A pedra de cada um

Embora a política cultural no Brasil não seja das mais louváveis, uma nova geração de artistas da dança contemporânea vem mostrando insistência, vigor e produção nos últimos anos. Esses criadores destacam-se também pela familiaridade com que lidam com as mídias digitais, pela diversidade de interesses no campo da arte e pela maneira de organizar e coreografar os materiais que selecionam. São artistas em torno dos 30 anos, graduados, com razoável experiência de palco e vivência artística. Eles encontraram cada um (ao mesmo tempo que inventam), nas palavras de Trisha Brown, a sua pedra. Aquela pedra preciosa que será re-inventada tantas vezes ao longo de sua vida. Valeria citar como exemplos dessa geração Jorge Alencar (BA), Thiago Costa (MG), Elisabete Finger (PR), Candice Didonet (SP), Verônica de Moraes (BA), Michelle Moura (PR), Lakka (MG), entre tantos e tantos outros. No caso da bailarina Michelle Moura (1979), graduada em Dança pela Faculdade de Artes do Paraná (2002) e pós-graduada em Estudos Contemporâneos em Dança pela Universidade Federal da Bahia (2003), suas práticas artísticas chamam a atenção pela tessitura entre as artes visuais, a performance e a dança contemporânea. Uma prova disso é seu mais recente projeto, O que me move a me mover, que vem sendo realizado com a colaboração de Elisabete Finger e Gustavo Bitencourt e conta com recursos do Prêmio Klauss Vianna de Fomento à Dança (Funarte/Petrobras). O que me move, a sede ou a água? Como o próprio nome diz, o projeto investiga motivos para o movimento e faz da exploração entre corpo e não-corpo (parede, linóleo, elástico, balões, tábua) uma estratégia para testar propriedades específicas, como peso, volume, força, equilíbrio e deslocamento.

Numa outra etapa do projeto, o trio passou a investigar ações em espaços abertos, como parques e paisagens naturais, o que eles têm chamado de experiências nômades. O uso da fotografia, neste caso, não é apenas um mero registro mas a performance em si. “Nessas primeiras experiências estamos trabalhando com a idéia de ‘dar a ver o espaço’, através de enquadramentos e perspectivas que se estabelecem com as relações entre corpo, materiais e paisagem. Dessa forma temos utilizado a fotografia, recortando, enquadrando, evidenciando cores e formas. A estranheza das imagens geradas pelos materiais nesses novos espaços nos fizeram pensar em ficções, quer dizer, outros modos de perceber e habitar este espaço. Desejamos gerar algumas ficções entre corpo, paisagem, lugar e materiais, desenvolvendo relações por semelhança de forma, cor, mimetismo, extensão, continuidade. Essas ficções não tem o sentido de criar narrativas, mas de construir e modificar paisagens”.

A experiência nômade seguinte está sendo realizada numa residência em Terra Una (MG). Algumas Imagens podem ser vistas tanto no blog O que me move a me mover. Para finalizar o projeto, além das fotografias, está prevista a criação de uma obra coreográfica.

A experiência é a obra

Na época em que foi bolsista da Casa Hoffmann – Centro de Estudos do Movimento (Curitiba/PR), Michelle teve a possibilidade de criar e apresentar vários trabalhos. Entre eles, Sem fim para dentro e para fora, Peça Selecta 1 e 2 (2003), que revelam como organizava a partir das referências que a encantavam, como a da bailarina e performer espanhola La Ribot (autora de 13 Piezas distinguidas, Mas distinguidas e Still distinguished), o Grupo Fluxus, o artista norte-americano Bruce Nauman, Anish Kapoor, a Cia. Silenciosa de Curitiba, os artistas brasileiros Michel Groisman, Lygia Clark e Lia Rodrigues, a performer iuguslava Marina Abramòvic, entre outros.

Já na obra seguinte, Mais uma peça selecta (2004), parte da programação do 13° Panorama Rioarte De Dança (RJ), Michelle atua em parceria com Ricardo Marinelli e, num determinado momento, eles expõem um diagrama do trabalho que estão apresentando. Uma espécie de mapa de relações lógicas daquele sistema específico de pensamento. Quem viu mais recentemente a interpretação de Michelle em Vida Real (2006), projeto de Dani Lima (RJ), sabe do que estou falando. É uma característica relevante no modo da artista pensar a dança e conversar com o mundo que a cerca.

