A formação de professores de Dança no Brasil

A produção deste texto surge no momento em que desenvolvo meu projeto de dissertação no Mestrado em Dança da Universidade Federal da Bahia sobre os currículos das Licenciaturas em Dança no Brasil. O interesse de debruçar-me academicamente sobre este tema surge também por minha experiência como dançarino e professor no Ensino Fundamental, Médio e Superior, tendo a Dança como principal elemento artístico-pedagógico. Durante o percurso de estudos desenvolvido até aqui pude perceber que a produção acadêmica sobre ensino de Dança em nível superior ainda é muito pequena, visto que este campo de atuação também é relativamente novo no Brasil, como mostrarei adiante. Contudo, estudos que deflagrem ou problematizem as questões próprias deste universo, ou mesmo que demonstrem os avanços e sucessos de propostas artístico-pedagógicas relevantes, colaboram no sentido de ampliar o debate sobre a formação dos profissionais da Dança em todo o país.

Nesta pesquisa meu interesse consiste em avaliar as (im)pertinências dos currículos de Licenciatura em Dança no que se refere à capacidade de construir uma sistematização tanto da cultura artística quanto das práticas didáticas pautados nas noções contemporâneas sobre dança, corpo, e educação. Estão sendo avaliados neste estudo os currículos e os projetos pedagógicos de cursos de Dança no Brasil que tenham a Licenciatura como foco em suas modalidades de formação. Nessa oportunidade acesso uma coleção de dados que me permite traçar o que venho chamando de geografia atual do Ensino Superior em Dança no Brasil, em nível de graduação. Ao compartilhar estas impressões iniciais com o leitor, abro também a possibilidade para o intercâmbio de idéias que certamente trará contribuições para o avanço de minha pesquisa bem como alimentará discussões sobre o tema da formação do profissional da Dança em nível universitário. Contudo, cabe ressaltar que me concentrarei em desenvolver aqui neste texto os aspectos pertinentes às minhas reflexões sobre o contexto pedagógico do ensino da Dança em nível superior, especificamente, a formação de professores de Dança.

O texto aqui apresentado é uma revisão ampliada do material publicado no site da Rede Sudamericana de Danza , em julho de 2007.

Breve mapeamento

Vivemos numa época caracterizada pelo volume e grau de transformação produzida em todos os níveis do conhecimento. O pensamento científico, após varias revoluções que marcaram significativamente a história da humanidade, vem questionando a vigência de suas propostas, bem como a natureza dos seus métodos e fundamentos do seu fazer. Essas mudanças chegaram também para a filosofia, as religiões, as artes, a educação e suas instituições. Contudo, “concordam diversas interpretações em que os sistemas educacionais não se saíram bem nestes desafios, e que apresentam uma considerável rigidez nas suas estruturas, em seus métodos e conteúdos”. (RUZ, 1998, p. 98). Ao propor uma análise das estruturas que sistematizam a formação do professor de Dança em nível superior fez-se necessário reunir uma série de informações históricas que podem apontar uma possível trajetória para o percurso da Dança nas universidades brasileiras. Tenho clareza da complexidade dos fatos históricos e, portanto, mesmo primando por certo cuidado na busca das informações aqui compartilhadas, não me isento de cometer alguma falha em tais apontamentos. Além do que, este intento tem também por função compartilhar informações para a análise da classe de Dança recebendo críticas e sugestões que, certamente, poderão colaborar para um registro mais seguro historicamente.

Conforme aponta a professora Dulce Aquino (2003), durante muitos anos, o estudo da Dança no Brasil esteve resguardado pelas Escolas Municipais de Bailados dos teatros de grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro. Criadas entre as décadas de 1920 e 1940, a especificidade de ensino destas escolas era a preparação profissional de bailarinos para os corpos de baile destes teatros. Desta forma, a ênfase se dava quase que exclusivamente no trabalho técnico do dançarino e, como não havia espaço para todos os profissionais nas companhias oficiais residentes, “os excedentes (…) optavam, em geral, por continuar suas atividades profissionais exercendo o magistério de dança” (AQUINO, 2003, p. 37-38). Não havia até o momento um espaço para sistematização do conhecimento em Dança na direção de uma reflexão sobre questões pertinentes a área, que pudesse ampliar as possibilidades para outros entendimentos que extrapolassem o viés técnico-instrumental próprio das academias e ateliês de dança. Este conhecimento instrumentalista não era suficiente para que a dança pudesse avançar nas discussões dos seus próprios problemas aumentando suas possibilidades de estudos sem o caráter restrito da abordagem de técnicas tradicionais.

