A partilha do possível

Respeitável leitor,

(Pequena observação preliminar. Se lido durante o dia, esse texto pode ser melhor apreciado com café e pão de queijo. Caso seja noite, vinho ou cerveja, dependendo do gosto e da temperatura, são boas opções. Em alguns casos, recomenda-se, por precaução, deixar um copo de água-com-açúcar por perto. E, para todos nós, uma vela acesa para Iansã, deusa da sabedoria e dos raios!

Passei as últimas semanas pensando em como criar um texto que pudesse resumir e ser porta-voz das principais discussões que aconteceram durante os dez dias da intensa maratona que foi o Rumos Dança 2006/07, na cidade de São Paulo. Em sua terceira edição, o programa apresentou 25 trabalhos de dança contemporânea, 5 videodanças, além de laboratórios para pré-selecionados, encontros com pesquisadores, entre outras atividades.

Desde que os aplausos finais silenciaram e a rotina dos envolvidos voltou ‘ao normal’, minha sensação é a de estar diante de um quebra-cabeças. Por isso escrevo, nesse domingo paulistano tão ensolarado, alguns pontos de vista, que abaixo seguem. Com isso, gostaria de propor uma discussão aberta, neste website, através da manifestação espontânea de comentários. Você está convidado, portanto, a deixar sua contribuição no campo ao final do texto e fazer parte desse debate que pode recombinar os rumos da dança contemporânea brasileira.

Ponto G

Aquela que foi, talvez, a questão mais reincidente e obstinada de todas correu mesas de bares, coxias, camarins, celulares, cafés-da-manhã e resiste até hoje via e-mails, skype, pombo-correio, código morse e algumas técnicas secretas de transmissão de pensamento. A polêmica estava presente desde do Rumos passado e pode ser resumida numa indagação: afinal, o Rumos Dança é (quer ser mais) um festival ou (se assumir como) um lugar para mostrar/discutir trabalhos em distintas etapas do processo?

Para quem não pôde acompanhar a mostra, esse debate emergiu a partir de uma série de fatores, mas a motivação principal parece ter vindo da exposição de obras em andamento apresentadas em formato de produto. Inclusive, no texto no catálogo do evento, assinado pelo Instituto Itaú Cultural, está escrito: “a terceira edição da Mostra Rumos Itaú Cultural Dança apresenta os 25 espetáculos e performances […]”. Lembrando que, mesmo as pesquisas que estão prontas não necessariamente precisam ser formatadas assim.

Quando uma instituição convida curadores, jornalistas, críticos e público possui a expectativa de promover circulação e difusão daquilo que financiou. Mas, fico me perguntando em que medida um curador (e o mercado) tem interesse por trabalhos em processo e se eles não correm o risco de serem julgados precipitadamente. De modo que, o descompasso entre a não-exigência de obras prontas e o entendimento ingênuo de que apresentá-las em formato de espetáculo no palco do (ineficiente) Teatro Gazeta passaria impune para a percepção do público, renderam uma peça sem casa de um jogo, até agora, bom de quebrar

Até os santos já sabem que apostar no valor investigativo de obras é condição sine qua non para movimentação do pensamento em dança. Ao mesmo tempo, se traduz como postura política, na medida em que se compromete a apoiar a criação contemporânea, com todos seus riscos imanentes. Essa escolha deve ser destacada mas, não se pode esquecer que, se temos interesse em pensar diferente da lógica do mercado, criando interstícios, não incentivando o caráter espetacular e o consumo de produtos artísticos, então, como apresentar para a sociedade (em que formato, local) um conjunto de obras que pode se caracterizar pela diversidade de argumentos e estágios de pesquisa?

Essa pergunta puxa outras, feito trenzinho em baile de carnaval…

O imã da rede

Comparando a síntese de conhecimento da dança com uma rede produtiva (ora pontualmente organizada, ora desconectada) presumo que o artista ocupa um papel fundamental, embora no curso dos acontecimentos o ovo e a galinha atuem simultaneamente, em conexões de diferentes coesões e temporalidades. A importância do artista deve ser sublinhada na medida em que ele reúne e agrega seus parceiros sensíveis. Sem a devida articulação da sua produção, público, produtores, iluminadores, videomakers, fotógrafos, críticos, pesquisadores, curadores, selecionadores, empresas patrocinadoras, demais profissionais e curiosos podem tirar férias forçadas. De modo que, se a empreitada Rumos Dança quer evoluir incorporando a demanda da produção contemporânea, precisaria ouvir previamente a quem? E esse quem, como tem lidado com essas questões? Que concessões faz? Por quais motivos? Ou, pelo contrário, tem liberdade demais?

