A fonte Marcel Duchamp / Foto divulgação

A performance-art e a ciência moderna

Na tradição ocidental, a noção de arte como campo independente se configura no século XVII a partir do academicismo. As academias foram importantes para a elevação do status profissional dos artistas, afastando-os dos artesãos e aproximando-os dos intelectuais. O academicismo surge atrelado à organização dos estados absolutistas e se configura como o movimento que oficializa a arte nas cortes, dele surgiram o barroco, o neoclassicismo e o romantismo. A partir deste momento a arte será uma prática aceita como subjetiva, mas ao mesmo tempo ligada ao statu quo.

A partir de fins do século XVIII e meados século XIX o academicismo será contestado pelo iluminismo em razão da perda de suas características. O conhecimento científico como o uso racional da crítica por um lado e o método como regra de procedimento, por outro, se instalam no lugar que outrora ocupava o saber religioso e dão origem a uma nova forma de organização do saber. Nesse contexto, Immanuel Kant é o teórico mais saliente: sua obra A Critica da Razão Pura não só serve para organizar o modo como a ciência moderna conduz a pesquisa, mas também como marco teórico para a sociedade industrial emergente. Na obra A Crítica da Faculdade de Julgar, o autor se refere à natureza, função e realização da obra de arte, diferenciando-a das ciências. Primeiramente Kant divide as artes “agradáveis ou mecânicas” das “belas” artes:

As artes agradáveis são, para Kant, as que podem deleitar os convivas à mesa, por exemplo; bela arte é, pelo contrário, “um modo de representação que é por si próprio conforme a fins e, embora sem fim, todavia promove a cultura das faculdades do ânimo à comunicação em sociedade” (passando do subjetivo individual à “universalidade subjetiva o domínio inter-subjetivo). Comunicabilidade essa que “tem por padrão de medida a faculdade de juízo reflexiva e não a sensação sensorial”. Na citada faculdade de juízo reflexiva entram fatores intuitivos, por um lado, e do entendimento, por outro. (Domingos Isabelinho[1])

Assim, para Kant a verdadeira arte se expressa pela beleza, entendida, esta, como a aparência da própria natureza que opera como um misto de intuição e cognição no verdadeiro artista: o gênio. Por tanto, a capacidade criativa do artista é inata e independe do aprendizado de regras. A diferença entre ciência e arte é o fato de que a primeira é plausível de “ser ensinada e aprendida por meio das regras que determinam os procedimentos” enquanto na segunda é o mistério do sublime que se materializa a si mesmo na subjetividade do gênio. A percepção kantiana da obra de arte como produto do sublime, do irrepresentável que se imprime a sim mesmo, servirá como base para sustentar a interpretação de arte como ficção da realidade. As colocações de Kant tendem a traçar ao longo da história uma crescente subjetivação da arte distante da objetividade das práticas da ciência, cindindo o aspecto cognitivo da última do aspecto emocional da primeira.

No primeiro quarto do século XX, Marcel Duchamp insere no circuito das artes visuais seus ready-mades, questionando o limite entre realidade e ficção e entre objeto do cotidiano e obra de arte. Com ele começa o caminho para a libertação total da arte das suas formas de representação, do questionamento do “o que é arte?” e a tese do fim da arte escrita em 1984 por Arthur C. Danto.

A partir de 1960 sucederam a Duchamp movimentos estéticos que promoveram um espírito de contestação dos valores estabelecidos e um interesse pela reflexão sobre a função social da arte e pela participação política. Alguns desses movimentos  usaram o corpo como espaço de acontecimento da obra e, apesar das diferenças entre eles, o interesse geral se centrava em reconciliar a vida à arte e em questionar a natureza da obra de arte. Neste sentido o corpo se tornou uma “tela” de experiências. “Os movimentos “’Aktionismus’, o ‘Body Art’ e o ‘Happening’ atuaram como mola, sob o amparo da Arte Conceitual, para a aparição da Performance Art”. (ALMELA GARCIA[2])

A Performance Art nasce direta ou indiretamente influenciada pelas manobras duchampianas com os ready-mades, e os performers das artes visuais trabalham em conjunto com dançarinos, coreógrafos, atores e músicos. Um dos fatores determinantes para o surgimento do gênero é essa transdisciplinaridade.

