador; porque encena a política intrínseca à espetacularidade. Abre mão da espetacularidade (das facilidades e da crueldade que lhes são intrínsecas) em favor da disponibilização ao espectador dos meios que a produzem; em favor de uma troca em que as partes tenham acesso ao que está pressuposto na relação. E isto é sim uma política!

Se há dança contemporânea de excelência em exercício nesta cidade é porque soubemos escrever uma história de vulto nos últimos trinta anos, encontrando os meios de diálogo de seu gesto intrinsecamente político com a indústria cultural angariando, inclusive, para esta municipalidade, o epíteto de capital da dança contemporânea brasileira. E a dança contemporânea carioca fez isso, sobretudo por mover-se com bastante fluidez em um dos pressupostos mais trabalhosos da contemporaneidade em arte: a convivência (obviamente nem sempre amistosa) das diferenças. Neste sentido, respondendo, aí sim, ao texto do jornalista, Deborah Colker é nossa, Sr. Xexéo, e nós que lidemos com este problema (questão).

A dança contemporânea, seja ela carioca ou não, faz tudo isso quer em acordo, quer em desacordo com o criticismo que lhe é atual e que muitas vezes, reiteradas vezes (confesso que já estamos cansados desta repetição), não lhe é contemporâneo, ou seja, não se dedica a descobrir os vocábulos, as sentenças, os juízos que lhes são intrínsecos e que lhes darão sentido, sempre a cada vez.

Editar é cortar: escolher e dar sentido. Todo editor de cultura é, portanto, um curador. Um curador de idéias, de informação, de palavras. O imbróglio estético aqui apresentado, tendo o Sr. Artur Xexéo como mote, ilustra e denuncia o mesmo imbróglio de idéias e palavras em que nós, artistas e público, estamos metidos, proveniente de um desconhecimento generalizado por parte dos mediadores da cultura, responsáveis pela leitura de seu tempo, pelo arbítrio, pela valoração e pela disponibilização da informação. Nossa relação está mediada desde sempre (a) pelo jornalismo cultural em suas notas, notícias, colunas etc; (b) pelos editais de fomento público à produção artística quer sejam de competência municipal, estadual ou federal; (c) pelos expedientes formalizadores de campos de saber, de exercício profissional e fiscal, perpetrados pelos Ministérios da Cultura, da Educação, do Trabalho ou da Fazenda. Trata-se nos três casos citados de funções exercidas por curadores-editores muitas vezes bem pouco atentos, instrumentalizados e permeáveis às sempre renovadas poéticas e políticas organizacionais da criação.

Se editar é cortar, escolher e dar sentido, podemos também dizer que editar é constituir design de futuro. A que idéias, palavras e conceitos está sujeito o nosso design de futuro?

Thereza Rocha é Doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO e Mestre em Comunicação pela ECO/UFRJ. Diretora de espetáculos e pesquisadora de dança é professora dos cursos de dança e teatro do Centro Universitário da Cidade – UniverCidade onde também coordena o Curso de Pós-graduação Lato Sensu Estudos Avançados em Dança Contemporânea: coreografia e pesquisa.