A geração que não vinha | The generation that wasn’t coming

Trabalho de novos coreógrafos começa a ganhar espaço

Acompanho a produção de dança contemporânea do Rio Grande do Sul de maneira mais efetiva desde final dos anos 80, quando comecei a estudar teatro. Naquela época, comecei a me fascinar por criadores como Carlota Albuquerque (Terpsí), Guelho Menezes (Balleto), Dagmar Dornelles, e logo mais por Andréa Druck, Ivan Motta, Eva Schul, Jussara Miranda. Passados quase 20 anos dessa história, alguns não mais atuam no cenário da dança e, que bom, outros prosseguiram ativos. Acredito num contexto cultural nutrido pelo fluxo artístico que se dá entre tradições e rupturas, e, por isso, ao reconhecer que uma certa tradição em dança sedimentada, eu vinha tendo dificuldade de ver uma nova geração mostrar a sua cara, em pleno século XXI.

Sim, na década de 90 apareceram, assim como eu, outros coreógrafos e coreógrafas se aventurando neste cenário. Eduardo Severino, Tatiana da Rosa, Cibele Sastre, Luciana Paludo, Heloísa Bertolli, Luciane Coccaro, todos que transitaram como bailarinos e alunos naquela época da qual comecei falando. Uma espécie de geração de transição que, nutrida em escolas, grupos e companhias tradicionais do Estado, procurava (errando ou acertando), novas linguagens, novos modos de operar, enfim, artistas que se permitiram arriscar – tarefa difícil para o que já se estabeleceu e indispensável para que a arte possa desfrutar de outras condições de possibilidade. Mas essa “transição”, no meu ponto de vista, já estava ficando um pouco prolongada demais e eu sentia necessidade de algo que pudesse mostrar a reverberação de todo esse contexto, seja no seu prolongamento, no seu desdobramento, na sua negação, na sua re-elaboração.

Então, é com muita satisfação que de 2007 pra cá começo a perceber a movimentação de jovens criadores que começam a mostrar a sua casa. Em comum talvez só tenham o fato de terem vinte e pouco anos e se autorizarem a investir na criação em dança aqui por estes pagos. Nos seus trabalhos eles e elas trazem propostas estéticas diferenciadas, perspectivas muito particulares e conexões singulares.

Inicio de largada falando de três criadoras, o que já é um diferencial do trabalho A3 (foto1). Uma produção colaborativa de Juliana Vicari, Thaís Alves e Carol Laner, intérpretes e coreógrafas. As três são graduadas no curso de Graduação em Dança da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Fundarte/UERGS), com consistentes, criativas e sensíveis pesquisas na área de criação. A montagem foi apresentada na Sala Álvaro Moreyra, em apenas três noites de junho, e conseguiu um resultado muito além da justaposição dos trabalhos acadêmicos de cada uma, em cena. O trio potencializou as questões presentes no trabalho de cada uma: a improvisação, as propostas de tarefas, o estado de presença cênica, o jogo, as muitas percepções destes corpos. O resultado é inteligente, cheio de uma dignidade (e sei que esta palavra pode estar meio esquecida, mas faz toda diferença no nosso mundo de hoje), traduzindo intérpretes que, na sua jovialidade, revelam-se maduras, honestas e totalmente “donas” da proposta. Tão “donas” que as explícitas referências à estética (e ética) do pessoal da Judson Church, encontram uma expressão muito pessoal, com uma assinatura muito delas. São corpos dispostos a arriscar, mas com a segurança e domínio para isto, como traduz a deliciosa cena em que com um colchão no meio do palco elas literalmente deitam e rolam.

Vindo de uma investida universitária em dança interrompida precocemente no curso de Graduação de Dança da ULBRA, Gustavo Silva, da New School Dreams, tem sua formação e produção constituída no universo da dança de rua. Contudo, La chronic, sua obra, apresentada no Dança de Domingo, no Teatro de Câmara, em maio, mostrou um criador disposto a atravessar e borrar fronteiras, ainda que este não tenha sido o seu objetivo. Com coreografias que fazem do vocabulário da dança de rua um trampolim para explorar as possibilidades dos corpos se moverem no espaço, ele constrói uma densa e ao mesmo tempo bem-humorada obra. La chronic investiga o cotidiano traduzido na dança do universo das crônicas. O espetáculo coloca em cena o dia-a-dia e suas reviravoltas em vibrantes coreografias com grande apuro técnico, pontuadas com poéticos fragmentos. De lambuja, a obra ainda revela talentos precoces, como o dos bailarinos Cauan Rossoni e Josyane Ramos, entre outros.

