A grande corrida | The big race

Este texto foi publicado originalmente na revista Obscena.

Que solução existirá para as artes performativas, se falamos constantemente em crise? E, numa altura, em que as fronteiras entre realidade e ficção enchem os teatros de todo o mundo, ter-se-á alguém lembrado de como a pornografia há muito que reinventou o corpo? Reflectamos sobre isso, como numa dolente tarde de domingo.

Domingo pela tarde. Na televisão não há nada de interessante. É demasiado cedo para encontrar revelações no ecrã? É demasiado cedo também para nos abandonarmos ao consumo de porno e drogas. Quem sabe é um bom momento para se fazer perguntas incómodas. Coisas como “O que vai acontecer às artes performativas? Que futuro têm?”, ressoam na cabeça. “Que raio de maneira patética de passar o fim de semana” repreendemo-nos de imediato ao percebermos que estamos a fazer tamanhas perguntas. Mas na realidade, não há nada melhor que fazer, et pour cause

Apenas quando observamos superficialmente os mecanismos que modelam a produção artística nos damos conta de como, na realidade, tudo está ligado. Nas sociedades pós-industriais europeias inventámos uma perversa gaveta à qual chamámos “cultura” na qual colocamos todo o objecto ameaçador. Sentimo-nos orgulhosos dessa gaveta, porque sentimos que é uma das principais coisas que nos diferenciam “dos outros”: sem ruborizarmos continuamos a acreditar sermos o paradigma – o paradigma da “civilização”.

Assim, os nossos Estados investem (uma quantidade irrisória dos seus recursos) neste artefacto, e nós abandonamos felizes a uma tranquilidade autocomplacente: somos melhores, “nós” temos um “Ministério da Cultura”. Não nos damos conta de que isso a que chamamos “cultura” é um artefacto destruidor que elimina qualquer capacidade política nas práticas artísticas. A estratégia é muito simples: trata-se de criar barreiras, recipientes, capazes de se auto-imporem e isolarem qualquer intenção de alterar a ordem burguesa capitalista. Já o vimos mil vezes: por muito mal que possam ser recebidos (e mesmo resultar) os trabalhos de Rodrigo García, Jérôme Bel, Vera Mantero, Franko B, Romeo Castellucci, para citar alguns ao acaso, aparecem ou dentro de um teatro, ou dentro de um festival, ou dentro de um plano de políticas culturais, etc.

Todas estes disfarces conseguem retirar, com uma eficácia insólita, a capacidade política de qualquer proposta artística por muito “incómoda” que seja. Tudo acaba por reafirmar o status quo capitalista porque, uma vez dentro da “cultura”, desaparece a possibilidade de intervir no mundo. É certo que, por vezes, o sistema falha e, de repente, há fugas que perfuram estas capas protectoras e isoladoras da “cultura”. Mas não nos enganemos: tratam-se de puros acidentes que, uma vez identificados, são imediatamente submetidos a um processo de desactivação.

O panorama não é muito estimulante: mas quem sabe talvez exista uma saída nessa potentia gaudendi que, recentemente, Beatriz Preciado recuperou da filosofia de Spinoza. De acordo com o que a brilhante filósofa e activista propõe “a força orgásmica é a soma das potencialidades de excitação inerente a cada molécula viva. A força orgásmica não procura a sua resolução automática. Mas sim aspira a prolongar-se no tempo e no espaço, a tudo e a todos, em todo o momento e em todo o lugar. É a força que transforma o mundo em placer-con. A força orgásmica reúne ao mesmo tempo todas as forças somáticas e psíquicas, põe em jogo todos os recursos bioquímicos e todas as estruturas da alma”[1].

