A história que se dança

Lançado em São Paulo, no dia 5 de maio, com a concepção e organização de Yara de Cunto e textos de Susi Martinelli, o livro A história que se dança – 45 anos do movimento da dança em Brasília faz parte de um daqueles curiosos sonhos que acontecem na cidade de Brasília, como foi o da sua fundação. Como muitos sabem, produzir dança em várias cidades brasileiras, independentes de sua localização ou do eixo que fazem parte, requer extrema teimosia e criatividade para engendrar mecanismos de sobrevivência e, definitivamente, um deles é contar nossa(s) história(s) ou estória(s).

Outro aspecto que chama atenção nesta iniciativa é a divisão das autoras, uma vez que a concepção ficou por conta de Yara de Cunto, reconhecida atuante da dança na cidade, e o texto com Susi Martinelli, dançarina e pesquisadora responsável pela ampla pesquisa de dados da história local. Esta parceria, por um lado, mostra uma realidade na área, uma vez que muitos profissionais responsáveis por uma extensa prática histórica na área encontram parceiros intelectuais que possam atender a demanda de sistematização do conhecimento. Por outro lado, co-autoria também encaixa-se bem aqui para o modelo que foi proposto.

As descrições históricas e cronológicas se organizam em textos bem informativos que, cada qual, tem um título metaforicamente correlato a sua função na história da dança em Brasília: Preparando A Terra, Diversificando As Sementes, O Plantio, Os Frutos Da Terra, Seiva: A Luta Pela Sobrevivência e As Flores Que Despontam. São dados da história, relatados com informações importantes que ajudam a qualquer pesquisador ou artista da dança a conhecer mais sobre o percurso oficial da história, ou seja, quem quando fez o que.

Além disso, muitos dados trazidos no livro suscitam reflexões sobre questões caras à dança, sobretudo quando sabemos que a produção do conhecimento nunca esteve restrita aos seus espaços evidentes, ou seja, nem sempre obtemos informações sobre a dança em alguma cidade pela companhia oficial daquela, por exemplo. Normalmente, as informações precisam ser pesquisadas, fuçadas, reviradas. E, politicamente, uma produção fértil vem se expandindo em territórios acadêmicos, em espaços não institucionais, dentro de coletivos, fora dos padrões convencionais. Portanto, nos resta acompanhar este movimento e aprender a indagar sobre tais questões.

Uma delas é a efemeridade da dança. “Felizes os que testemunharam o momento dessas criações”, afirma Yara na apresentação. A partir desta certeza, iniciativas de preservação da dança, como os livros de história, baseiam sua importância e seguem a costurar vestígios. No entanto, parece-me curioso nossa estratégia de sobrevivência: já que acontece tão rápido, vamos fazer de tudo para dar conta em relatar o que aconteceu. Será que a dança não acontece além do momento em que ela se apresenta, assim como existe antes do instante em que se esteve no palco?

A certeza que permanece depois de reconhecermos tal característica real da dança – acontece no palco, em um instante para os que assistem – é que, sim, temos a necessidade política de contar nossa história, de rever nossas estórias, de tornar nossa realidade, ficção, e de cruzar tempos e períodos, pessoas e fatos. É uma postura política da dança querer contar sobre seu contexto, à medida em que reconhecemos o ponto de vista a partir do qual nos encontramos. E isso muda, insistentemente, no decorrer do tempo. Posicionamo-nos politicamente quando sabemos relacionar as informações sobre o lugar em que estamos.

Outro dado importante que insiste em aparecer na história de dança da cidade de Brasília é a necessidade de uma formação qualificada. Um projeto pedagógico, uma estrutura de ensino, o intuito em capacitar e dar aos dançarinos acesso a uma formação profissional. Primeiramente, fatos históricos impediram a constituição de um espaço oficial de aprendizado (a Escola Oficial De Dança e a Escola Profissional, 1964 e 1965). De 1981 a 1988, o Curso Técnico de Formação em Dança organizado por Norma Líllia; nos anos 70, por parte da Secretaria de Educação e Cultura, Gisele Santoro cria o Projeto de Cursos Nacionais de Aperfeiçoamento em Dança que veio a se tornar o conhecido Seminário Internacional de Dança da cidade, ainda em vigor; desde 1971, na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes há tentativas de um curso de graduação em dança e, finalmente, o Curso Seqüencial de Dança nesta mesma faculdade (2001-2003), que formou somente uma turma, mas provocou a criação de uma companhia referência da cidade.

Alguém desapercebido pode lamentar o motivo de tantas tentativas não findas. De fato, a cidade anseia por um curso regulamentado de dança. No entanto, tais tentativas mostram uma necessidade urgente em sistematizar uma formação, ausente em lugares predominantemente ocupados por academias de dança, que não é exceção em Brasília. A imagem de uma formação estruturada entusiasma muitos dançarinos, coreógrafos, estudantes e professores que entendem que o lugar de produção de conhecimento no ensino é um lugar de cidadania, autonomia e independência diante de padrões impositivos. O resultado é a possibilidade de novos modos de criar.

Também chama atenção como idéias experimentais frutificaram em solo universitário, como aconteceu com o GEDUnB (Grupo Experimental de Dança na Universidade de Brasília, 1973-1990), criado por Maria Ruth Jácome e com a presença de professores que fizeram a história de dança da cidade, como Luiz Mendonça e Yara de Cunto.