O corpo efervescente e grotesco é considerado literalmente aberto ao mundo, se misturando facilmente com os animais, os objetos e os outros corpos. Seus limites são permeáveis; suas partes são surpreendentemente autônomas; é, em toda parte, aberto ao mundo. Entrega-se livremente a excessos na comida, na bebida, na atividade sexual e em toda espécie imaginável de comportamento licencioso. E é precisamente por meio da imagem desse corpo grotesco do desgoverno que a cultura não-oficial tem aberto buracos no decoro e na hegemonia da cultura oficial. (BANES, 1999, p.254).

Se a arte moderna ocupa-se de centrar a atenção na conscientização da complexidade perceptiva da realidade, a arte contemporânea ou pós moderna encarna as questões no próprio corpo; assim, o Grupo Fluxus inicia uma nova fase na história da arte:

“o interesse passou à experiência perceptiva do próprio corpo que conformaria a atitude do Body Art. Com o Body Art se propulsou uma forma de arte na qual o meio é o próprio corpo do artista e já não os meios tradicionais. Ainda, na atuação do Body Art os significados e razões não são discutidos; o meio mesmo é mensagem. Tocando às vezes no masoquista, no espiritual, o Body Art atua em público ou em privado, sendo mais tarde assistido em documentação fotográfica ou fílmica. (ALMELA GARCIA[3])

Segundo Ramon Almela Garcia poder-se-ia dizer que o Behavior Art, o Body Art e o Happening estimulados pela a Arte Conceitual tomam a forma de Performance Art.

Durante os anos 90, a Performance deriva para assuntos de importância filosófica, tais como política cultural, corpo, gênero sexual e se converte em sinônimo de vanguarda das artes da dança, do drama e da música. […]. Além da fusão dos gêneros e a desaparição das fronteiras entre os estilos, a História da Arte se abriu para incluir áreas desatendidas como a arte de outras culturas, o artesanato, o desenho e a arte popular. O desafio do artista no final do século XX tem sido impregnar de conceitos, ideias e crítica ao material ou à forma. (ALMELA GARCIA[4])

Vale mencionar, mais à frente retomarei este assunto, que a maior parte dos artistas da Performance Art recebeu educação acadêmica em filosofia e artes em diferentes universidades da Europa e dos Estados Unidos. Artistas como George Maciunas (fundador do Grupo Fluxus), John Cage, Joseph Beuys e Allan Kaprow são exemplo disso.

A partir deste brevíssimo recorte da obra kantiana e da arte pós-moderna encarnada na Performance Art pretendo refletir como o legado teórico de Kant sobre estética se dissolve na prática artística dos séculos XX e XXI e direciona até hoje o curso da arte contemporânea.

Acredito que a crescente intelectualização da produção artística é produto duma necessidade de legitimar um conhecimento estético pela via do discurso científico, o qual possui o poder de legitimação da noção de conhecimento dentro das regras do mercado. Mesmo que Duchamp e seus sucessores tenham questionado o valor do sagrado e o lugar da arte na sociedade, a arte contemporânea ainda se debate entre os antagonismos do “sentir” e do “pensar”.