“O que caracteriza a potentia gaudendi não é só o seu carácter não permanente e altamente maleável, mas sobretudo a sua impossibilidade para ser possuída ou conservada. A potentia gaudendi como fundamento energético do farmacopornismo, não se deixa reduzir ao objecto nem pode transformar-se em propriedade privada”[2] (As ressonâncias desta ultima definição propostas de Peggy Phelan no seu famoso The Ontology of Performance (1995) são tão surpreendentes como excitantes!). Assim, se o problema é verificarmos que, através do artefacto da “cultura”, se subtraem às práticas artísticas a sua capacidade de “fazer” e, por sistema, redundam em entretenimento obrigatório, quem sabe não teremos chegado ao coração do problema? Mas como recuperar a “força orgásmica” das artes? Como libertar as práticas artísticas das alienantes garras da “cultura”?

A resposta está na pornografia. E mais estará se formos capazes de nos libertar de certas limitações puritanas instaladas nas “partes” mais invisíveis da nossa consciência. Se o fizéssemos teríamos a real noção do quanto as práticas artísticas actuais tem a aprender  com a pornografia. Pode-se inclusivamente pensar que só aquelas propostas artísticas que se aproximam da pornografia (intencionada ou acidentalmente) são as que conseguem, com efeito, escapar da desactivação amortalhada que a “cultura” impõe. Quem sabe se o porno não é a última oportunidade que a arte tem para reinventar as gabardinas de isolamento que a afastam do mundo, e de recuperar a sua capacidade política e de acção? E aqui há que fazer um esforço de incluir o porno em toda a sua amplitude. A pornografia não deveria confundir-se com a exibição de imagens de conteúdo sexual evidente e cru.

Como propõe Andrés Barba e Javier Montes, o objecto pornográfico é aquele objecto com o qual estabelecemos um compromisso de excitação[3]. Portanto a experiência pornográfica pode suceder com qualquer objecto (não só com imagens que reproduzem acções sexuais), bastando para tal que estejamos dispostos a abandonarmo-nos à excitação. Basta que desejemos que o objecto actue sobre a capacidade de prazer inerente ao nosso corpo. Nesse sentido, a arte, tal como a pornografia, deveria ser capaz de nos fazer ejacular de cada vez, todo o tempo. Deveríamos assumir que ir ver um espectáculo implica sempre que vamos ser penetrados, uma e outra vez. E que isso não só vai activar intensos processos de prazer, como ainda vai dissolver os limites que nos separam da obra. O que a pornografia faz é levar a representação ao corpo de quem consome essa representação. A excitação provocada pela pornografia é um exemplo perfeito de como os limites entre o sujeito e o objecto – o eu e o tu – o espectador e a obra; o espectador e o autor, etc., podem chegar a converter-se em algo nebuloso. Do que se trata finalmente, é de saber escapar a esses envolvimentos isolantes da “cultura” que não fazem outra coisa senão materializar os medos burgueses em relação às práticas artísticas, criando espaços “seguros” (museus, teatros, galerias, feiras, festivais, etc.) que num alarmismo patético de paternalismo, afastam as obras dos nossos corpos. E é cada vez é mais evidente que o corpo é a saída, é o lugar da revolução.

Mas não nos confundamos: não me refiro aqui ao “corpo” como problema abstracto, como tema de discussão erudita. Estou a falar do corpo próprio, das carnes em que cada um vive a nossa dor, dos orgãos em que se sucedem os episódios de prazer privado e particular. Esse é o cenário no qual as práticas artísticas recuperarão (Deus queira) a sua potentia gaudendi, sua força orgásmica, a sua capacidade de transformar o mundo e produzir conhecimento. Se realmente nos resta alguma esperança de que as artes cheguem a ser algo vivo, então a “cultura” deve, primeiro, desaparecer e, segundo devemos libertar todas essas práticas artísticas que se metem dentro dessa gaveta isoladora e deixar que transformem e subvertam as nossas práticas quotidianas. E aí os espectadores terão uma responsabilidade porque há coisas que podemos fazer. Comecemos a consumir os produtos da “cultura” da mesma forma que consumimos a pornografia. Partamos para  os teatros dispostos a nos vir-mos.

