A dança na cultura digital

Texto originalmente escrito para a CAIS, publicação do Porto Rebouças Estufa Multidisciplinar, Curitiba-PR.

Bem-vindo ao mundo das redes, dos processadores, dos servidores, da informação on-line, da interligação por meio de links e das conexões sem fio! Estamos vivendo o século da cultura e da comunicação digital, aonde janelas e mais janelas se reproduzem diante de nossos olhos, solicitando nossa atenção e interação. São visores de todos os tipos e tamanhos presentes em celulares, games, palmtops, computadores, câmeras e tevês. Embora a cultura digital esteja intimamente relacionada aos aspectos de interconexão e interatividade presentes nessas ferramentas, sua disseminação vai muito além da manipulação direta das tecnologias participantes desse processo. Qualquer pessoa que olhe um outdoor, folheie uma revista, passe num caixa de supermercado…está sendo contaminada, em diferentes escalas, pela cultura da interface.

A cultura digital também nos remete à invenção do microchip associada à linguagem dos computadores. Também chamada de código de máquina ou sistema binário, essa linguagem é composta pela combinação de apenas dois números, 0 e 1, que são capazes de codificar textos, imagens e sons. Portanto, por trás de qualquer música, frase ou foto, há um conjunto de dígitos a representá-los. A mistura de 8 dígitos de zeros e uns, um byte, formam um caráter qualquer. Por exemplo: 1010 0001 é o código que representa a letra A. Desse modo, na língua do computador, a palavra ‘amor’ é escrita assim: 1010 0001 1010 1101 1010 1111 1011 0010.

O que pode acontecer, então, quando a dança encontra os bits e bytes?

A dança implementada nos ambientes digitais, ou criada a partir dele, ocupa listas de discussões, comunidades virtuais, fóruns, revistas eletrônicas, cd-roms, palcos, dvs, mídias interativas, videodanças, além das mais variadas interfaces, como veremos a seguir.

Dança e computador

As relações entre dança e computador começaram a se configurar na década de 1960, quando os primeiros artigos anunciavam as experiências de assistentes coreográficos eletrônicos. Em 1965, Jeanne Beaman e Paul le Vasseur inauguraram pesquisas na área e, desde então, softwares são desenvolvidos para notação, composição, análise e criação de movimentos. Enquanto ferramentas como o Labanotation, o Benesh Notation, o Motif Writing desempenham um papel fundamental na preservação e reconstrução de danças; o Life Forms e o Dance Forms, além da visualização e notação, revelam-se eficientes instrumentos para a criação e para o ensino.

Dance Forms apropriou-se do legado de seu antecessor, o Life Forms, e contou com a ajuda de professores e coreógrafos para ser concretizado. O programa possibilita tornar visível a dança em um ambiente 3D (tridimensional), pode ser utilizado também por artistas de outras áreas e inclui, animações de balé e dança moderna. Tudo direcionado ao gosto do freguês. Já o Life Forms, desenvolvido pelo Departamento de Dança e Ciência da Simon Fraser University (EUA), é um software usado para animação de modelos, para edição de motion capture (processo de capturar o movimento do corpo com roupas especiais que estão conectadas ao computador) ou para manipular animações de qualquer outra fonte. A empresa Credo Interactive disponibiliza uma versão demo, para quem se interessar em experimentar a interface.

O coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, um dos mais importantes artistas vivos da atualidade, foi pioneiro no emprego de computadores relacionado à dança. Desde dos anos 60, Cunningham demonstra o interesse em associar a dança aos novos suportes midiáticos. Entre outros trabalhos, em 1966, ele realizou o inovador “Variations V”. O coreógrafo produziu também inúmeros filmes e vídeos em colaboração com videoartistas como Jum Num Paik, Charles Atlas e Elliot Caplan.

Na década de 1990, o criador passou a utilizar o Life Forms como um recurso dentro de seu processo de investigação de movimentos, sendo considerado um dos primeiros usuários da ferramenta. O espetáculo “Trackers” (1991), por exemplo, foi um dos que usufruiu desse contato com a tecnologia digital.