Em Bondage (foto2), as imagens são inquietantes. Mulheres seminuas, amarradas, amordaçadas em um território de sensualidade e opressão. É neste universo que mergulha o coreógrafo Douglas Jung, no trabalho que integrou o projeto Incubadora de novos coreógrafos, do Grupo Gaia, apresentado em julho, na Sala Álvaro Moreyra. Douglas já havia acenado com um trabalho irreverente na Mostra de Dança Verão, onde, ao som de Diariamente, na voz de Marisa Monte, despencavam em cena de tudo um pouco, de botinas de borracha até uma melancia que se espatifava no palco. Em Bondage, o jovem coreógrafo faz um exercício mais apurado visualmente e mostra-se hábil em conduzir as intérpretes por caminhos tortuosos no limite da dor e do prazer. Além de Douglas, a Incubadora apresentou ainda os trabalhos Sobre vomitar coelhinhos, de Maria Albers e Luiza Moares – dispostas a arriscar – e Não se Pode Amar, Gozar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo, de Fabiane Vanoni.

Bondage / Foto divulgação

Bondage / Foto divulgação

Mas não só na capital esta nova geração vem se revelando. Em Montenegro, a Troupe Xipô colocou em cena o espetáculo Por Você, com pesquisa e criação de Suzana Schoellkopf  (atriz e bailarina atuante que finalmente se arrisca como criadora) e Márcio Barreto. Os dois levam para os palcos o resultado dos seus trabalhos de conclusão do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Por Você faz a opção por trabalhar com a mistura de linguagens: dança, teatro, circo e música ao vivo. O humor e o lirismo marcam a montagem e resulta num espetáculo vibrante e envolvente.

Em Canoas, Eduardo Menezes firmou um trabalho coreográfico original e potente com o grupo Art&Dança. Suas inúmeras e bem acabadas coreografias o fizeram conquistar o prêmio de melhor coreógrafo no Festival de Joinville em 2007, levando-o a Lyon e também a atuar em São Paulo. No mesmo circuito, Matheus Brusa, de Caxias do Sul, revelou uma pequena obra-prima, Electões, também destacada do Festival de Joinville, e, neste ano, estreou Bipolar, vencedor do prêmio Klaus Vianna, da Funarte.

Estes jovens criadores esboçam um novo panorama, com propostas singulares, revelando a capacidade de processar, reelaborar, desafiar e desdobrar as informações e provocações que foram sendo alimentadas nos últimos anos. Comemora-se por um lado, lastima-se por outro. Por um lado tem-se um contexto para a dança que começa a se ampliar, com os cursos de graduação, os concursos para a rede pública de ensino, com projetos como do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre, com o Centro Coreográfico do Terpsí, com os Desdobramentos do ProjetoMax, com o pessoal da sala 209 da Usina do Gasômetro. Contudo, por outro lado, ainda não se tem nenhuma companhia mantida por patrocínio privado, o Prêmio de Incentivo às Artes Cênicas do Estado não é entregue há mais de 6 anos, e se conta com uma equivocada Lei de Incentivo Estadual, que, para completar, produtores fraudulentos deixaram possíveis patrocinadores com um pé atrás.

A geração que não vinha está chegando e talvez logo já vá (Eduardo Menezes está em São Paulo, Carol Laner, no Rio, e Douglas Jung, na Alemanha, mas ainda com fortes conexões de seus trabalhos por aqui), caso as perspectivas para a dança no Estado não se sedimentem, ampliem e possam apontar para um horizonte profissional possível e estável. Sejam bem-vindos e vida longa a esta corajosa, destemida e talentosa moçada!

I have been following the contemporary dance production in the state of Rio Grande do Sul (in the south region of Brazil) more effectively since the 80’s when I started to study theater. At that time, I started to become fascinated by creators like Carlota Albuquerque (Terpsí), Guelho Menezes (Balleto), Dagmar Dornelles, and, soon afterwards, by Andréa Druck, Ivan Motta, Eva Schul, Jussara Miranda. After almost 20 years, some are no longer working in the dance scene and, fortunately, others are still active. I believe in a cultural context nourished by the artistic flow that takes place between tradition and rupture and since I recognize a certain established tradition in dance, I have been having some difficulty seeing a new generation show its face, even in the 21st century.

Yes, in the 90’s other choreographers, like myself, appeared to venture in this new landscape. Eduardo Severino, Tatiana da Rosa, Cibele Sastre, Luciana Paludo, Heloísa Bertolli, Luciane Coccaro, all those who were around as dancers and students in that time I mentioned before. A kind of transition generation, nourished by schools, traditional state groups and companies, who were searching (hitting or missing) new languages, news ways to operate, allowing themselves to take chances, after all – a difficult task for what had been established and essential for art to enjoy new conditions of possibilities. But this “transition”, from my perspective, is already taking a little too long and I felt the need of something that could show the repercussion of that environment, be it in its continuation, in its unfolding, in its denial, in its re-elaboration.