A trajetória da Dança no ensino superior no Brasil tem seu início com a criação do primeiro curso de Dança em 1956, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). O curso foi reconhecido pelo Ministério da Educação em 1962 e conferindo diplomas de Bacharelado e Licenciatura em Dança. Cabe ressaltar que os dados de criação/implantação e reconhecimento dos cursos de Dança utilizados neste texto forma consultados no portal eletrônico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) do Ministério da Educação (MEC), disponível em <www.educacaosuperior.inep.gov.br>.

A Escola de Dança da UFBA fez parte do projeto empreendedor do reitor Edgard Santos (1884-1962), frente a então denominada Universidade da Bahia. A criação das Escolas de Teatro e de Dança em 1956 ampliaria o espaço destinado às artes nesta instituição iniciada com a inauguração da Escola de Belas Artes em 1877 – agregada em 1946 à Universidade da Bahia – e a criação do curso de Música em 1954.

Conforme salienta Pinheiro (1994), o contexto no qual a UFBA cria seu curso superior de Dança, traz em suas experiências iniciais, o vanguardismo da Dança Moderna caracterizado pelo rompimento com os valores estéticos próprios do balé clássico e do balé romântico. O modelo inicial que direcionava o trabalho da recém criada Escola de Dança da UFBA, apesar de trazer significativas contribuições para o estudo da Dança no contexto nacional e ser reconhecida como centro gerador de um movimento estético inusitado para a época, “não colaborou no sentido de esclarecer o diferencial do ensino superior em dança e apenas na ultima década começou a ser repensado” (GREINER, 2006, p. 31). Essa análise parece anunciar a necessidade da compreensão, por parte da Dança, da universidade como locus para produção e disseminação do conhecimento, apoiada em intercâmbios filosóficos e epistemológicos geradores e alimentadores de teorias, condição própria de uma área de conhecimento.

Através do exercício reflexivo constante e das próprias demandas da Dança no universo acadêmico, desde o início dos anos 2000, a Escola de Dança da UFBA vem estudando uma proposta de reestruração curricular que se propõe a reintegrar conteúdos de disciplinas em um corpo de conhecimentos, que toma como objetivo a integralidade da produção artística, conectada com o fazer pedagógico e a reflexão crítica de questões próprias à Dança. Esta nova proposta curricular foi aprovada em 2005 pelo MEC, e hoje, os conhecimentos que integram os componentes curriculares básicos estão organizados em módulos e laboratórios, e são trabalhados simultaneamente, por no mínimo dois professores com competências específicas aos estudos demandados durante o desenvolvimento do módulo.

No final da década de 1970 e início dos anos 1980, diferentes organizações da classe de Dança no Brasil, preocupadas com a situação da área naquele momento, estimularam o surgimento de espaços para debates, cursos e outras atividades de formação que pudessem contribuir na identificação de possíveis lacunas que pareciam emergir no processo de atuação dos profissionais da área. Sobre este aspecto, Katz (1983) destaca a iniciativa de duas comissões atuantes na área da Dança, naquele período, no estado de São Paulo: o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversões do Estado de São Paulo e a Secretaria de Estado da Cultura. Estes dois órgãos viriam então “declarar o ensino da dança em crise e empreender uma reavaliação conjunta”. (KATZ, 1983) Já havia uma motivação para a possível criação de um curso de Dança em nível superior para São Paulo, mas os artistas da época entenderam a necessidade anterior de formação especializada para quem fosse atuar neste futuro curso, daí a importância das oficinas e cursos de formação estimulados na ocasião.

Durante quase vinte e cinco anos a UFBA foi a única instituição a formar profissionais da Dança em nível superior no Brasil. Em 1984, foi implantado o curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná (FAP), sendo reconhecido pelo MEC em 1988, com opções para Bacharelado e Licenciatura.

No estado do Rio de Janeiro, em 1985, o Centro Universitário da Cidade (UniverCidade) criou seu curso de Licenciatura em Dança sendo pioneiro na área em todo o estado. Da mesma forma que o curso da FAP, a UniverCidade obteve seu reconhecimento em 1988. Ainda em 1985, a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), abre as portas para a comunidade nas opções de Bacharelado e Licenciatura em Dança. O reconhecimento do curso de Dança da UNICAMP deu-se no ano de 1992. Cabe ressaltar aqui a iniciativa da Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES) que, em 1986, criou a Faculdade de Dança. Não há muitas informações disponíveis sobre este curso, contudo, sabe-se que hoje a UNIMES não mais oferece formação superior em Dança.