Em 1997, Cunningham produziu “Biped” (1999), em parceria com Paul Kaiser e Shelley Eshkar, os artistas do grupo Riverbed Media. A obra pôde ser presenciada pelo público brasileiro no ano passado, na última visita da Merce Cunningham Dance Company ao país. Sorte de quem estava lá para ver as impressionantes e belas holografias que dividiam as cenas com os bailarinos no palco. No Brasil, costuma-se situar a origem das criações de dança em interação com o computador, a partir da década de 1970, com as experiências da bailarina Analívia Cordeiro. Ela usou a máquina para planejar a atuação dos dançarinos e da equipe de tevê (que capturou as imagens), naquilo que chamou de computer dances. Algumas videodanças desenvolvidas com este procedimento foram “M 3 X 3”, “Gestos”, “Cambiantes” e “0° = 45°”. Cordeiro desenvolveu, também, o Nota-Anna, um sistema de escrita eletrônica voltado para o registro do movimento, em sua trajetória no espaço e no tempo, baseado no Método Laban.

Instalação virtual de dança

A instalação “Ghostcatching” é outra obra de referência dos artistas do Riverbed Media, realizada desta vez em parceria com o bailarino americano Bill T. Jones, diretor artístico da Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company. A particularidade dessa criação reside no processo de motion capture ou captura do movimento.

Sensores de luz foram atachados em 22 pontos do corpo do bailarino e oito câmeras foram posicionadas para gravar o percurso dos sensores no escuro. Na seqüência, um programa convertia as imagens em arquivos tridimensionais, transformados através do “Biped” (bípede), uma ferramenta sofisticada para “traduzir” o movimento humano, a mesma utilizada na coreografia homônima de Cunningham.

Em sua forma final, renderizada, os corpos tridimensionais de “Ghostcatching”, se situam entre rabiscos e raio X, dando a impressão de que são as pinceladas que o corpo fabrica ao dançar.

Hipermídia

Na área do CD-ROM, “Improvisation Technologies – a tool for the analytical dance eye” (1999), desenvolvido em parceria com o Ballet de Frankfurt (quando William Forsythe era seu diretor) e o Centro de Arte e Mídia ZKM, em Karlsruhe, na Alemanha, é genial. Consiste num assistente digital para o treinamento de bailarinos que, ao mesmo tempo, registra a memória desse conhecimento.

A hipermídia, que é comercializada, contém explicações e demonstrações em vídeo sobre os métodos de improvisação do Forsythe, descritos por ele com suportes gráficos e animações.

Corpo controle remoto

Em abril deste ano, a performer e coreógrafa Rosemary Lee apresentou a instalação “Remote Dancing” (2004), durante o Springdance Festival 2005, em Utrecht, na Holanda. Num corredor comprido e sombreado, com sensores e projeção ao fundo, o visitante podia interagir, através do movimento de seu próprio corpo, com os dançarinos da tela, criando, assim, um pas-de-deux bem particular.

Além de viver a experiência de ser coreógrafo e bailarino ao mesmo tempo, quem experimenta a situação proposta tem a impressão de que o seu corpo virou um dispositivo de controle remoto. A projeção na tela vai reagir, por exemplo, conforme você andar para frente e para trás e, de acordo com a alternância de velocidades. Entre outras palavras, é o movimento do corpo-interator que aciona o stop, o play, o fast forward, o pause…

Rosemary Lee, que também é autora de solos e videodanças, conduziu “Remote Dancing” em parceria com Nic Sandiland (concepção técnica) e com a composição musical de Graeme Miller.

Blogs

As comunidades virtuais e redes sociais, que emergem associadas à ferramentas eletrônicas, são responsáveis por reunir milhares e milhares de pessoas para partilhar idéias, informações e interesses sobre os mais variados assuntos. Trata-se de um dos fenômenos mais importantes relacionados à cultura digital. Isto porque essa nova forma de encontrar os outros está relacionada com conhecimento, memória, compartilhamento, troca, pertencimento, entre outras questões, como a co-autoria.

O projeto Playing Grounds, por exemplo, explorou a idéia de coreografar como um processo público e aberto. Para tanto, utilizou um blog (abreviatura de weblog, que consiste no registro de atividades, performance e acessos de um web site) para mediar esse processo. Essa ferramenta permite que qualquer cidadão, com um computador conectado à internet, possa publicar textos, imagens e vídeos, e receber comentários de quem quiser se pronunciar, formatando assim uma rede de interesses e interessados.

No blog do Playing Grounds estão disponibilizados os registros das pesquisas, organizados por semana, com testemunhos dos dançarinos e explicações sobre o dia-a-dia de trabalho. As impressões e sugestões deixadas foram incorporadas à coreografia, ressaltando, assim o caráter coletivo e o da co-autoria, na construção do conhecimento.

