A política da dança nos anos 90 em Florianópolis

Apresentação:

Este texto é síntese da dissertação desenvolvida no Mestrado em Comunicação e Semiótica (PUC/SP, concluído em 2001) sob a orientação da Profa. Dra. Helena Katz.

POLÍTICA CULTURAL

Para enriquecer o entendimento daquilo que se constitui como o foco de atenção da política que estudamos, a cultura, resgatamos conhecimentos de diversos domínios como a antropologia, a sociologia e a semiótica. Encontrar uma definição adequada do termo, para o qual a política cultural poderia se ajustar, mostrou-se uma tarefa árdua e problemática. Diante da amplitude e vagueza das muitas expressões encontradas, aquilo que se tornou evidente foi o reconhecimento da existência de muitas culturas, o que colabora para a existência de muitas políticas culturais.

Supomos que o modo de entendimento de cultura – tanto pelo governo quanto pelos agentes culturais e a sociedade em geral, constitui-se em um eixo essencial na formulação de uma política cultural. É evidente que no Brasil a cultura ainda é tratada como um apêndice ou algo irrelevante. E ao lado desta consideração, destaca-se também o entendimento de cultura como ocasião de negócios. Do ponto de vista econômico, se argumenta que as atividades culturais vêm gerando renda e empregos direta ou indiretamente, conquistando espaço nas ações do governo e no apoio da iniciativa privada.

Os diversos conceitos de cultura tornam evidentes que qualquer política cultural deve estar pronta para trabalhar com a complexidade e com as diferenças, características implícitas nas várias definições do termo. Sob qualquer ângulo, a cultura deve ser considerada de forma integrada e não redutora. A heterogeneidade é seu ingrediente básico.

Coelho (1997: 293) afirma que a política cultural constitui-se em uma ciência da organização das estruturas culturais; sendo entendida habitualmente como programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários.

As intervenções de uma política cultural podem assumir duas formas: normas jurídicas e ações culturais (Coelho, 1997: 293). As ações culturais visam pôr em prática os objetivos de uma determinada política cultural e podem ser:

– de produção: tem por objetivo concretizar medidas que permitam a geração efetiva de obras de cultura;
– de distribuição: criar as condições para que as obras entrem num sistema de circulação que lhes possibilite o acesso a pontos públicos de exibição;
– voltada para a troca: visa promover o acesso físico a uma obra de cultura por parte do público, de modo particular mediante o financiamento, no todo ou em parte, do preço da obra ou do ingresso que a ela dá acesso;
– voltada para o uso: procura promover o pleno desfrute de uma determinada obra, o que envolve o entendimento de seus aspectos formais, de conteúdo, sociais e outros. (Coelho, 1997: 32-33).

Estas fases da ação cultural formam o sistema de produção cultural, e cada uma destas etapas pede uma política específica. Um sistema de produção cultural só funciona de maneira efetiva quando cada uma de suas etapas, bem como seus elementos, estabelecem um certo tipo de comunicação.

Assim, elegemos como configuração da cultura a teia de significados. E para o seu estudo, a busca de um entendimento dos relacionamentos que aí se estabelecem. O compromisso básico de toda política cultural seria o de dinamizar diferentes tipos de comunicação. Seu empenho seria no sentido de buscar propostas e instrumentos capazes de preservar a unidade no respeito à diversidade dentro do próprio domínio cultural. Isto é, cada área de produção da cultura […] tem potenciais, limites, recursos e meios que lhe são próprios, assim como leis peculiares de refração ideológica, mas que só se definem no confronto, conflito e complementaridade com outras áreas (Santaella, 1996:157-158).

Buscando entender a teia de relacionamentos presente no mundo da dança na cidade de Florianópolis, procuramos conhecer seus agentes constituintes, suas ações e vínculos estabelecidos, uma vez que todo sistema de produção cultural é regido por um complexo de relações formais e informais (entre instituições culturais, criadores, organizações de ensino, normas jurídicas, etc.), maneira pela qual a cultura se organiza (Coelho, 1997: 293). Esta organização da cultura define a política cultural e, da mesma maneira, a política da dança.