Estas quatro Instituições de Ensino Superior foram responsáveis por uma mudança significativa no cenário da Dança produzida no Brasil, não só na produção acadêmica como também na produção artística. Antes deste acontecimento, muitos profissionais da área buscavam suas formações superiores em cursos da área da Saúde como: Educação Física e Fisioterapia ou ainda nas áreas das Ciências Humanas, como: Pedagogia e Psicologia. Ademais, a formação em outras áreas de Artes (Música, Teatro e Artes Visuais) no Brasil ainda era uma realidade tão tímida quanto a própria formação em Dança.

Dando continuidade a este processo de efervescência para novos cursos de Dança, em 1991, a Faculdade Paulista de Artes (FPA), inaugura seu curso de Bacharelado e Licenciatura, sendo este reconhecido pelo MEC em 2002. Em 1994 (reconhecimento em 2006), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), abre seu curso de Dança com opção apenas pelo Bacharelado, funcionando no período noturno, junto à escola de Educação Física desta instituição. No mesmo ano a Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ) no Rio Grande do Sul apresenta seu curso de Licenciatura em Dança, obtendo seu reconhecimento em 2002.

Na capital paulista, a Universidade Anhembi Morumbi e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) abrem em 1998, seus cursos de Dança tendo o reconhecimento do MEC em 2002. A Anhembi Morumbi com Bacharelado e Licenciatura e a PUC/SP apenas com Bacharelado em Comunicação das Artes do Corpo, habilitação em Dança com opções também em Teatro e Performance.

O ano de 2000 se inicia com a abertura de três cursos: Faculdade Angel Vianna (FAV) no Rio de Janeiro com opções para Bacharelado e Licenciatura, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e a Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, ambas com as duas opções de formação. A FAV e a UFV obtiveram seu reconhecimento em 2006. A base de dados do INEP não apresenta informações sobre o reconhecimento do curso de Dança da UEA. Em 2002 (reconhecimento em 2006), a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) passa a oferecer a opção para Licenciatura em Dança.

No início deste ano de 2007, surge o último curso de Dança em nível superior de que se tem registro no Brasil. Trata-se da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) com opção de formação em Licenciatura. Vale ressaltar que outras iniciativas estão em estudo como é o caso da Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte em Natal e a Universidade Federal de Pernambuco em Recife.

Ainda dentro deste panorama histórico vale ressaltar a existência dos cursos Superiores de Tecnologia na área da Dança. Esta modalidade de ensino, conforme indica o Ministério da Educação, tem como objetivo formar profissionais para atender campos específicos do mercado de trabalho, tais como: bailarino, assistente de coreografia, coreógrafo, dramaturgo de dança, dentre outros. Ao final de dois anos de curso, o Tecnólogo em Dança, poderá dar continuidade aos estudos em nível de pós-graduação stricto sensu e latu sensu. Os cursos Superiores de Tecnologia possuem um tempo de duração de dois anos. São, portanto, mais breves que os cursos de graduação que se organizam num tempo de integralização entre três anos e meio e cinco anos. Atualmente temos no Brasil o Curso Superior de Tecnologia em Dança da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) localizado na cidade de Canoas, no estado do Rio Grande do Sul, criado em 2003, e o Curso Superior de Tecnologia em Dança de Salão e Coreografia da Universidade Estácio de Sá no estado do Rio de Janeiro, com início em 2006.

De acordo com os dados do INEP/MEC, o Brasil possui hoje, em funcionamento, doze cursos superiores com opção em Licenciatura e Bacharelado, dos quais sete são de caráter público e cinco de caráter privado. Dois cursos com opção apenas para o Bacharelado em Dança, sendo um privado e um público, e dois cursos “Superior Tecnológico” em instituições particulares. A maior concentração desses cursos é na região sudeste do país, totalizando nove opções. Em seguida vem a região sul com quatro cursos, depois o nordeste com dois cursos e por fim a região norte com uma única opção. A região centro-oeste não possui ainda nenhum curso de Dança em nível universitário.

Contingências do modelo 3 + 1

Se concordarmos com Brzezinski (1998) que o currículo é um elemento da organização do processo educacional, um olhar atento sobre sua articulação dentro do próprio sistema educativo pode deflagrá-lo como mediador na interação entre a política educacional e os anseios da sociedade. Na mesma medida, tal relação se estende também na função do professor enquanto mediador entre os conhecimentos produzidos na realidade social e os conhecimentos elaborados na vivência educativa. Desta forma, as implicações no processo de formação do professor organizadas por uma proposta curricular, podem apontar diferentes maneiras de entendimento da relação teoria e prática, compreendidas neste estudo como um desdobramento do dualismo mente e corpo.