Exijamos que as obras nos provoquem convulsões de prazer. Exijamos que cada obra deixe uma marca em nossas peles e passe a fazer parte do nosso corpo, da nossa memória e da nossa biografia. Aproveitemos todos esses novos dispositivos de representação que exploram formas de fazer desaparecer as barreiras que nos separam do mundo. Entrem e registrem-se no Xtube (www.xtube.com). Deixem-se levar, admirem-se pela quantidade de pessoas que estão dispostas a pôr em jogo suas próprias carnes convencidas de que estão a ver o mundo de verdade, de que estão a participar numa gloriosa corrida. Aprendamos, de uma vez por todas, tudo o que o porno nos tem para ensinar.

Tradução do espanhol: Virgínia Mata

[1] Preciado, Beatriz, 2008, Testo Yonqui, Espasa, Madrid.

[2] ibidem

[3] Barba, A. E Montes, J. 2007, La ceremonia del porno, Anagrama, Barcelona

Jaime Conde-Salazar é espanhol, licenciado em História da Arte (Universidade Complutense de Madrid) e tem um master em Performance Studies (Universidade de Nova Iorque, 2002). Colaborou enquanto crítico de dança em várias revistas de dança como “Por La danza” (Madrid), “SuzyQ” (Madrid), “Ballet/Tanz” (Berlim), “Mouvement” (Paris), “Hystrio” (Roma) e “Obscena” (Lisboa). Faz parte do conselho editorial da revista “Cairon. Revista de Ciencias para la Danza”.

This article was originally published at Obscena magazine.

What solution would there be for the performing arts, if we are constantly talking about crisis? And, at a point when the borders between reality and fiction fill out theaters throughout the world, has anyone remembered how pornography has long ago reinvented the body? Let us reflect upon that, like in a lazy Sunday afternoon.

Sunday afternoon. There is nothing interesting on TV. Is it too early to find revelations on the screen? It is also too early to abandon ourselves in porn and drugs. Who knows if it is not a good time to ask uncomfortable questions. Things like “What is going to happen to the performing arts? What future do they have?” keep ringing in my head. “What a pathetic way to spend the weekend”, we immediately reprimand ourselves when we realize we are making such questions. But actually there is nothing better to do, that´s why…

Only when we superficially observe the mechanisms that shape artistic production do we realize how everything is connected. In post-industrial European societies, we invented a perverse drawer we call “culture”, in which we place every threatening object. We feel proud of this drawer, because we feel it is one the main things that separate us from “the others”: without blushing we continue to believe ourselves to be the paradigm – the paradigm of “civilization”.

Thus, our states invest (a derisory amount of their resources) in this artifact and we happily abandon ourselves to a self-complacent tranquility: we are better, “we” have a “Culture Ministry”. We do not realize that which we call “culture” is a destructive artifact that eliminates any political capacity in artistic practices. The strategy is very simple: it is about creating borders, containers, able to impose themselves and isolate any intention to change the bourgeois capitalist order. We have seen it a thousand times: however ill-received (and even resulting) the works of Rodrigo Garcia, Jérôme Bel, Vera Mantero, Franko B, Romeo Castellucci, to name a few randomly, perform either within a theater, a festival or a cultural policy plan, etc.

All these disguises are able to remove with unusual efficiency the political capacity of any artistic proposal however “uncomfortable” they may be. Everything ends up reinforcing the capitalist status quo because once it is all inside “culture”, any possibility of intervening in the world disappear. For sure, the system fails sometimes and suddenly there are escapes that break through these covers protecting and isolating “culture”. But let´s not be fooled: these are sheer accidents, once identified, they are subjected to deactivation process.

The panorama is not very stimulating: but maybe there is a way out from the potentia gaudendi Beatriz Preciado recently rescued from Spinoza’s philosophy. According to what the brilliant philosopher and activist proposes “the orgasmic force is the sum of the excitation potentialities inherent to each living molecule. The orgasmic force does not seek its automatic resolution. It rather aspires to prolong itself in time and space, to everything and everyone, in every moment and every place. It is the force that transforms the world into pleasure. The orgasmic force unites at the same time every somatic and psychic force, putting every biochemical and every structure of the soul at stake”[1].

