A partir das entrelinhas da história

Pernambuco ganhou mais um empreendimento na área de pesquisa histórica em dança: uma série de livros biográficos sobre três artistas significantes para a formação e desenvolvimento da dança no Recife. Uma iniciativa do pesquisador pernambucano Arnaldo Siqueira, com a colaboração do alagoano Antonio Lopes.

Esses livros, que remetem às vidas e obras de Tânia Trindade, Flávia Barros e da falecida Ana Regina Moreira, me estimularam a refletir sobre o desenvolvimento da pesquisa histórica de dança no Brasil e suas conseqüências para os artistas da dança.

Uma conversa com Arnaldo, e o recente contato com outros pesquisadores do Brasil, demonstraram que o estímulo para arriscar numa investigação da trajetória da dança advém de algumas preocupações em comum: a necessidade de se conhecer o pensamento dos primeiros formadores de dança para compreender melhor a realidade dessa arte, a vontade de preservar documentos históricos que estão se perdendo (muitos já não existem) e o desejo de difundir a memória da dança para a sociedade ressaltando a sua influência na formação cultural de uma nação.

O desbravar dessa história, entretanto, se depara com alguns complicadores. O mais evidente deles é a falta de investimento financeiro na área, dependendo da persistência e vontade dos pesquisadores, apesar do descaso dos poderes públicos e das empresas privadas. O outro ponto em questão é: como fazer pesquisa histórica, não sendo historiador? A maior parte de pesquisadores de dança são artistas (ou foram), e buscam se apropriar de teorias e pensamentos da História para realizar suas pesquisas.

Diante desta realidade, com pouco tempo e recursos para pesquisa, sem dominar ferramentas da História, Arnaldo Siqueira fez a opção de escrever biografias, que mapeassem o início da formação em dança clássica no Recife. Segundo ele, esse trabalho é o início de um parágrafo sobre uma história, ainda sem ponto final. Um estímulo para que outras pessoas desenvolvam seus estudos na área.

Esse pensamento permeia grande parte das pesquisas históricas em dança atualmente. Ao buscar registrar a trajetória da dança nos diferentes lugares do Brasil, percebe-se que essa história, apesar de recente, tem muito conteúdo para ser aprofundado. O momento agora é de não deixar essa memória se perder. E nesse contexto percebemos uma nova forma de registrar a história cultural, com novos conceitos e métodos, adaptados à realidade de quem pesquisa e à própria natureza fugaz da dança.

Não pretendo, aqui, me debruçar sobre os conceitos por trás dessa nova maneira de registrar a história cultural. Meu interesse é discutir como essa pesquisa pode suscitar novas reflexões no fazer artístico atual, a partir da conexão entre passado e presente.

O olhar de três gerações de artistas sobre a trajetória da dança pernambucana

Ao ler os livros publicados por Arnaldo Siqueira, que foi bailarino nos anos 80 e 90, indaguei como teria sido para ele o processo de assimilação dessa história decorrentes dos depoimentos de artistas atuantes nos anos 50, 60 e 70. Tivemos uma rápida conversa sobre este processo, e agora colocarei em questão o meu olhar, contrapondo o pensamento de três gerações: o meu, o de Arnaldo e o das três biografadas.

Nas três biografias é visível a intenção de Arnaldo Siqueira em abordar aspectos do contexto da época em que atuaram Tânia Trindade, Flávia Barros e Ana Regina Moreira, como a política cultural, a formação de grupos de dança e valores da sociedade pernambucana. Esse contexto, entretanto, é apenas relatado nos livros, deixando para que o leitor faça suas próprias reflexões a partir de provocações contidas nas entrelinhas. O texto aqui presente é uma conseqüência das entrelinhas da pesquisa de Arnaldo, buscando aprofundar alguns questionamentos e fazer conexões com o presente.

Talvez o aspecto mais explícito de provocação do autor seja quando ele aborda as políticas culturais da época, principalmente na biografia de Tânia Trindade, que ensinou durante vinte anos no Teatro de Santa Isabel, curso subsidiado pela Prefeitura do Recife. Após apontar as diversas iniciativas no Recife de se formar um Corpo de Baile Municipal, Arnaldo deixa bem claro que a maior parte desses empreendimentos foram encabeçados por artistas ligados ao teatro, os “homens de teatro”, como cita o autor. Este fator aponta para a falta de engajamento político dos artistas da dança da época. Os depoimentos das biografadas, por exemplo, demonstram uma grande preocupação pelo ensino e criação artística, mas raramente comentam sobre políticas culturais.