Bodyweave

Em São Paulo, o 15º Videobrasil Festival Internacional de Arte apresentou “Bodyweave” (2005), a mais recente obra da veterana Lali Krotoszynski, que desenvolve trabalhos artísticos pautados em processos tecnológicos, desde 1986. A obra foi produzida com a colaboração do compositor e matemático Jônatas Manzolli e do programador Jarbas de Moraes Neto, no Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora, da Universidade de Campinas (UNICAMP).

O título já nos dá algumas pistas. Weave significa tecer, entrelaçar, tramar. Dança tecida e trançada com as mídias digitais. É dança entrelaçada, mediada pelo mouse, a partir das escolhas clicadas do espectador-interator. “Bodyweave”, portanto, é uma mídia interativa cuja interface gráfica permite combinar sonoridades e imagens do corpo, para montar um filme de seis quadros.

Em 1999, Krotoszynski começou a pesquisar as possibilidades da internet para a dança e criou “Dance Juke Box”. Mais tarde, durante uma bolsa-residência (da Unesco-Aschberg) de três meses no Centro de Pesquisas Avançadas em Arte, Ciência e Tecnologia, o CAiiA-STAR, na Inglaterra, a artista desenvolveu “Entre”, que conta com a interface Dance Machine Station para capturar e registrar imagens dos participantes, que produzirão seqüências coreográficas, editadas em tempo real.

Animação, movimento e ação remota

Já o bailarino mineiro Vanilton Lakka se dedicou ao problema de instalar a dança em contextos alternativos e partiu para testar lugares nos quais ela pudesse acontecer, que não fosse em seu próprio corpo, onde ele possui um domínio admirável. Com o propósito de investigar essas outras possibilidades de existência para a dança, mais precisamente para o movimento (porque nem todo movimento é dança), Lakka desenvolveu o projeto “O corpo é a mídia da dança?” (2005), com o apoio do programa Território Minas, do Fórum Internacional de Dança (FID), em Belo Horizonte.

Implementado em formatos coreográficos diferentes, e com a imprescindível colaboração de Cyntia Reyder, o projeto coordenado por Lakka explorou suportes que pudessem abrigar o movimento, tais como: o telefone e a secretária eletrônica (ligue 31-32132220), a internet (concepção de Maurício Leonard), o flip book (desenho de Rafael Ventura), o carimbo, além da dinâmica de movimentos que o dançarino apresenta ao vivo. Repare que em todos esses casos a interação é requerida e o público-interator pode começar por qual formato desejar, na ordem que quiser.

A dança de Lakka, em seu formato digital, requer que você deslize o mouse sobre um espaço on-line para criar uma animação, a partir de fotos do bailarino.

Dançando com sensores

Outra companhia que se destaca neste cenário é a Kondition Pluriel (Montreal), que investigou a manipulação do vídeo, das imagens captadas em tempo real, da música e de ambientes 3D pela dança. Os diretores artísticos Marie-Claude Poulin (dança) e Martin Kusch (artemídia) localizam suas pesquisas no campo da dança contemporânea que se cruza com instalações performáticas e ambientes responsivos. Em 2002, a companhia esteve no Brasil para ministrar um workshop e apresentar, o então inédito “Schème II”, dentro do Programa Interatividades, do Itaú Cultural.

No espetáculo, as bailarinas Marie-Claude e Line Nault têm atados em seus braços, pernas e cabeças sensores MIDI data (protocolo de transmissão de dados entre instrumentos musicais digitais e/ou programas computacionais), que permitem comunicação do movimento do corpo com o computador e as projeções. O intuito é que esse processo humano-máquina estabeleça uma nova arquitetura, ao investigar as relações entre tempo, memória, corpo e espaço.

A oportunidade de examinar esses procedimentos de perto me levaram a participar do workshop. Durante o encontro, experimentei o uso dos sensores nas mãos. A experiência foi extraordinária do ponto de vista sensório-motor. Com os dispositivos acoplados e observando os parâmetros definidos – rotação para direita e esquerda ou inclinação para cima e para baixo – pude sentir meu corpo, à distância, construir e manipular a imagem que estava sendo projetada. Havia uma nítida sensação de pertencer a um espaço alheio, mas que parecia ser parte de mim.

Embora a experiência de dançar com sensores seja pessoalmente impactante, o mesmo não se aplica ao público que assiste a obra, que pode até mesmo não perceber essa característica significativa.

Dança na rede

A qualquer hora, dança on-line.