Em minha opinião, a arte das décadas de 1960 e 1970, por um lado rompeu com o legado kantiano no que diz respeito à relação sublime entre artista/obra, e obra/vida cotidiana. No entanto, e paradoxalmente, a partir da modernidade a arte iniciou uma aproximação firme e vagarosa ao paradigma kantiano de ciência juntamente com os questionamentos sobre sua própria natureza. Quer dizer, a arte do século XX, no intuito de se constituir como uma prática independente que se pensa a si mesma, foi criando um vínculo com as instituições universitárias ao ponto de ganhar cursos de formação dentro delas; esse fato possui um verso e seu reverso, pois se por um lado a arte ganha conhecimento dos discursos teóricos e metodológicos (mais próximos da ciência moderna descrita por Kant do que a ciência pós-moderna de Einstein) e uma ampliação da faculdade reflexiva sobre a própria prática, percebo também uma tendência em direção a uma intelectualização imóvel, por vezes conservadora, em detrimento das práticas artísticas inspiradas pelo cotidiano do mundo fora da academia. Pois o interesse das ciências tem sido se fechar e especializar em áreas diferenciadas para aprofundar um tipo de linguagem e assim aumentar a velocidade da produção de conhecimento, processo este do qual a sociedade não participa. Temo que este aspecto do fazer científico esteja se infiltrando no fazer artístico sem os artistas sequer perceberem. Assim mesmo, as ferramentas utilizadas pela pesquisa, como o distanciamento do objeto de estudo, as justificações da obra por meio de referências teóricas que sustentam a prática e a necessidade duma escrita dentro dos padrões metodológicos utilizados pelas publicações científicas; dada essa conjuntura surge um paradoxo que parece não ter solução, pois se bem a arte ampliou seu campo de atuação, ela ainda se debate por entender seu lugar de pertença no binômio sociedade/academia do qual agora faz parte, e também pela necessidade de estruturas mais flexíveis, sensíveis e humanas que permitam a aceitação dos sentimentos como outro viés do pensamento.

O pensamento da hermenêutica alemã apresentado por Hans Georg Gadamer traz uma nova luz sobre o assunto da estética contemporânea. Para Gadamer, estética e ética são inseparáveis; uma e outra se originam quando ocorre a comunicação entre entidades da mesma ou diferente natureza. No discurso gadameriano, a estética é aquilo, que sem interesses diretos, media uma relação e que inevitavelmente altera o estado de alguma coisa ou pessoa. Ele toma o conceito de festa e de jogo para re-pensar a função social da arte como forma de organização das relações dentro dum paradigma do qual todas as práticas formam parte duma determinada organização estética, que por sua vez são dinâmicas, pois se transformam com o tempo e as ações dos seres envolvidos nesse espaço. O jogo permeia toda relação estética, ele tem suas regras e elas são atualizadas ao passo que as relações entre os participantes assim o requeiram.

Acredito que esta nova fase da produção de arte dentro das universidades pode se enriquecer a partir dum alargamento da noção da estética gadameriana, que funciona como ponte destinada a promover o diálogo entre seres e objetos de diferentes naturezas. Assim, o conhecimento entendido sob esse prisma pode facilitar uma aproximação equilibrada entre ciência e arte. A história da arte contemporânea precisa dum corpo teórico no qual, ambas dessas práticas possam se servir uma da outra em diálogo fecundo para atender o prazer de sentir e pensar como necessidades criativas equivalentes, embora, de naturezas diferentes.

A foto é da obra A fonte, de Marcel Duchamp.

Bibliografia

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HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura. Perspectiva. São Paulo; 2007.

KANT, Immanuel. A Crítica da Faculdade de Julgar. EBooks@Adelaide,
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PEIXOTO S., José Mário. Breve Histórico da “Performance Art”

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RIBAS, Simone Augusta. Metodologia Cientifica Aplicada.Rio de Janeiro:EdUERJ Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro;2004.
RUSCH, Michael. Novas Mídias na arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes;2006.


[1] Bedeteca de Lisboa: http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=441

[2] Líneas Precursoras del “PERFORMANCE ART” Revista eletrônica Criticarte)

[3] Líneas Precursoras del “PERFORMANCE ART” Revista eletrônica Criticarte)

[4] Líneas Precursoras del “PERFORMANCE ART” Revista eletrônica Criticarte)

Maria Gimena De Mello é intérprete e coreógrafa. Bolsista de projeto do Grupo de Pesquisa em Cinema e Dança da UFRJ.