A dança e as relações de convívio

Recentemente, estudos na área de antropologia e sociologia trazem questões sobre a civilização, fazendo voltar à atenção para como os indivíduos se uniram (afinidade, sobrevivência, reconhecimento, dominação), se agruparam, e conviveram, partilhando diferenças e lideranças em vários modos de organização: bandos, tribos, cacicados e civilizações [1].

Buscando anseios antigos com novas proposições, o evento Pública Dança, gestado pelo Coletivo Quadra Pessoas e Idéias , sediado em Votorantim (SP), adota como procedimento de investigação, uma problematização da cultura humana: Como, na civilização urbana atual, podemos conviver coletivamente e potencializar nossas habilidades no co-habitar? Nem precisamos voltar no tempo das tribos ou bandos para perceber as inúmeras negociações e alianças necessárias decorrentes da sobrevivência no viver grupal.

A aparente simplicidade do fato posto: “vivemos em sociedade e precisamos interagir de alguma forma”, quando levado para um ambiente de estratégias de criação e processos de trabalho colaborativos em dança, reviram estruturas estabelecidas de movimento e do fazer artístico.

E revirar as estruturas estabelecidas é quase uma especialidade do Pública Dança. Lá, tudo foge absolutamente do padrão habitual: as denominações [2], o encarte do evento, as explicações das atividades, as imagens impressas, a programação aberta, a ausência de cronograma prévio, entre outras rupturas do esquema “tradicional” de um evento de dança contemporânea.

Entre regras e transgressões, presentes no mundo da arte, a opção clara deste coletivo é de estabelecer a primeira pela segunda. Os confrontos decorrentes do ambiente transgressor proposto pelo Quadra Pessoas e Idéias são vários, assumidos e, até certo ponto, esperados por esta comunidade de dança que habita convictamente a cidade de Votorantim.

Para os que não a conhecem, esta cidade entrou no mapa da dança, já há algum tempo [3] pelas ações deste coletivo que convida, busca e leva personalidades da dança para conhecer o que fazem por lá. Votorantim, antigo distrito de Sorocaba, é habitualmente confundida com a empresa de cimentos homônima e fica a cerca de 100 km da capital São Paulo, formando um triângulo com Campinas. Uma cidade pequena, aproximadamente 100 mil habitantes, que a cada ano amplia sua convivência com a dança nas múltiplas inserções do Quadra.

As performances e intervenções cênicas em escolas públicas, nas feiras livres, nas aulas de dança para crianças e jovens no Núcleo de dança, no convite a centenas de jovens para jogar com o corpo e no projeto de potencialização de agentes culturais na região (Comunidade em Produção) são algumas das ações promotoras de mudança no ambiente local.

O Pública, como coloquialmente é tratado, em sua quinta edição, aconteceu entre 14 e 26 de maio deste ano, porém, segundo Rodrigo Chiba, o evento não é, em si, o mais importante.

Com o tema “Idéias transitórias para espaços solúveis” convidou a comunidade para pensar na questão norteadora do encontro: Em que ambiente você vive?

Várias atividades acontecem durante todo o ano, garantidas pela presença de patrocínio, tais como a FUNARTE (Prêmio Klauss Vianna), PETROBRÁS e outras parcerias institucionais. Algumas de maior permanência e continuidade, como as aulas regulares do Núcleo de dança e as criações cênicas do Coletivo, outras, próprias desde período, como interferências e performances artísticas, apresentações, conversas no café, oficinas e visitas de artistas convidados pela organização.

Os convidados circulam pela cidade e podem perceber como, fora do evento, a cidade recebe e conhece dança. Para quem chega pela primeira vez no Pública Dança, como foi meu caso, admiração e estranheza misturam-se.

A arte fica inserida na vida da comunidade, provocando um embaralhamento entre atividades cotidianas habituais e o fazer artístico, uma mistura entre dessacralização e banalização dela, ao mesmo tempo.

Como um mundo irreal e, subversivo, pode-se ver interferências artísticas em espaços públicos, em um jogo de corpo entre mais de 600 jovens da cidade, na sala de desenho de detentos da FEBEM, entre os participantes, em discussões virtuais, isto tudo ali, em Votorantim.