O contato com a rede mundial de computadores tem transformado a criação coreográfica e a expansão de muitos artistas. É o caso da companhia francesa Mulleras, que desenvolveu “Mini@tures” (N.R: algumas imagens do projeto, podem ser encontradas no blog do idanca.net) um dos primeiros projetos de dança contemporânea concebido para a internet. Trata-se de uma bem-sucedida mistura entre linguagem coreográfica, música eletrônica, web design e computação gráfica.

Desenvolvido em três fases, graças a um conectado trabalho de equipe, a obra engloba pequenos e curtos vídeos numerados, com menos de um minuto de duração. Ao todo, são 100 microdanças, acessíveis no site do grupo, e mais a performance produzida para a cena ao vivo. Pelo fato de usar a net como palco, o processo de criação levou em consideração os tipos de conexão das máquinas, o tempo de download e o tamanho do arquivo, parâmetros que determinaram a criação.

Realizado entre 1998 a 2001 e exibido nos principais eventos de arte e tecnologia do mundo, “Mini@tures” utiliza recursos da computação gráfica e gera uma dança que pode caber na palma da mão! O trabalho mais recente da companhia é “Invisible”, aonde a estética das imagens ganhou uma nova organização e aprofundou a noção da interatividade em relação ao trabalho anterior.

Outras referências

Como se sabe, o grupo Cena 11 Cia. de Dança, sediado em Florianópolis, vem se afirmando, nos últimos anos, uma das referências mais importantes de pesquisa em dança contemporânea onde a cultura digital está embebida no corpo de quem dança, além da presença de aparatos tecnológicos empregados no espetáculo.

Em 2000, com o propósito de discutir o conflito entre realidade e ficção, surge “Violência”, uma primorosa interface cênica que transporta o mundo virtual dos videogames para os corpos vivos. Mais recentemente, no excelente “SkinnerBox” (2005), dispositivos comandados remotamente (robôs) entram em cena para provocar reflexões sobre liberdade e regra.

O espetáculo “Por que nunca me tornei um/a dançarino/a”, do Núcleo Artérias (SP), coordenado por Adriana Grechi, transportou a experiência dos VJs de manipulação de imagens em tempo real, para dentro do espetáculo, através das mãos do videoartista Rodrigo Gontijo. Esta proposta pode ser considerada uma evolução das primeiras videodanças, outra linhagem de investigação, que comporta os artistas e grupos interessados na interface entre dança e imagem, como o DV8, o Rosas, o Merce Cunningham, entre tantos outros.

Existem muitas outras iniciativas e experimentos sendo realizados nesse campo. Companhias como a Palindrome Intermedia Performance Group, fundada por Robert Wechsler, constitui-se como uma referência fundamental para os interessados em dança-tecnologia. Em “Electrodes” (1999), por exemplo, o bailarino dança com tipos diferentes de eletrodos acoplados (incluindo os de batimento cardíaco e os sensores de toque), onde os sinais elétricos que estimulam a ação muscular são eletronicamente usados para controlar os efeitos de luz e som. Num outro trabalho, “Me, myself and I”, solo da bailarina Emily Fernandez, há o uso de um software de processamento de imagens em tempo real, que produz sombras em delay e sobrepostas, a partir da dança executada.

Enciclopédia livre e coletiva

Por fim, se você quiser contribuir com o conhecimento sobre a dança, ou simplesmente acessá-lo, não deixe de conhecer a Wikipédia, uma enciclopédia virtual cujos verbetes são construídos com a ajuda de internautas do mundo todo, assíduos ou não. Um Wiki (significa ‘rápido’, na língua havaiana) consiste numa coleção de janelas interligadas, que pode ser visitada e editada por qualquer pessoa. Trata-se de uma forma democrática e simples de anexar saberes a uma página virtual.

Os verbetes são monitorados e encorpados por um impressionante trabalho de auto-gestão, mediado por assistentes tecnológicos e humanos. A Wikipédia é, portanto, um trabalho colaborativo em constante expansão e aprimoramento, com leitores propondo páginas novas sobre seus interesses e comentando as já existentes. A enciclopédia tem versões em 53 línguas, incluindo o esperanto.

E por fim, se você encontrar meu login por aí, me adiciona, vai.

SUGESTÃO DE LEITURA

COSTA, Rogério da. (2002). A Cultura Digital. São Paulo, Publifolha.

JOHNSON, Steven (2001). Cultura da Interface, como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

SPANGHERO, Maíra (2003). A Dança dos Encéfalos Acesos. São Paulo, Itaú Cultural.