A outra beleza

O lançamento, pelo Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, do projeto Solos>35, pode contribuir bastante para o debate sobre um tema significativo para a dança: a condição artística e profissional dos bailarinos mais velhos, e sua aposentadoria precoce quase obrigatória. O projeto vai apresentar obras com intérpretes de mais de 35 anos – uma idade em que o bailarino médio, se não está integrado a um grupo ou companhia nem coreografa para si mesmo, já não encontra muito espaço no mercado. O limite poderia ser o dos 40 anos, uma espécie de idade crítica além da qual pouquíssimos bailarinos sobrevivem profissionalmente, em geral etoiles de companhias, com renome suficiente para que coreógrafos criem especificamente para eles; ou 50, idade em que a simples permanência do artista da dança já representa um fenômeno singular digno de nota.

Afinal de contas, por que a dança é tão cruel com seus artistas à medida em que envelhecem? A resposta que a maior parte das pessoas dá a essa pergunta é simples: porque o envelhecimento do corpo estabelece limitações para a realização de certos movimentos. No que se refere à especificidade de movimentos, trata-se de explicação tola: qualquer corpo possui limitações para a realização de certos movimentos, seja por sua própria constituição, seja pela maneira como foi sendo construído ao longo da vida. Quem quiser conferir, que mande uma bailarinazinha clássica realizar alguma ação que exija a quantidade de força que a musculatura de um halterofilista é capaz de realizar. No que se refere a movimentos em geral, a tolice se torna perversidade e preconceito: ela presume que corpos podem não ser dançantes mesmo quando são funcionais.

Se formos analisar a questão friamente, há apenas duas categorias de casos-limite de corpos que poderiam ser considerados não dançantes. Em ambas, por causa de uma não funcionalidade quase absoluta para o movimento. A primeira é constituída pelos corpos imóveis ou imobilizados: o catatônico, a vítima de lesões na coluna em altura que impossibilite completamente os movimentos do tronco etc. A segunda é integrada pelos corpos não coordenados, aqueles em que, por alguma razão, ao comando psíquico não corresponde necessariamente um determinado movimento – é o caso dos recém nascidos, ou das vítimas de problemas neurológicos como a doença de Parkinson ou a esclerose múltipla.

Na verdade, se formos pensar a respeito de um ponto de vista contemporâneo, até mesmo tais corpos poderiam, em tese, ser considerados “dançantes”. A ausência de movimento quando se espera de um corpo o movimento é, em si, uma possível categoria coreográfica, apta à realização de uma obra conceitual, irmã de filmes como Sleep (de Andy Warhol, em que a câmera apenas mostra um homem dormindo por horas) ou Blue (de Derek Jarman, em que a imagem é apenas um fundo azul, que nunca muda), ou de criações musicais como 4’33” (John Cage, em que o músico fica quatro minutos e 33 segundos sem tocar uma única nota). Quanto ao movimento descoordenado, chega a ser surpreendente como, numa época em que o aleatório é considerado possível elemento constitutivo da obra de arte, nenhum coreógrafo tenha até hoje decidido investigá-lo a fundo.

Mesmo se aceitarmos estas situações como grandes viagens possíveis exclusivamente para coreógrafos absolutamente experimentais, ou seja, algo muito além do cotidiano da dança (e do mercado, já que estamos falando de trabalho), é fácil constatar que nenhuma das duas tem qualquer relação direta com o envelhecimento – ou seja, este não é uma situação-limite que impeça o corpo de dançar, que impeça a dança, que a torne um fenômeno extraordinário.

Na verdade, dentro de um valor caro à contemporaneidade – a investigação de conjuntos de signos singulares e específicos, não utilizados por qualquer linguagem já codificada -, chega a ser surpreendente que tão poucos artistas se interessem por corpos em envelhecimento. Afinal de contas, eles são singulares frente a quaisquer corpos treinados através de técnicas corporais. As “limitações” do corpo de uma pessoa de 40, ou 50, ou 100 anos levam-na a ter movimentos que lhe são peculiares, que não podem ser encontrados em alguém de 30, ou 20, ou 15. E há algo especial nesta peculiaridade: o fato de que não pode ser concretamente reproduzida. Pode ser representada (um bom ator jovem pode interpretar os movimentos de um velho), mas a representação será virtual, sem a concretude que a dança, neste sentido única entre as artes, pode oferecer. Não há uma “escola” ou uma “técnica” que nos ensine a realizar movimentos de uma idade além da nossa. Só existe, portanto, uma maneira de realizá-los: envelhecer. O tempo, e não o treinamento, é responsável pela singularidade.