O eixo condutor de tanta multiplicidade é trabalhar coletivamente com liberdade de expressão, segundo Marcelo Proença, uma liderança (mesmo que não queira assim assumir) entre eles.

A ansiedade de tentar responder algumas dúvidas aquieta-se ao escutá-lo apresentar, quase sempre na primeira pessoa do plural, o termo “tecnologia do convívio”, e explicar calmamente o interesse do grupo em manifestar, com extrema liberdade, seus processos de trabalho em dança, dança esta que prioriza o corpo como possibilidade de ser neste mundo.

A força jovem e a disponibilidade dos corpos dos integrantes do Quadra são contagiantes. Muito me impressionaram as habilidades de comunicação dos participantes deste coletivo, que, diferente do que é rotulado como juventude, sabem bem articular o que desejam, seus argumentos sobre dança, com segurança admirável, gentileza no sorrir e convidar para estar-junto.

O Pública descortina alguns véus da dança e sabe muito bem divulgar o que produzem, mesmo que estejam mais focados no caráter processual de suas produções do que nas suas resoluções cênicas.

Como uma visita apreciadora, encontrei em Votorantim um “território flutuante”, onde não faço distinção clara entre realidade e ficção, desejando acreditar incessantemente em um ambiente que a dança, em suas múltiplas formas, possa estar no cotidiano e nos corpos da comunidade.

Parece que lá acontece um sonho hippie, anos 60 (sim, aquele sonho antigo de muitos), de arte como revolução, aliado a questões do terceiro milênio: responsabilidade social, educação para todos, desenvolvimento sustentável e ações inclusivas (sim, todos aqueles termos do terceiro milênio adotados pelo compromisso em um mundo melhor).

Muito do que vi, ascende uma esperança. Aceito bem a idéia de que a compreensão de procedimentos complexos no fazer artístico tem mais probabilidade de acontecer quando estabelecemos sistemas de trocas e intercâmbios. Experiências me afirmam que o trabalho colaborativo propicia um avanço nos relacionamentos, na capacidade de compreensão de um todo fora do particular.

Porém, suspeito que não seja tampando o espelho narcísico da dança e propondo um olhar ao/no outro que se desfazem os procedimentos “incorporados” de uma educação estética pautada na competição individualista (das carteiras escolares à barra de dança).

Muitos de nós buscam caminhos para isto e existem várias formas de estar-junto dançando. Percebo ainda que não basta agruparmos pessoas em torno de um ideal comum para que o trabalho torne-se colaborativo/grupal, e isto foi percebido pelo coletivo também.

Com esta proposta, o Pública corajosamente, desafia e transgride o mundo tradicional da dança. Leva com isto, muitos olhares curiosos e sonhadores para junto deles. Sabem se colocar no foco dos desencantados com as velhas fórmulas e buscam novas estratégias para encontrar a dança.

Ter estado lá foi um grande prazer e ajudou a remexer algumas questões de dança que gostaria de jogar com os leitores deste texto e colocar na roda para uma troca:

• Quais são as diferenças entre os trabalhos colaborativos, coletivos e cooperativos em dança?

• Como podemos trabalhar, em experimentos colaborativos, com pessoas de diferentes (in) formações e vivência de dança e que todos possam contribuir e interessarem-se uns pelo o que fazem os outros de maneira significativa?

• Para onde caminham os procedimentos investigativos da dança que não se preocupa com o produto artístico?

• Composição instantânea e aprendizado de movimentos: mudou-se o tempo do corpo no fazer dança?

Acredito que estas perguntas já foram feitas por muitos de nós, mas vale a pena repensarmos juntos de quantas maneiras, com mais ou menos facilidade, acertos e erros, vamos pensando e fazendo dança neste vasto país.

Pode ser que no meio de nossas trocas, o Quadra esteja agora adotando novos procedimentos e estes aqui abordados não sejam mais válidos. Tudo tem movimento e como eles próprios me disseram, quando você voltar, tudo pode estar diferente… E com certeza, vou voltar para ver.

Notas:

[1] Projeto “Cronologias regionais, hiatos e descontinuidades na história pré-colonial da Amazônia” de Eduardo Góes neves (MAE/USP).

[2] Tais como “Estudos indisciplinados sobre disciplinaridades”.

[3] A primeira edição do Pública Dança (ex-Fórum Pública Dança) aconteceu em 2003.