“What distinguishes potentia gaudendi is not its non-permanent and highly flexible quality, but above all the impossibility of being possessed or preserved. Potentia guadendi as energetic foundation of farmacopornism, it does not allow itself to be reduced to an object neither can it be transformed into private property” [2] (The resonance of this last definition, proposed by Peggy Phelan in her famous The Ontology of Performance (1995) is both surprising and exciting!). Thus, if the problem is verifying that through the artifact of “culture”, the capacity for “doing” is subtracted from artistic practices, who knows if we haven´t reached the heart of the problem? But how to recover the “orgasmic force” of the arts? How to liberate artistic practices from the alienating clutches of “culture”?

The answer is in pornography. And it will be even more, if we are able to liberate ourselves from certain puritan limitations installed in the most invisible “parts” of our consciousness. If we could do that, then we would have a real notion of how much the current artistic practices have to learn from pornography. It is even possible to think that only the artistic proposal that approach pornography (intentionally or accidentally) are the ones that are able to effectively escape from the shrouded deactivation imposed by “culture”. Who knows if porn isn´t the last opportunity art has to reinvent the raincoats of isolation that push it apart from the world and to regain its capacity for politics and action? And there must be an effort to include porn in all its extent. Pornography should not be confused with the exhibition of images of evident and raw sexual content. As Andrés Barba and Javier Montes propose, the pornographic object is the object which we establish an excitation commitment [3] with. Therefore the pornographic experience can take place with any object (not only images that reproduce sexual acts), as long as we are willing to abandon ourselves in excitation, as long as we desire the object to act upon our body’s capacity for pleasure. Thus, art, just like pornography, should be able to make us ejaculate each time, every time. We should admit that going out to watch a show implicates being penetrated, every time. And this is not only going to activate intense pleasure processes, but it will also dissolve the limits that separate us from the piece. What pornography does is to take representation to the body of those who use this representation. The excitation provoked by pornography is a perfect example of how the limits between the subject and the object – the I and the you – the spectator and the piece; the spectator and the author, etc, may convert into something hazy. Finally, it is about knowing how to escape the isolating envelopment of “culture” that does nothing but materialize the bourgeois fears regarding artistic practices, creating “safe” spaces (museums, theaters, galleries, fairs, festivals, etc.) which push the pieces away from our bodies, in a pathetic paternalist alarmism. And it is more and more clear that the body is the answer, the place for revolution.

But let´s not be confused: I do not refer to the “body” as an abstract problem, as a theme for highbrow debates. I am talking about the body itself, the flesh in which each of us live our pains, the organs in which episodes of private pleasure take place. This is the setting in which artistic practices will recover its potentia gaudendi, its orgasmic force, its capacity to chance the world and produce knowledge. If there is any hope that the arts become alive, then, first, “culture” should dissappear, second, we should liberate all artistic practices that are placed inside the isolating drawer and allow them to transform and subvert our daily practices. Then, the spectators will have a responsibility, because there are things that we can do. Let´s begin to use the products of “culture” the same way we use pornography. Let´s go to the theater willing to cum. Let´s demand the pieces to provoke convulsions of pleasure in us. Let´s demand that each piece leave a mark in our skin and become part of our body, our memory and our biography. Let´s enjoy all these new representation devices that explore ways to make the barriers that separate us from the world. Access and register at Xtube. Let yourslef go, be amused by the amount of people willing to display their own flesh, convinced to see the real world, in which they are participating in a glorious race. Let´s learn, once and for all, everything porn has to teach us.

[1] Preciado, Beatriz, 2008, Testo Yonqui, Espasa, Madrid.

[2] ibidem

[3] Barba, A. E Montes, J. 2007, La ceremonia del porno, Anagrama, Barcelona

Jaime Conde-Salazar is Spanish, has an Art History degree (Universidade Complutense de Madrid) and master in Performance Studies (New York University, 2002). He has collaborated as dance critic with  “Por La danza” (Madrid), “SuzyQ” (Madrid), “Ballet/Tanz” (Berlim), “Mouvement” (Paris), “Hystrio” (Roma) e “Obscena” (Lisboa). He is part of the editorial council of “Cairon. Revista de Ciencias para la Danza”.