A tudo isto, soma-se o valor que geralmente atribuímos ao envelhecimento: a maturidade. A palavra, aqui, não tem apenas o sentido de mais experiência e, portanto, maior repertório de informações ou sentimentos. Representa, também, uma realidade coreográfica. A relação entre o movimento que se pretende fazer e o movimento que é realizado não é exclusivamente mecânica, implica, também em um complexo de reações afetivas, que vão da satisfação pela parte que se torna efetiva à frustração pelo que não é concretizado. A manifestação mecânica, os processos psíquicos que a produzem e as reações afetivas frente ao resultado influenciam-se mutuamente. Esta influência, mesmo inconsciente, é elemento integrado à memória de quem dança, ou seja, realiza-se de maneira sempre diferente à medida em que sua experiência se alonga – a nova maneira, do corpo que a pessoa sente ter num determinado momento, em confronto com todas as maneiras anteriores que já conheceu. Exemplos recentes de espetáculos criados e apresentados por corpos maduros foram “Danças de Porão”, com os criadores/intérpretes cariocas Paula Nestorov e João Saldanha (foto) e “Z1 – A Figura e o Fundo”, duo interpretado por Zélia Monteiro e Umberto da Silva na mostra Solos, Duos e Trios” no Centro Cultural São Paulo.

Os raros coreógrafos que lidam com bailarinos além da idade-limite imposta pelo mercado precisam, necessariamente, responder a uma questão: que fazer com aqueles corpos. A grande maioria deles responde com um pensamento de caridade que acaba apenas reforçando o aspecto perverso da questão. É muito comum que, por exemplo, grupos de apoio à terceira idade organizem cursos de dança. Em boa parte destes, o que se vê são aulas de técnicas já conhecidas, simplificadas de maneira a não exigirem demasiadamente da musculatura dos alunos. Em resumo, o que se oferece a eles é uma banalização das técnicas que não são mais adequadas a seus corpos. Nestes casos, o resultado artístico é apenas uma espécie de efeito colateral de atividades de cunho recreativo ou social. Quando tais grupos realizam apresentações, o que ouvimos são aplausos caritativos, e não um verdadeiro envolvimento estético dos espectadores. Desta forma, sob o pretexto de integrar o idoso à sociedade atráves do estímulo a sua atividade física e artística, acaba-se negando a ele sua própria singularidade: ele deve fazer todos os pliés e arabesques que os jovens fazem – mesmo se mal feitos – se pretende ganhar o respeito da comunidade.

É possível que a solução para este problema – válida para qualquer idade excluída pelo mercado de dança – possa ser semelhante àquela que o grupo inglês CandoCo encontrou para bailarinos paraplégicos. O trabalho do CandoCo é cruel, e não apenas por nos lembrar da deficiência de seus artistas. Ele traz para o palco a condição de paraplégico. Faz isso nos temas, em seu desenvolvimento, na escolha do repertório gestual (muitos dos movimentos não poderiam ser realizados por alguém que tivesse nas pernas sensibilidade à dor, por exemplo). Uma autêntica dança para os bailarinos que envelhecem precisaria inventar, possivelmente, um léxico próprio daqueles corpos; lógicas de tensão que ligassem as palavras deste léxico; e um conjunto de referências à própria realidade que determina a percepção destes corpos como algo singular, ou seja, que nos atirasse na cara nosso próprio medo do envelhecimento, nossa angústia em envelhecer, nossa rejeição ao bailarino que envelhece – o que, em última instância, é apenas uma manifestação de nosso preconceito contra a velhice.

Esta é uma questão com que toda a dança, mais cedo ou mais tarde, precisará lidar. O aumento da longevidade física do ser humano, uma saudável conquista da ciência, não foi acompanhado pelo crescimento de sua longevidade social. Tal processo torna-se ainda mais pernicioso pela opção da sociedade de consumo pela imagem da juventude. Encontramos a dança, então, num dilema: sob pretexto de realizar sua função social (qualquer que ela seja: entretenimento, catarse, educação para a vida, investigação de linguagem ou outra balela qualquer), ela acaba reforçando ainda mais um vício social: a afirmação de que a beleza e a juventude são sinônimas. Continuamos, então, à espera dos Solos>35, e 45, e 55, e 65, e 75. Pelo menos enquanto não houver coreógrafos e bailarinos em quantidade suficiente que não concordem com a condição, decidam mudar as regras do jogo e imponham radicalmente qualidade construída sobre corpos maduros, goela abaixo do público. Que, submetido a este tratamento de choque, talvez tome consciência de seu próprio preconceito e consiga descobrir a estética destes movimentos que ele tanto teme no palco – provavelmente por temer em seu próprio corpo.