Segundo Brzezinski (1998), teríamos pelo menos três visões na forma de compreender currículo na relação teoria e prática: 1) uma compreensão dissociativa do currículo que seria marcada por dois momentos muito distintos na sua estruturação, sendo eles, a dimensão teórica do currículo com uma forte base na aquisição de conhecimentos acumulados ao longo do tempo; e uma dimensão prática do currículo com foco no fazer pedagógico. 2) uma visão associativa do currículo que justapõe teoria e prática (formação geral e formação específica). Nesta compreensão de currículo teoria e prática continuam separadas; e 3) currículo como expressão da visão de unidade no qual teoria e prática não aparecem separadamente. “A própria natureza de indissociabilidade da teoria e prática nega a viabilidade de se dar um ‘lugar certo’ para cada uma delas, elas se colocam numa relação dialética”. (Brzezinski, 1998, p. 169).

Até o momento tive acesso ao material de quatro Instituições de Ensino Superior do universo de dez cursos que foram selecionados para fazer parte desta análise. Conforme dito anteriormente, o Brasil possui hoje doze cursos de Licenciatura em Dança, dos quais dez funcionam atualmente com matriculas e alunos regulares.

O atual modelo de organização curricular da maioria dos cursos de Licenciatura no Brasil, não apresenta mudanças significativas desde sua criação. As modificações surgem basicamente após a necessidade de adequação das propostas a partir das indicações das Diretrizes Curriculares Nacionais no início dos anos 2000. Muitos desses cursos estão desenvolvendo uma reformulação em suas matrizes curriculares, mas ressalto que os dados utilizados no estudo foram aqueles disponibilizados pelas instituições em seus projetos pedagógicos ou mesmo nas informações encontradas nos sites das mesmas.

Um dos aspectos mais recorrentes para os cursos de Licenciatura em geral, como aponta Diniz-Pereira (1999) – e os cursos de Dança não fogem a este universo -, é que a estrutura desses cursos, em sua maioria, é apresentada no formato 3 + 1 (visão associativa), no qual o aluno é submetido a três anos de disciplinas de conteúdos específicos para a área, com mais um ano de disciplinas com natureza pedagógica. Essa configuração sugere um entendimento de que as disciplinas de natureza pedagógica possuem um caráter distanciado das disciplinas de conteúdo específico, ou seja, como se uma validasse a função da outra numa compreensão hierárquica e verticalizada.

Tal entendimento pressupõe ainda uma desconexão dos problemas de cada área do conhecimento, mesmo quando essas fazem parte de um único sistema educacional. Na Dança, por exemplo, os modelos dos cursos de Licenciatura, organizam seus currículos de maneira que o graduando experimente, no início de sua formação, os componentes curriculares entendidos como sendo do Eixo Básico ou Específico. Este Eixo Básico é constituído por componentes que discutem problemas específicos da Dança, como: estudos de composição coreográfica, estudos de técnicas de dança, história da dança, estudos das relações entre preparação corporal, criação e análise crítica em dança, estudos do movimento (cinesiologia, anatomia, fisiologia), dentre outros. No entanto, as questões que surgem no momento em que o aluno está experimentando sua docência, não têm a oportunidade de serem analisadas e problematizadas com os demais colegas e professores durante o estudo dos conceitos próprios da área. Ou seja, parte-se do princípio de que o aluno já possui as informações básicas necessárias para ensinar Dança e por isso ele pode experimentar este lugar de professor.

Esta estrutura de organização dos cursos de Licenciatura se encaixa no que se entende por formação de professor pelo “modelo da racionalidade técnica” (Schön, 1993 apud Gómez, 1995, p. 96). Segundo este modelo “a actividade do profissional é sobretudo instrumental, dirigida para a solução de problemas mediante a aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas”. (Gómez, 1995, p. 96). Esse modelo da racionalidade técnica apresenta, segundo Diniz-Pereira (1999), três grandes problemas: 1) a separação entre teoria e prática na preparação profissional docente; 2) a concepção de prática como mero espaço de aplicação de conhecimentos teóricos; e 3) a crença de que para ser um bom professor, basta o domínio da área que vai ensinar. Neste entendimento de ensino, as disciplinas de conteúdo específico antecedem as disciplinas pedagógicas e articulam-se muito pouco a estas. Além do mais, o contato com a realidade pedagógica acontece no final do curso, de maneira pouco integrada com a formação teórica prévia. Desta forma, o que temos é “uma licenciatura inspirada em um curso de bacharelado” (Diniz-Pereira, 1999, p. 113), com a intenção de ensinar técnicas ao licenciando que o tornará apto para transmitir o conhecimento, tornando-se assim um professor com caráter instrumental.