A DANÇA COMO MERCADO

A partir dos anos 80, com a criação e o uso das leis de incentivo à cultura, verificamos uma mudança significativa do mercado cultural no Brasil. O governo beneficia a produção com incentivos fiscais, e as empresas investem numa forma de marketing, ampliando a produção e o consumo da arte. A partir daí, a política cultural brasileira, passa a se apoiar, em grande escala, no tripé: leis – empresas – artistas.

No mercado da dança, as leis abriram espaço para a profissionalização, propondo um reposicionamento dos criadores individuais e companhias. Embora o segmento da dança venha crescendo em captação de recursos financeiros, as oportunidades são escassas e restritas a poucos. Na ausência de estímulos (como bolsas de pesquisa para criação, editais de auxílio montagem e circulação, prêmios) e apoio financeiro à criação artística (seja do setor público ou privado), os profissionais e grupos de Florianópolis vislumbram a solução para seus problemas de sobrevivência nas leis que geram benefícios fiscais ao patrocínio à cultura. Neste sentido, o governo estadual (SC) e municipal (Florianópolis) regulamentaram suas leis no ano de 2000, acreditando que, desta maneira, estariam resolvendo questões relacionadas à falta de recursos e condições adequadas ao desenvolvimento da dança. Ao agir assim, o governo transferiu ao mercado a responsabilidade de decidir o que merece ou não ser apoiado, iniciativa que se mostrou insuficiente diante das necessidades apresentadas pela área.

O desconhecimento deste mercado por parte de seus governantes, que aí atuam à revelia, é explícito. Um dos objetivos desta pesquisa é o de salientar as exigências que lhe são próprias mas ignoradas pelos responsáveis pelo estabelecimento de uma política cultural. Sendo assim, para abordar diferentes aspectos sobre a dança em Florianópolis é necessário conhecer seus grupos de dança e as condições de produção e circulação artística, o papel das organizações de classe, das entidades privadas e das instituições de ensino.

O apoio público e privado à cultura

O Estado exerce um papel fundamental nas atividades artístico-culturais do país, já que é um de seus deveres promover a cultura, seja financiando ou ampliando as ocasiões para a produção e o consumo da arte.

A exemplo de outros governos, o brasileiro começa a reconhecer a cultura como um fator poderoso na evolução econômica e social do país. Mas apesar disso, o valor destinado à área é menor que 1% do orçamento nacional, demonstrando que a cultura não é considerada como base de desenvolvimento desta nação.

A política cultural do país está assentada nas leis de incentivo fiscais. As muitas críticas sobre estas leis apontam que este tipo de parceria proposto pelo governo deve ser repensado. Ao lado das muitas restrições, existe o reconhecimento de que as leis de incentivo estimulam o investimento à cultura.

Os órgãos governamentais responsáveis pela elaboração e execução de políticas públicas culturais que se relacionam com a dança em Florianópolis são: Fundação Nacional de Arte – Funarte, Fundação Catarinense de Cultura – FCC e Fundação Franklin Cascaes – FFC. Após entrevistar seus dirigentes salientamos estas questões:

– O excesso de burocracia que acompanha o serviço público.
– A carência de profissionais atuantes e qualificados.
– A ausência de planejamento e a implantação de políticas de eventos.
– O desconhecimento das características das muitas áreas culturais e dos diversos públicos.

No Brasil, muitas empresas impulsionadas pelas leis de incentivo, optam pelo patrocínio das artes, utilizando o marketing cultural como uma ferramenta valiosa de comunicação com o público. Alguns aspectos dificultam a consolidação de um mercado de patrocínio no Brasil. São dificuldades que sugerem ações a serem implementadas pelo governo em seus diversos níveis, como a promoção ou ampliação das campanhas de divulgação das legislações fiscais e o desenvolvimento de ações para conscientizar a iniciativa privada quanto ao potencial do marketing cultural. Cuidados como a profissionalização de artistas e produtores culturais e a apresentação de projetos tecnicamente adequados ao perfil da empresa também devem ser levados em consideração.