Por iniciativa própria, um dos participantes da equipe de seleção dos projetos, o produtor Eduardo Bonito, chamou os artistas e interessados que cruzou pelo caminho para um encontro, onde apareceu gente suficiente para trocar experiências e impressões de um modo coletivo. Na ocasião, a gerente do Núcleo de Dança do Itaú Cultural Sonia Sobral teve oportunidade de ouvir os presentes. A polêmica do descompasso veio à tona e a fratura, exposta.

A sugestão para o impasse veio de Wagner Schwartz, performer que teve seus trabalhos selecionados pelo Rumos em 2001 e 2004, e tem muitas chances de ser incorporada no folder da próxima edição. Inspirada em algo que o Fórum Internacional de Dança (FID) vem desenvolvendo no programa Território Minas, a proposta seria organizar uma reunião antes da mostra final. Participariam dela: um representante de cada trabalho selecionado pelo Rumos Itaú Cultural Dança 2008/09, a produção da instituição e mais algumas pessoas-chave, que pudessem atuar como mediadores da conversa. Pensar os critérios levantados pelos artistas para construção de seus trabalhos artísticos e as possibilidades práticas para sua produção configurariam os principais pontos dessa pauta.

Além disso, um agrupamento desse tipo favoreceria um contexto onde os criadores teriam a oportunidade de tomar conhecimento uns dos outros, de compartilhar seus processos, de ouvir opiniões e argumentos e, ainda, ajudariam a instituição a contextualizar adequadamente os trabalhos.

Rave

Uma das coisas mais bonitas que o projeto faz (e isso estava na boca do povo como mérito) é o fato do Rumos Dança conseguir agrupar (e super produzir), durante os dez dias que dura, mais de 150 profissionais! 120 diretamente envolvidos, como foi neste ano, além do público, jornalistas, curadores e demais interessados. Só isso já seria garantia para a ocorrência de uma explosão de encontros! A quantidade, durabilidade e qualidade desses encontros é difícil de prever, mas são muitos e em muitas direções. Nenhum outro evento de dança no Brasil consegue cumprir tão bem a função de manter a convivência contínua.

Trata-se mesmo de uma oportunidade única (e intensa), concentrar tantos profissionais diferentes da espiral produtiva da dança contemporânea brasileira num mesmo espaço-tempo. Uma qualidade dessas convergências é que elas se deram de modo predominantemente informal, principalmente em relação aos artistas, visto que pesquisadores tiveram seus momentos, pré-selecionados seus laboratórios, público seus espetáculos mas, aos criadores não reservaram uma agenda integrada, a não ser pela tentativa, também informal, acima mecionada. Valeria a pena imaginar, então, como potencializar esses dez dias de convivência entre os artistas e se haveria uma “proposta Rumos de estar junto”?

Além da abrangência nacional, outra característica mencionada é o fato do Rumos Dança ser uma mostra de estréias. Os festivais europeus co-produzem duas ou três obras, enquanto o Rumos comissiona 25. Em 2000/01, foram 8 propostas para a mostra final. No biênio 2003/04, o programa recebeu 415 inscrições para desenvolvimento de obra coreográfica (15 mil para solos e duos, 20 mil para grupos, 14 selecionados) e 74 para produção de videodança (30 mil, 2 selecionadas). Nessa edição, foram 534 inscrições para obra coreográfica (26 mil para solos e duos, 35 mil para grupos, 25 escolhidas) e 128 para videodança (15 mil, 5 premiadas). Esse suporte vem sendo essencial para o desenvolvimento da dança brasileira.

Imagens em movimento

Quem ainda não viu as videodanças premiadas, PERDE por esperar porque os resultados desse ano alcançaram/apontaram soluções estéticas e críticas, colocando essa família da videoarte em evolução. Inclusive, a prática de definir videodança como “dança para câmera” parece ter sido, finalmente, superada – ao menos é o que fica claro nas cinco obras projetadas na tela do teatro do Itaú Cutural e, merecidamente, muito bem aplaudidas.

Sensações Contrárias, por exemplo, de Amadeo Alban, Jorge Alencar e Matheus Rocha, faz o olhar palpitar de um ponto para outro da tela, na medida em que uma segunda ação surge, roubando a atenção da primeira. Consegue, assim, repensar de modo político e artístico, a questão da perspectiva através do corpo e do movimento. Sem falar da genial Fora de Campo, de Cláudia Müller e Valeria Valenzuela, que simplesmente dá orgulho de ser brasileira(o), por seu mecanismo de indução sensorial, emocional, afetivo, documental… O filme tem temperatura. O mesmo pode ser dito para Jornada em busca do Umbigo do Mundo, animação narrativa realizada em stop motion com uma paisagem de corpos nus que parece criar uma fábula-épica sobre o individualismo contemporâneo.