A emergência dessa operação cognitiva ficaria mais evidente na obra Linhas (de pensamento) ou a tarefa de dizer coisas importantes para pessoas românticas (2005), que estreou na exposição Paradoxos Brasil, no Itaú Cultural (SP). Michelle divide a cena com Karenina de Los Santos (ou Stéphany Matanó) e os objetos de Lauro Borges. O corpo, o movimento, o desenho e a palavra criam relações e geram esquemas que, por sua vez criam um espaço outro. Matemático, abstrato, lógico, métrico. Isso convida o espectador a tomar uma atitude ativa, que é construída através da reflexão e da imaginação. Michelle se entusiasma, “são as relações entre as coisas! Gosto da idéia de produção de sentidos através das relações! É pelo encontro que as coisas ‘são’, passam a ser. O desafio é pensar como são essas relações quando criam redes nas mentes”.

Outras obras de sua autoria são: Instruções para andar segundo Lao Tsé (2002), As baratas como veículo e A arte de prevenir as deformidades do corpo (2004). Michelle também participou do CoLABoratório (encontro de coreógrafos sul-americano e europeu), e contribuiu com Alex Cassal na peça Gêmeos, contemplada pelo programa Rumos Dança Itaú Cultural 2006/2007.

Tronco e membros

Michelle Moura faz parte de um coletivo de artistas chamado Couve-Flor, Mini Comunidade Artística Mundial, cuja sede física, o Cafofo, localiza-se na cidade de Curitiba. Os “couves”, como são carinhosamente chamados, são sete (além da Michelle): Elisabete Finger, Neto Machado, Ricardo Marinelli, Stéphany Mattanó, Gustavo Bitencourt e Cristiane Bouger, a couve que mora em Nova Iorque. Eles se encontraram e criaram laços através da convivência e da colaboração artística entre os anos de 2003 e 2004, período em que foram bolsistas e artistas atuantes na Casa Hoffmann, que é o do espaço da Fundação Cultural de Curitiba (FCC) que foi destinado à dança. Era a época em que a dupla Andréa Lerner e Rosane Chamecki encabeçavam a programação da casa e organizaram a passagem de dezenas de artistas de diferentes países (e do Brasil), com o intuito de compartilhar seus pensamentos de dança e suas metodologias de trabalho e criação.

A vinda de artistas como Thomas Lehmen, Xavier Le Roy, La Ribot, Deborah Hay, Lia Rodrigues, Ko Morobushi, David Zambrano, André Lepecki, Vera Mantero, entre outros, serviu como uma estufa e proporcionou um ambiente suficientemente estimulante para que cada um ali presente pudesse descobrir/inventar sua pedra. Segundo Neto Machado, “o espaço funcionava não como uma formação em dança mas um lugar para experimentação e troca” o que, conseqüentemente, oportunizava a experiência, o risco e a produção. Elisabete Finger conta que foi um “momento em que se produziu muito na Casa Hoffmann. Além dos bolsistas que recebiam suporte financeiro, outras pessoas começaram a se aproximar e a se interessar pelo espaço e pelo movimento artístico que estava borbulhando ali”.

É nesse contexto – e com a vontade de construir uma comunidade artística forte – que nasce o Ciclo de Ações Performáticas, criado e organizado (com suas sub-curadorias) por Andrea Serrato, Cristiane Bouger, Eduardo Giacomini, Elisabete Finger, Gustavo Bitencourt, Michelle Moura, Olga Nenevê, Ricardo Marinelli e Rocio Infante. Os encontros aconteceram às terças-feiras, entre os meses de setembro de 2003 e dezembro de 2004, com entrada franca. As obras que foram produzidas durante e depois desse momento efervecescente são: Eu tenho autorização para estar pelado aqui, de Ricardo Marinelli, Quer saber do Q estou falando!, de Neto Machado e Stéphany Matanó, Construção para movimento concreto e Adaptação ou estudo n.3 para um plástico amarelo, de Elisabete Finger, Dois corações e um bebê ou abre um pouco #2 (emocore cardio dub edit), de Gustavo Bitencourt, Agora se mostra o que não está aqui, de Neto Machado, Solução para todos os problemas do mundo (projeto premiado pelo Rumos Dança 2006/2007 e verdadeiro sucesso de público), de Neto Machado e Stéphany Matanó, além od documentário Comunidade, Ativismo e a Cena Downtown, de Cristiane Bouger, entre outras.