Rio de Janeiro, uma referência

Ao se pensar em políticas públicas para a dança no Brasil, a cidade do Rio de Janeiro surge como um exemplo a ser considerado. A dança desta cidade revitalizou-se a partir da atuação da ex Secretária Municipal de Cultura Helena Severo (1992 a 1999).

Alguns dos projetos destinados à dança desenvolvidos e/ou apoiados nos últimos anos pela Prefeitura são: Apoio às companhias de dança do Rio de Janeiro, Programa de Bolsas RioArte, Projeto Memória da Dança, Circuito Carioca de Dança, Panorama RioArte de Dança e Mostra de Novos Coreógrafos.

A competência administrativa de Helena Severo tem fundamento em pontos indispensáveis. O primeiro diz respeito à atitude de estabelecer e manter um diálogo constante com a classe da dança, organizada através do Comitê Carioca de Dança. Assim, não instituiu uma política à revelia, mas voltada aos anseios da categoria. Afora sua vontade de firmar uma política exclusiva à dança (que falta em muitos dirigentes, dado que o cuidado com a dança vem freqüentemente a reboque do teatro), as ações de Helena tiveram como premissa a escuta das necessidades do público-alvo de sua política, e por aí se desenvolveram, quer dizer, a troca com o Comitê foi ininterrupta.

Aliada ao Comitê, Helena conseguiu perceber as exigências próprias ao desenvolvimento da dança, quer dizer, compreendeu que a dança firma-se através de relações entre a sua produção, circulação e uso do conhecimento (artístico/intelectual). Habitualmente, as políticas públicas mobilizam esforços em apenas uma destas esferas de ação, negligenciando os demais domínios deste processo, que pede por ações que são singulares e interligadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dança organiza-se por meio de relações de produção, circulação e uso do conhecimento, se manifesta e expande graças a uma habilidade de estabelecer conexões entre seus elementos. Estes encadeamentos entre canais formam redes de cooperação e o resultado deste complexo interativo é a dança.

A política da dança em Florianópolis carece de um atributo fundamental da dança: a conectividade, ou seja, a capacidade de estabelecer comunicação, demonstrada pela inabilidade de seus componentes compartilharem objetivos e interesses. O tipo de interação que aí ocorre não vem permitindo que a dança cresça em qualidade e visibilidade. A cidade necessita do entendimento de que a dança se desenvolve graças a um aumento (quantitativo e qualitativo) de público, de espaços, de alunos, de críticos, ou seja, de um conjunto de ações e não apenas de algumas iniciativas segregadas. O pouco comprometimento e as atitudes de enclausuramento em nada colaboram na ampliação das ocasiões de produção e consumo da dança.

Deve existir maior cuidado ao se tratar e desenvolver uma política pública para a dança. O discurso vulgar e genérico que afirma uma política de incentivo, de fomento, de estímulo à criação e difusão, deve dar lugar a objetivos e ações exclusivas visto que não há somente uma dança, um grupo, um público, uma arte. Sendo assim, como pode haver apenas uma proposta, um formato único? Há de se considerar a singularidade de cada realidade e instituir não apenas uma política, mas inúmeras. Tal processo precisa considerar o contexto, composto de diversidade e desigualdade, e formular mecanismos e estratégias que favoreçam a interação e o diálogo entre os muitos aspectos envolvidos.

Como os grupos, artistas e profissionais da área são obrigados a viver as conseqüências da política implantada, devem procurar vias de participação e cobrar do poder público uma administração voltada aos interesses da classe. A gestão da dança não deve ser considerada uma atribuição exclusiva do governo. Numa configuração em rede, a responsabilidade recai sobre todos. Cooperação é moeda de sobrevivência.

Perceber o mundo como uma rede e deixar de lado a atitude de isolamento é organizar a dança como ela mesma se apresenta: através de uma diversidade de elementos que estabelecem relações formais e informais. Basta pensar na combinação corpos-figurinos-cenários, no arranjo das partes do corpo que fazem uma coreografia, nas parcerias entre instituições culturais, criadores, organizações de ensino, normas jurídicas, etc. A dança não vive fora de um contexto de relações.