Outros grupos experimentais são marcantes na cidade, como o Grupo Pitu do argentino que fincou seus pés na capital brasileira, Hugo Rodas, que, de 1975 a 1981 causou estranhamento com suas investigações pela cidade. Outras iniciativas experimentais foram fundamentais: a escola Ensaio, de Graziela Rodrigues, hoje professora da graduação em dança da UNICAMP, e João Antônio Lima Esteves que sacudiu as formas de fazer e ensinar dança para comunidades locais e com a implementação de idéias interdisciplinares e a fértil união de Hugo Rodas e Norma Lilia, na cia. Trupe 108 (1990-1992).

Desses rastros, o Grupo EnDança (1980-1996), fundado por Luiz Mendonça e Márcia Duarte, foi um pilar em torno do qual giram as concepções contemporâneas de dança da cidade. Dança, teatro, experimentos ligados ao curso de artes cênicas da faculdade, pesquisa de linguagem e a experiência em juntar pessoas para investigar. Daí, surgiram projetos de formação (Lapizlazulli), futuros coreógrafos (Giselle Rodrigues, Cristina Moura), novos grupos (Grupo 2 ao Absurdo,1984-1990, de Cláudia Trajano, e Grupo Previsão do Tempo (1985), de Eliana Carneiro e Maura Baiochi) que seguiram diferentes caminhos, mas que puderam encontrar em um grupo experimental de dança contemporânea na cidade um lugar de investigação. Sabemos que muitas destas relações não são causais (porque teve contato, assim aconteceu), mas os pontos e as formas de interseção fazem diferença.

Peculiar no Endança é que, apesar de alguns não conhecerem, ninguém discorda da sua importância para o contexto da dança contemporânea no país. E, muitas pessoas na cidade, mesmo depois da existência da companhia, foram contaminadas por sua forma de fazer e pensar dança, sobretudo quando falamos em investigação. Tal particularidade não é um privilégio de que podem se gabar muitos dançarinos espalhados no país. Tal façanha rendeu à Brasília uma chance de entender a dança contemporânea no cerne de sua questão: a pesquisa.

Outro fato que chama atenção foi a forma com a qual os coreógrafos, diretores e dançarinos, pouco a pouco, se envolveram com aglomerações de cunho eminentemente político para promover soluções artísticas. A Associação de Dança do Distrito Federal (ADDF, 1986) realizou em 97 o I Festival de Dança da cidade, tendo sido realizada a segunda edição em 1988. No ano seguinte, realizou a 1a. Mostra Coreográfica e o Concurso De Jovens Talentos, na ocasião que a coreógrafa Regina Maura (1985-1990) foi presidente. Mironilce Regino, de 1995 a 2002, foi assessora de dança da Secretaria de Cultura do Distrito Federal e também criou formas de fazer valer a dança e suas necessidades na cidade. Rosa Coimbra, coreógrafa, que foi Conselheira de Dança da Secretaria e também foi atuante junto ao Fórum Nacional de Dança, teve sua carreira marcada por suas apresentações em cena e politicamente engajada fora dela.

Um movimento curioso foi a volta do Asas e Eixos, em 2001, como aglomerador de projetos que réune Yara de Cunto, Rosa Coimbra, Marconi Valadares, Giselle Rodrigues, Giovani Aguiar, Luciana Lara, Regina Maura, Norma Lillia e Luís Mendonça para a iniciativa do Dança em Perspectiva, com palestras e workshops, e depois o projeto Entorno da Dança I e II, fazendo a dança do plano piloto chegar nas cidades satélites.

Juntando pesquisa teórica-prática, Lenora Lobo e Cia. Alaya de Dança, ainda atuante, torna tal prática de pesquisa, método, assim como vem fazendo Giselle Rodrigues em sua atual pesquisa de mestrado.

Também curioso, que apesar de fértil pesquisa, poucos coreógrafos circulam fora da cidade, ora porque estão ilhados no cerrado, ora porque encontram dificuldades de se infiltrar nos eixos ditos centrais de circulação no país. A Cia Márcia Duarte, com “De touros a homens” (2003) esteve no Ateliê de Coreógrafos de Salvador. Algumas companhias e solistas também se apresentam fora da cidade, mas isso ocorre raramente e com pouca efervescência de troca e intercâmbio, visto o eco longínquo que se faz.

Festivais na cidade ganharam o país. É salutar citar o caso do projeto Zona Z, de Giovani Aguiar e Giselle Rodrigues, que depois tornou-se o Festival Internacional da NovaDança, coordenado pelo coreógrafo Giovani Aguiar (em 2006 completa 10 anos). Muitos coreógrafos da improvisação e de procedimentos afins estiveram na cidade e formaram corpos e pensamentos em uma linha de investigação do movimento muito própria a tais técnicas.

A experiência em ler o livro e ver as imagens, que são muitas, é um filme que se passa a sua frente: assista, comente e se pergunte dos lugares, das chances, das relações, das redes, das lacunas e das possibilidades, que sempre são muitas. A responsabilidade sobre seu olhar é a de se relacionar com a dança de uma cidade tão jovem e fértil como Brasília. Uma panela de pressão. Apesar de geograficamente central, uma das muitas periferias da dança no Brasil que, politicamente, diz mais sobre suas estratégias do que sobre sua posição geográfica.