So, since 2007 it was with great satisfaction that I started to notice the mobilization of young creators who started to show up. Maybe they only have in common the fact they are all in their twenties and allow themselves to invest in dance creation around here. They bring different aesthetic proposals to their work, very particular perspectives and singular connections.

I start off talking about three female creators, which is already a peculiar characteristic of the piece A3. A collaborative production by performers and choreographers Juliana Vicari, Thaís Alves and Carol Laner. All three are graduates in dance from Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Fundarte/UERGS), with consistent, creative and sensitive research in the field of creation. The piece was presented at Sala Álvaro Moreyra, for only three nights in June and reached a result far beyond the juxtaposition of each one’s work. The trio potentiated the issues present in each one’s work: the improvisation, the task proposals, scenic presence state, the many perceptions of those bodies. The result is smart, filled with a dignity (and I know this word may be a bit forgotten, but it makes all the difference in today’s world), translating performers that, with all their youth, turn out to be mature, honest and totally “in charge” of the proposal. So much “in charge” that the explicit references to the aesthetics (and ethics) of the people from Judson Church find a very personal expression, with their very own signature. They are bodies willing to take a risk, but with confidence and control, as revealed by the delicious scene in which they literally roll around in a mattress in the middle of the stage.

Coming from an abruptly interrupted university enterprise in dance at the ULBRA dance graduation, Gustavo Silva, from New School Dreams, had his training and production established in the street dance environment. However, his piece La chronic, presented last May in Dança de Domingo, at Teatro de Câmara, revealed a creator willing to cross and blur borders, even if that was not his goal. With choreographies that make the street dance vocabulary a springboard to explore the possibilities of bodies moving in space, he builds a dense and at the same time good-humored piece. La chronic investigates daily life, translating into dance the universe of chronicles. The show puts daily life and its upheavals on stage in vibrant choreographies with technical precision, punctuated with poetic fragments. On top of that, the piece reveals precocious talents, like dancers Cauan Rossoni and Josyane Ramos, among others.

The images in Bondage are unsettling. Half-naked women, tied up, gagged in a territory of sensuality and oppression. Choreographer Douglas Jung dives into this universe, in the piece that was part of Grupo Gaia’s Incubadora de novos coreógrafos project, presented in June, at Sala Álvaro Moreyra. Douglas had already waved with an irreverent piece at Mostra de Dança Verão, in which a little of everything was dropped on stage, from rubber boots to a watermelon that crushed on the ground, to the sound of Marisa Monte’s Diariamente. In Bondage, the young choreographer makes a more visually refined exercise and shows he is skillful in conducting performers through tortuous paths, in the borderline between pain and pleasure. Besides Douglas, Incubadora also showed the pieces Sobre vomitar coelhinhos, by Maria Albers and Luiza Moares – willing to take risks – and Não se Pode Amar, Gozar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo, by Fabiane Vanoni.

Bondage / Foto divulgação

Bondage / Foto divulgação

But this new generation has been reveling itself not only in the capital. In Montenegro, Trupe Xipô brought the show Por VocêPor você chooses to work with a mixture of languages: dance, theater, circus and live music. Humor and lyrism set the tone and results in a vibrant and seductive show. to the stage, with research and creation by Suzana Schoellkopf (an active actress and dancer who finally takes a chance as creator) and Márcio Barreto. Both bring to stage the result of their graduation projects from Licenciatura em Dança of Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).

In Canoas, Eduardo Menezes established an original and powerful choreographic work with group Art&Dança. His countless and well finished choreographies won him Festival de Joinville’s best choreographer award in 2007, taking him to Lyon and also to peform in São Pailo. In the same circuit, Matheus Brusa from Caxias do Sul revealed a small masterpiece, Electões, also highlighted at Festival de Joinville and this year he premiered Bipolar, winner of Funarte’s Klauss Vianna award.

These young creators outline a new panorama, with singular proposals, revealing the hability to process, reelaborate, challenge and unfold information and provocation that have been fed to them over the last years. Celebration on one hand, sorrow on the other. On one hand, there is a context for dance starting to widen, with graduations, selection processes for the public school system, projects like Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre, Centro Coreográfico do Terpsí, Desdobramentos do ProjetoMax, the people from Usina do Gasômentro’s room 209. However, on the other hand, there are still no companies kept by private investment, the Prêmio de Incentivo às Artes Cênicas do Estado has not been handed out for over 6 years and we count on a flawed Lei de Incentivo Estadual, and on top of everything, deceitful producers have left possible sponsors with a chip on their shoulders.

The generation that wasn’t coming is arriving and maybe they will go soon (Eduardo Menezes is in São Paulo, Carol Laner is in Rio and Douglas Jung is in Germany, but he keeps strong connections with his work here), in case the perspectives for dance in the state don’t settle, widen and point to a possible and stable professional horizon. Welcome and long life to these brave, daring and talented young artists!