A atribuição de maior importância à dança em Florianópolis, bem como no Brasil, não deve recair sobre o aspecto econômico mas, sendo uma manifestação artística de caráter comunicativo, deve ser considerada como um instrumento capaz de educar, sensibilizar e favorecer vínculos: do homem consigo, do homem com o outro, do homem com o mundo. Um movimento que procura dissolver a fragmentação e a alienação dos indivíduos. Por outro lado, quando a cultura deixar de ser vista como acessório passando a ser entendida, de fato, como indispensável ao desenvolvimento social e econômico do país, deverá contar com um volume maior de recursos financeiros e possibilidades.

Jussara Janning Xavier*: Bailarina, pesquisadora e gestora Cultural. Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Especialista em Dança Cênica (UDESC). Atua na gestão de projetos no Instituto Escola do Teatro Bolshoi no Brasil (Joinville).

Bibliografia Básica

ALMEIDA, Candido José Mendes de; DA-RIN, Silvio (Org.) (1992). Marketing cultural ao vivo: depoimentos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
COELHO, Teixeira (2000). Guerras culturais. São Paulo: Iluminuras.
_____ (1997). Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras.
_____ (1986). Usos da cultura – políticas de ação cultural. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
_____ (1989). O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense.
Diagnósticos dos Investimentos em Cultura no Brasil (1998). Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte: 3 v.
FEIJÓ, Martin Cezar (1992). O que é política cultural. 5a ed. São Paulo: Brasiliense.
FRANCESCHI, Antonio et al. (1998). Marketing cultural: um investimento com qualidade. São Paulo: Informações Culturais.
MOISÉS, José ÿlvaro; BOTELHO, Isaura (Org.) (1997). Modelos de financiamento da cultura (os casos do Brasil, França, Inglaterra, Estados Unidos e Portugal). Rio de Janeiro: Funarte.
MORIN, Edgar (2000). A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (trad. Eloá Jacobina). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
_____ (1998). Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasé.
_____ (1990). Introdução ao pensamento complexo. 2a ed. Lisboa: Instituto Piaget.
MORIN, Edgar; NAIR, Sami (1997). Uma política de civilização. Tradução Armando Pereira da Silva. Lisboa: Instituto Piaget.
PENA-VEGA, Alfredo; NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (Org.) (1999). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. 2a ed. Rio de Janeiro: Garamond.
SANTAELLA, Lúcia (1996). Cultura das Mídias. São Paulo: Experimento.

The politics of dance in the nineties in Florianópolis is a case study with the purpose of understanding the dance market in Florianópolis, pointing to actions and the relationships established among its constituent elements and discussing its opportunities and limitations. The objective of this research is to produce a proposal of a transforming action in cultural politics.

We made observations on the dance groups of Florianópolis, granting prominence to Cena 11 for its successful trajectory and differentiation from the others, as a propeller of the professionalisation of the dance field. We researched the Governmental Cultural Foundations (federal, state and municipal), their proposals and practices, paying special attention to the Laws of Incentive to Culture, since they are taken by these three governmental levels as a fundamental mechanism for financing culture and are considered the pillars of the politics implemented. We collected data on pressure groups to verify the politicisation level and collective mobilisation of the dance category. Bearing in mind that the main difficulty of the artistic field continues to be the lack of support, we discuss the position of companies in relation to sponsorship to culture/dance and questions related to cultural marketing. We also made observations on how dance was dealt with in schools, academies and universities in Florianópolis, and finally we have investigated books, periodicals and academic research produced there.

Dance is organised through relationships (formal and informal) among the several agents of the field. It is this network of relations that is the basis of its own politics. To evaluate the data systematically, that is, to understand the articulation among the investigated factors, we used the complexity paradigm of the French philosopher Edgar Morin.

The city of Rio de Janeiro appears in this thesis as a reference point for the politics of dance in Brazil, since the actions developed in recent years by the Secretary of Culture of Rio is steadily strengthening and professionalising the dance field.

The dance market scene in Florianópolis can be taken as a model of a situational diagnosis of the politics of dance in the nineties practised in Brazil, in which Rio de Janeiro comes as an exception.