A produtora e videomaker Tamara Cubas deixou o Uruguai para conferir os resultados dos projetos que ajudou a escolher. Freqüentemente convidada a participar como curadora e selecionadora em festivais, Cubas se diz surpresa. Segundo ela, na América Latina, “a videodança ainda continua sendo uma prática artística relativamente nova e esse programa estimula a produção, a formação e o desenvolvimento da linguagem, além da difusão das obras premiadas”. Oxalá!

Banco de informações

Existem poucas iniciativas de mapeamento de dados na área de dança preocupadas em tornar o seu levantamento público e acessível, como é o caso da Base de Dados Rumos Dança, que foi novamente atualizada por 13 pesquisadores e re-mapeou informações de 22 Estados e do Distrito Federal (60 cidades). Você já pesquisou alguma curiosidade sua nesta base de dados?

Com uma interface enxuta e um mecanismo de busca que funciona, é possível solicitar particularidades relacionadas aos seguintes critérios: produção artística (profissionais e companhias), difusão (festivais e mostras de dança), iniciativas de apoios (bolsas, leis e prêmios), ensino (instituições, cursos e qualificação profissional), organizações de classe (mobilização coletiva), estudo (produção teórica e prática), publicações (difusão de informação especializada) e tradição histórica (preservação da memória). Caso o sistema lhe diga que “não existem registros de acordo com os critérios de busca”, ou ainda, caso você encontre alguma informação incoerente, não hesite em enviar um e-mail para atendimento@itaucultural.org.br.

Repare que, isoladas, as informações contidas nesse banco se aparentam com uma radiografia: uma representação que precisa ser interpretada e linkada com outras camadas de saber para constituir-se em traços da situação da dança no Brasil. Existem recursos digitais que permitem criar visualizações dinâmicas e interativas que podem colaborar nesse sentido, além de implementações de outras naturezas como a escrita. Se o mapeamento (e sua freqüente atualização) cumpre uma etapa fundamental, o que fazer para que essa quantidade enorme de dados se transforme em conhecimento? Como relacionar a Base de Dados com os outros documentos, como os registros audiovisuais das obras coreográficas, palestras e making off? Que relações podem existir, por exemplo, entre as obras selecionadas e a política cultural local relacionada? De que modo isso vem ocorrendo nas diversas regiões brasileiras?

E assim por diante….

O buraco da peneira

Selecionador, jurado ou curador? Foi o que perguntei para cada um dos quatro membros da equipe de seleção desta edição do Rumos e a resposta foi unânime pela primeira opção – ainda que, freqüentemente, eles fossem chamados de “curadores” pelos halls de convivência. Será que existe um acordo no que diz respeito ao significado de cada uma dessas funções? Em que medida se diferenciam uma da outra?

Entendo a atuação do jurado associada à festivais e eventos competitivos, o que passa por dar notas respeitando normas mais ou menos pré-definidas. No caso do selecionador, como o próprio nome diz, seu papel é escolher e pinçar os projetos de acordo com critérios definidos pelo edital e/ou pelos participantes da comissão, tal como aconteceu durante alguns dias, horas a fio entre os “curandeiros” (nome dado pelo coreógrafo Alejandro Ahmed, em uma das felizes mesas de boteco) que separaram as propostas apresentadas. Os critérios consistiram em: a coerência entre o que estava escrito e o que era mostrado no vídeo, a relevância e o caráter investigativo em propostas de dança contemporânea. A distribuição geográfica foi um critério secundário, praticamente irrelevante. Assim sendo, os 25 premiados vieram do denominador comum das quatro cabeças dessa equipe.

Já o curador tem uma função diferenciada e as práticas demonstram uma variação grande nesse campo (em muitos casos os apoios nacionais/internacionais e patrocínios podem definir grande parte da programação de um festival). Independente ou funcionário de uma instituição, o curador pode ser aquele que cuida do bem-estar das obras de arte e/ou promove exposições com acervos. Também pode eleger um tema, uma questão, um tipo de prática e, a partir daí, reunir trabalhos que dêem visibilidade múltipla a isso. Existem outras curadorias que propõem releituras de obras históricas ou co-produzem trabalhos sugerindo algum assunto. No Brasil, a área de dança não conta com uma política razoável nem com muitos espaços para a atuação desse profissional. Também não há formação específica. Uma iniciativa nessa direção (mas que não sobreviveu) fazia parte do projeto inicial do Rumos Dança, em 2000. Na época, uma equipe de curadores-assistentes viajou para algumas cidades das regiões brasileiras para assistir ao vivo a apresentação das obras inscritas.