Esse ponto revela, junto a outros, um ensino de Licenciatura em Dança organizado de maneira fragmentada que ainda resvala em dualismos como corpo e mente, teoria e prática, preparação corporal e criação cênica, dentre outros. Esta característica de especialização do conhecimento (Morin, 2005) impede o indivíduo em formação de ver o global. Quando se trabalha o foco da especificidade do saber, perde-se a noção do conhecimento como um todo, fato este que dificulta em grande medida, um trabalho educacional que procure fortalecer a relação entre os conceitos, idéia central do pensamento contemporâneo de Educação.

William E. Doll Jr., em seu livro Currículo: uma perspectiva pós-moderna apresenta uma reflexão sobre o desenvolvimento da noção de currículo ao longo dos tempos indicando as interferências do pensamento pré-moderno e moderno na sistematização e entendimento deste processo pedagógico. Para Doll (1997), as idéias desenvolvidas com o pensamento moderno, não proporcionaram um bom modelo para a educação da humanidade. Doll indica a influência do método cartesiano para a obtenção da certeza, bem como a predizibilidade newtoniana como fortes indicadores na construção de uma idéia de “boa educação” como sendo aquela que busca pela verdade. Para este autor, as metáforas mecânicas que emergiam com o paradigma moderno de compreensão da realidade fundamentaram não somente a Ciência moderna, mas também uma idéia de currículo “mecanicista” e “cientístico” identificados até os dias de hoje. “Neste currículo de orientação mecanicista os objetivos estão fora e são determinados antes do processo instrucional; uma vez firmemente estabelecidos, eles são ‘conduzidos ao longo’ do currículo.” (DOLL-JR., 1997, p. 44) Nota-se que o controle parece ser uma característica forte do paradigma modernista.

A noção de currículo como modelo pré-estabelecido de rendimento e aquisição de conhecimento é apontada por Doll Jr. (1997) nos diversos segmentos educacionais: da educação infantil ao ensino universitário. Além deste conceito de ordem abstraída, outros três conceitos são apresentados e discutidos pelo autor como sendo importantes na estruturação do currículo como abrigo para uma série de materiais e tarefas a serem garantidas: “o sequenciamento linear, as relações de causa-efeito e a negação da mudança qualitativa ao longo do tempo.” (DOLL-JR., 1997, p. 52) Em linhas gerais, tais conceitos esbarram numa compreensão de currículo enquanto um pré-ordenamento de tarefas e de uma educação que têm por função mensurar os resultados à luz de padrões fixados previamente. Esta noção de causa e efeito, segundo Doll Jr. (1997), é uma herança newtoniana poderosa em nossa forma de ver e agir no mundo.

Ao tratar da formação de professores de Dança em nível universitário, proponho a compreensão do ambiente educacional como um lugar de troca de informações, que estimule questionamentos e favoreça o entendimento e/ou reelaboração de conceitos. Para tanto, faz-se necessária uma atuação do professor enquanto sujeito que promove um estado de abertura para novas conexões das informações negociadas, estimulando no aluno uma postura de co-responsabilidade com a criação deste ambiente de troca e a possibilidade de uma experiência de autonomia nessa organização. Para tanto, é preciso uma formação que garanta a vivência deste espaço de troca colocando o futuro professor em situações que estimulem a postura investigativa na descoberta e estruturação dos problemas as serem manipulados na sua ação artístico-pedagógica.

Não tenho a pretensão de chegar aqui a conclusões definitivas, inclusive por não acreditar na fixidez de uma única alternativa. Contudo, diante deste trajeto histórico e das análises curriculares iniciais, opto por compartilhar com o leitor uma questão que me parece pertinente para esta reflexão: como os cursos de Licenciatura em Dança podem garantir modos de organização curricular que fortaleçam e dêem conta do entendimento da Dança como área autônoma de conhecimento? O espaço está aberto para o diálogo e reitero a importância do encontro de idéias para o fortalecimento do debate, bem como a compreensão de outros caminhos possíveis.

Referências Bibliográficas:
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