Analisando o momento efervescente pelo qual a dança pernambucana se encontra atualmente, buscando se organizar politicamente e propor iniciativas para área, percebe-se ainda, em alguns artistas, uma concepção ultrapassada de fazer política cultural e uma dificuldade de cobrar seus direitos diante dos órgãos públicos. Essa deficiência está intimamente ligada ao fato de que parte das políticas criadas para dança até então foram pensadas por profissionais de outras áreas. No curso da história, por exemplo, mais de 90% dos cargos à frente das Secretarias de Artes Cênicas municipais e estaduais eram ocupados por artistas vindos do teatro.

Em contraponto, Arnaldo revelou, durante a nossa conversa, como os bailarinos recifenses vêm se desgarrando do pensamento de produzir dança apenas quando integrados em companhias. Os relatos feitos nas três biografias mostram como os bailarinos das décadas de 50 a 70 não costumavam freqüentar mais de uma escola, como um ato de fidelidade a sua mestra. Os grupos criados na década de 90 ainda preservavam uma ideologia de guetos, mas que vem se modificando com o tempo. Hoje, existem profissionais que transitam por diferentes professores de dança, atuando em mais de um grupo, além de realizarem trabalhos autônomos. A cena independente está criando um espaço na agenda artística da cidade, como se pôde constatar na quantidade de trabalhos autônomos apresentados ultimamente na cidade.

Este ano houve, como exemplo, iniciativas como o projeto Visões Contemporâneas – Ano II (fevereiro) que apresentou cinco performances nos espaços públicos de Recife; a grande quantidade de duos e solos na programação do evento Plataforma de Dança (maio e junho); a realização do work in progress de Kleber Lourenço, chamado Jandira (junho); e a estréia de mais uma versão do projeto O Solo do Outro (julho) que apresentou o trabalho de três intérpretes criadores. Segundo Arnaldo, a consolidação desta cena independente não significa uma ameaça para o trabalho desenvolvido por companhias, apenas propõe novas formas do pensar e fazer artístico, convivendo paralelamente no mesmo cenário.

Por fim, é importante avaliar como se deu a formação técnica e artística do corpo de dança pernambucano. A partir dos depoimentos registrados nos livros, não fica clara qual a metodologia de ensino era utilizada pelas professoras da época. Pela trajetória de cada artista percebem-se algumas influências de escolas clássicas, a partir do contato com alguns professores russos ou ingleses, mas ao que parece, o ensino no Recife foi algo muito mais intuitivo do que sistematizado.

Ainda hoje o corpo do artista pernambucano é indefinido, absorvendo influências de diferentes técnicas de dança moderna, popular, contemporânea, clássica, a partir de professores e cursos que passaram pela cidade. A ausência de um centro de formação ou faculdade da dança talvez reforce esta realidade. Entretanto, este fator não desqualifica a produção artística da cidade, que desde os primórdios demonstra força no cenário de dança nacional.

Como relatam os livros, em 1962, Pernambuco e Bahia foram os únicos representantes do Nordeste no I Encontro de Escolas de Dança do Brasil, realizado em Curitiba. A Bahia levou o trabalho desenvolvido pela Escola de Dança da UFBA, e Pernambuco participou com a presença de duas escolas: o grupo de alunas de Flávia Barros e de Ana Regina Moreira. O depoimento das próprias artistas e de jornalistas e políticos da época revelam o destaque que o trabalho de Pernambuco teve no Encontro. Ainda hoje, a formação do artista pernambucano tem grande reconhecimento pelo país, exportando profissionais para grupos e companhias de dança consolidadas, como o Grupo Corpo, o Balé da Cidade de São Paulo, o Grupo Cisne Negro, o Balé 1º Ato, a Cia Débora Colker, entre outras.

Como bailarina, e recente pesquisadora, posso afirmar que alguns relatos encontrados na pesquisa de Arnaldo Siqueira surpreendem, outros confirmam uma realidade. O interessante é perceber como o constante contato com as entrelinhas da memória da dança pode construir no artista um corpo de pensamento mais consciente, exigindo uma reavaliação da realidade.

* Liana Gesteira é bailarina, jornalista e pesquisadora do Acervo Recordança.