Em 2005, os artistas que hoje integram o Couve-Flor, junto com Juliana Adur e Maria Clara Bordini, realizaram seu primeiro projeto coletivo, o Mostra Tudo, que fez viajar para sete cidades do Brasil os trabalhos apresentados no Ciclo, com recursos do prêmio da Caravana Funarte de Circulação Regional. Curiosamente, o final da Mostra Tudo coincide com a mudança do governo municipal, que adota uma outra política cultural para Curitiba. Nesse momento, os couves perceberam que já estavam organizados o suficiente para seguirem adiante.

Para quem tem a oportunidade de conhecê-los e ver o Cafofo em andamento (criação, ensaio, discussão, performance, convidados etc) percebe que o sentimento de comunidade os contaminou. Gustavo Bitencourt (1976), que é performer, designer gráfico e programador, diz que “uma palavra que sempre esteve no meio do nosso discurso é comunidade. Não dá pra pensar em fazer parte de um coletivo, se esse coletivo não puder de algum modo colaborar para – e se beneficiar com – a construção de uma comunidade maior que ele. Senão não tem o menor cabimento. Sei que pode parecer discurso de televangelista, mas comunidade depende de conviver com diferenças. A gente tem se esforçado pra que essa necessidade de sobrevivência, que foi o que nos juntou, também ganhe outros sentidos de ativismo. Acho que coletivo tem que ter a ver com ativismo, senão é propaganda enganosa”.

Como deu para perceber, o Couve-Flor não é um grupo, é um organismo de trabalho. São artistas independentes que partilham interesses artísticos e afinidades estéticas. Uma das características desses jovens, que se destaca em relação a gerações mais antigas, é a intimidade que têm com as mídias digitais e como essa intimidade faz parte da metodologia de criação, registro e compartilhamento. Clique aqui para acessar o clipe de divulgação do coletivo.

projetando a sobrevivência

Atualmente, a mini-comunidade artística mundial se divide em várias atividades e projetos. Um dos que estão em andamento é o Conexões Artes Visuais – Dança (Artes Visuais/Funarte), uma parceria do Couve-Flor com os coletivos E/OU (artes visuais) e o Núcleo de Estudos da Fotografia, sob coordenação de Elisabete, Neto e Ricardo. O projeto se estrutura por meio de três principais frentes de ação: mostra e discussão de trabalhos com diferentes históricos em artes visuais e dança; mostras comentadas de vídeos de dança e performance e, produção e distribuição de registro textual e imagético das ações realizadas.

O trio acima mencionado também está comprometido com o projeto INFILTRAÇÕES (Estados de encontro e técnicas de infiltração – corpo em ação como suporte da arte) que busca na performance e nos conceitos de site specific das artes visuais, um modo de operação e de ação para intervenções urbanas, com suporte do corpo e do movimento. A pesquisa recebeu a Bolsa de Produção em Artes Visuais, da FCC. As intervenções são pontuais e acontecem em ruas, praças, terminais de ônibus e outros locais públicos. Na minha breve passagem pela cidade, pude acompanhar Elisabete e Ricardo, numa esquina movimentada. Eles observam e se perguntam: o que observar?, como observar? Constatam repetições e padrões, como o rapaz japonês que atravessa a rua todos os dias mais ou menos no mesmo horário. Como seria, então, agir nesse espaço público de modo a incitar uma diferença para esse rapaz e que, talvez, só ele venha a perceber, justamente por ter sido levada em consideração a sua rotina no lugar? Isso supõe, como eles disseram, “um entendimento profundo do contexto para provocar uma ação específica que possa fazer alguma comunicação com um usuário desse ambiente”. Isso os torna interessados não só na intervenção mas também no rastro que ela pode deixar.