Platéias

Um ganho que pôde ser visto a olho nu foi o aumento de público! Muito provavelmente em virtude de três motivos diretos: a continuidade da mostra, a escolha dos lugares destinados às apresentações (mesmo que estes não tenham favorecido algumas) e o aumento na quantidade de propostas selecionadas. Esse acréscimo emerge, também, a partir de uma rede de ocorrências que envolve a ampliação no número de graduações na área das artes do corpo, a consolidação da web como mídia, forma de comunicação e organização alternativas, as relações miscigenadas que a dança estabelece com as demais artes, a distribuição de livros, devedês e periódicos por iniciativas privadas e independentes, o aumento de profissionais formados etc etc etc… Nesse sentido, o desafio que se coloca nesse momento se resume na questão: como poderíamos descobrir ainda outras formas de deixar esse público mais íntimo das questões abordadas pelas produções de dança contemporânea? Poderia existir ainda alguma outra forma de convite?

Vale lembrar que, curiosamente, na primeira edição da Mostra Rumos Dança acontecia do teatro do Itaú Cultural não encher completamente. Já na segunda, choveram reclamações devido ao excesso de procura pelos ingressos e a falta de lugares no teatro. Desta vez, a vitrine de apresentações se espalhou por três locais diferentes e as salas transbordaram. O Teatro Gazeta, apesar dos problemas, comportou 700 pessoas em uma das noites! A sala Crisantempo, com uma arquitetura móvel, acolheu trabalhos que precisavam de proximidade para no máximo 100 expectadores. A abertura e o encerramento ficaram por conta do teatro do Itaú Cultural. Para a platéia excedente, telões com transmissões ao vivo foram utilizados como recurso. Valerá a pena pensar em como acomodar, além dos participantes, uma quantidade maior de público, porque desde já podemos (queremos!) contar com uma participação expressiva para a próxima.

Antes da despedida, aplausos para os organizadores de dança

Adriana Grechi/Núcleo Artérias (Ruído/SP), Alex Cassal e Michelle Moura (Gêmeos/RJ), Clara Trigo (Deslimites/BA), Daniel Queiroz (Pele Pelo Osso/SP), Daniela Dini (Alcântara/SP), Elisabete Finger (Amarelo/PR), Graco Alves (Magno_Pirol/CE), grupo Dimenti (O Poste, a Mulher e o Bambu/BA), Helder Vasconcelos (Por si Só/PE), Helena Bastos e Raul Rachou (Vapor/SP), Helena Vieira (Maria José/RJ), João Fernando Cabral (Mania de Ser Profundo ou Por que Parei de Jogar Futebol?/RS), Juliana Moraes e Anderson Gouvêa (Um Corpo do qual se Desconfia/SP), Leticia Sekito (E Eu Disse/SP), Luis Ferron (deSmuNdOs – diálogos 01/SP), Marcela Levi (IN-ORGANIC/RJ), Movasse (Imagens Descolocadas/MG), Maurício de Oliveira (Degelo/GO), grupo Phila 7 (Op1/SP), Roberto Ramos e Gustavo Ramos (Spiro/SP), Sheila Ribeiro e Josh S. (Organizador de Carne/SP), Stéphany Mattanó e Neto Machado (Solução para Todos os Problemas do Mundo/PR), Valéria Vicente (Pequena Subversão/PE), Vanilton Lakka (Outras Partes/MG) e Verônica de Moraes (Bom de Quebrar/BA).

Sei que os artistas aguardam ansiosamente pela parte em que se comentam suas obras. Lamentavelmente, nesse momento, terei que frustrar as expectativas principalmente porque com o espaço reduzido que teria pela frente, fatalmente faria com que eu cometesse imprecisões. Mesmo assim, não deixo de convocar o público e os artistas para mais essa partilha.

Que venha o possível!
P.S. Ao longo de 2007 publicarei textos sobre jovens criadores de qualquer parte do mundo. Se você tem até 30 anos, já desenvolveu pelo menos 2 projetos em dança contemporânea, videodança (e/ou arte contemporânea com foco no corpo) e gostaria de ver seu trabalho comentado aqui, envie um email para mairasp@uol.com.br com a palavra “novos criadores” no campo assunto.