Os couves Gustavo e Ricardo também têm novidades: as estréias de Bife e Da nudez, da mentira e da cumplicidade, respectivamente. Bife estréia no dia 28 de fevereiro e fica em cartaz até o dia 9 de março, no Teatro Reikaus Benemond, em Curitiva. Segundo ele, o solo tem “acompanhamento e intervenções dramatúrgico-mercadológico-políticos de Wagner Schwartz, ideológico-estético-musicais de Octávio Camargo, desenho-conceito-iluminativas de Fábia Guimarães e sócio-físico-estratégicas de Ricardo Marinelli”. A performance é crua, honesta, corajosa, íntegra e sem fingimentos. Seu autor corre vários riscos, mas está disposto a lidar com eles, senão não teria levado a empreitada adiante. O texto escrito para o programa por Schwartz dá algumas pistas: “GB reconhece na história pessoal de GG (Allin, o músico) uma chance para habitar artisticamente sua cidade – aparentemente cosmopolita e embevecida de títulos. […] A arquitetura do palco é pequena para ambos. (A arquitetura do quê é pequena pra ambos?) Eles precisam cruzar as coxias, deitar a rotunda e atingir o público: GG com socos e dejetos, GB com a reação social – é difícil falar em baixo calão em uma cidade como Curitiba, a não ser que você esteja bem protegido num quarto escuro”.

Já o solo de Ricardo (1981), Da nudez, da mentira e da cumplicidade, que recebeu o Prêmio Klauss Vianna 2007/2008, vem sendo desenvolvido desde agosto de 2007 e tem estréia prevista para final de abril ou início de maio deste ano. Ricardo aposta na seguinte hipótese: “se eu consigo descobrir uma cena que construa a nudez, eu crio com as pessoas uma relação de cumplicidade e responsabilidade”. Participam da criação artistas de diversas áreas, que se reunem para assistir ensaios, estudar referências, discutir e sugerir caminhos. Esses encontros parecem ser fundamentais para que seu propositor tenha um retorno daquilo que o seu corpo investiga, ou seja, um fluxo de descontinuidades, intenso e sem respiros. Uma verdadeira verborragia física/mental. Como o projeto está em andamento, muita coisa ainda deve mudar. Vamos aguardar o que o autor de Eu tenho autorização da polícia para ficar pelado aqui (2004), Pelo a menos no país das maravilhas (2004) e Na dúvida é tudo mentira (2006) está preparando desta vez.

Os couves têm muitos planos e desejos para 2008 mas esbarram na realidade na qual atuam. A vontade de fortalecer a cena local, promovendo mais encontros e trazendo pessoas de fora é grande, mas os recursos necessários são escassos. Os desafios passam também pela manutenção do Cafofo, realização de projetos e colaborações artísticas, participação na esfera política e cultural, obtenção de patrocínios, parcerias e assim por diante. Gustavo é o porta-voz de uma ladainha mais geral, sabida por todos (mas esquecida por quem está com o poder nas mãos): “artistas precisam ter acesso a boas formações em suas áreas, precisam de programas continuados de pesquisa em arte, precisam de grana para a sobrevivência entre um projeto e outro. No nosso caso, mas sei que não é só a gente, precisamos de editais que favoreçam projetos híbridos (artes integradas) e de editais de manutenção de espaço, porque a gente tá penando pra manter um que é importante pra gente e pra cidade”.

Elisabete, que concluiu em 2006 a formação Essais na Escola Superior de Dança do Centre National de Danse Contemporaine d’Angers (França) e é criadora-intérprete da adorável Trilogia Amarela, reafirma a “importância de que as propostas de subvenção entendam que a nossa produção artística não se resume a produção de espetáculos, ou a aulas para comunidades carentes (as duas principais formas de se conseguir apoio para um projeto atualmente). Temos batalhado para afirmar que um projeto artístico transborda da cena, começa antes, na pesquisa, no estúdio, nos encontros, nas trocas e passa pela cena mas, vai além, continua na recepção das informações dançadas, na reverberação dessas informações e na variação das ações. A gente já faz muita coisa, não precisa inventar um espetáculo pra justificar uma atuação junto à comunidade e para o mundo”.

Maíra Spanghero é escritora e pesquisadora. Doutora em Comunicação e Semiótica, professora da PUC/SP e autora do livro “A dança dos encéfalos acesos” (Itaú Cultural, 2003). É Também curadora do projeto Roda (SP) e editora da Coleção Húmus.