A subversão do balé

“O que precisa ser observado no Marxismo, é o seu interesse no Outro, sua natureza subversiva“

Octávio Paz

Este artigo tratará da relação entre estrutura de aula e herança do balé clássico na proposta de consciência corporal de Klauss Vianna. Os temas apresentados refletem muitas vezes os elementos envolvidos nos conflitos latentes que carregam a experiência de Klauss e sua dialética aula – vida. Os elementos elencados perfazem uma trajetória da evolução das modificações implementadas por Klauss para o contexto de aula técnicas e os primeiros experimentos improvisacionais. Esse resumo foi compilado do 4 capítulo da tese de mestrado de Lela Queiroz “ Cartilha desarrumada: trânsitos e circuitações em Klauss Vianna“ defendida em 2001 no Programa de Comunicação e Semiótica, PUCSP

4.1. Anatomia acadêmica

Na dança do início do séc 20, a negação das leis do “bailado acadêmico“ (balé), foi emblematizada pelo movimento de Isadora Duncan (1) constituindo a antítese de tudo aquilo que se encontrava proposto e estabelecido antes.

Ambos, a técnica e o bailado acadêmico, são apresentados como portadores de um redutor comum: a aula de balé. O jeito como se preparava o corpo servia para criar o jeito como se dançava no palco. As técnicas de barra e centro tinham a finalidade de aprimorar a dança do balé, no palco, conforme as regras estéticas (2) do “bailado acadêmico”. O apreço por esta bagagem levara Klauss a defender que “qualquer reforma no bailado necessita partir do próprio bailado, levando-se em consideração seu desenvolvimento até então” (As citações são do livro de 1990, de Klauss Vianna). Para Isadora Duncan, recorrer à técnica do balé significava recuar e retroceder. Klauss critica o fato de o ‘movimento Duncan’ ter buscado eliminar ou ignorar o balé em seu aspecto técnico. De um lado, a tese de proporções métricas harmônicas para o movimento do balé, do outro, o ‘movimento Duncan’, como antítese, na busca de uma fluência liberada(3). Seria então possível salvar o instrumental da técnica, libertando-os da estética de palco do balé ? O movimento da história nos levaria à sua síntese? O bailado acadêmico, regido por leis de proporções métricas e harmônicas, seguramente reforçava uma visão mecanicista do movimento.

Aqui no Brasil, essa reforma do balé se fazia necessária sobretudo por razões culturais: no intertexto da década de 50, seria o equivalente a um início da emancipação da dança brasileira. Klauss se ressentia da situação quase nivelada à de ofícios medievais enfrentada pela classe de profissionais de Dança no Brasil.

Klauss investe em três aspectos centrais: (a) a existência do aparato técnico do balé, (b) a necessidade de empreender uma profunda modificação, (c) a importância de reter os princípios instrumentais para esta empreitada

O professor propunha um trabalho subversivo: ele pretendia virar do avesso o balé clássico a partir do legado da sua própria técnica, lançando mão de suas leis como ferramentas para criar uma nova dança, com a força dos princípios acadêmicos. Foram alvos desse esforço de modificação centrar a investigação nas cinco posições e buscar os componentes mais simples do balé: os elementos imprescindíveis para que o trabalho se centrasse no corpo, partindo para as relações dos ossos e músculos com o espaço, sem narrativa, sem música. Foi descartado o uso de sapatilha, de espelho, de malhas de balé apertadas. Tudo isso identificado por Klauss, como sendo também componentes de valor estético do balé. Algo, porém, não pôde ser detido: entre tais componentes, destacam-se os preceitos geométricos, que configuram o movimento do balé no espaço.

Nas seqüências coreográficas do balé, a presença de trajetórias determinadas, espaço percorrido pelo movimento em sua aparente uniformidade, a apresentação de pausas em poses estruturadas, revelam a força das proporções geométricas – métricas e harmônicas – e conformam o conceito espacial do “bailado acadêmico”. A hierarquia centro/periferia é em parte alicerçada pela verticalidade do eixo vertebral em relação aos membros, com sutis e ligeiras inclinações, cuja principal função é dar suporte para a desenvoltura dos membros inferiores que se elevam pelo espaço, pernas altas que fazem proezas e braços leves que sustentam e endossam circunvoluções com graciosidade.

Os acordos encontravam-se previamente firmados. Acordos firmados por convenções trazidas para o corpo, por acertos de ordem social, moral, dramática ou literária. Klauss buscará radicalmente transformar ‘o corpo e a mentalidade’ das pessoas, não somente em relação a Dança, mas em relação a vida, lançando-se ao conhecimento do corpo, valendo-se da estrutura musculoesquelética como ponto de partida.

4.2. Os experimentos

Teve início, assim, uma lenta revolução para o corpo; potencializada em Klauss Vianna, com o seu operador oposição. O objetivo de Klauss centrava-se em descobrir as estruturas do trabalho muscular. Toda articulação e musculatura de cada plié, passé, changement, jeté,(4) etc. adquiria ênfase. Alternava-se en dehors e en dedans com muita constância. Klauss trouxe à tona parâmetros operacionais para o movimento a um corpo já ávido por navegar em outros mares. Em aula, passava-se a abordar uma única articulação de cada vez, o relaxamento de um grupo muscular, o reconhecimento de um osso, depois de outro osso: experimento após experimento. Lançando mão de um recurso que se assemelhava ao procedimento empírico de tentativa e erro substitutivos, explorava-se a oposição das direções ósseas; transições e deslocamentos geravam uma vivência esquemática do movimento no corpo, parte por parte, segmento por segmento.

A segmentação visava um reconhecimento mais preciso das partes do corpo. Como saber se o que se move é a perna, se perna e bacia se movem juntos? “Isolar” a perna da bacia para localizar o movimento a partir da perna fazia-se urgente, pois o acionamento simultâneo mascararia uma possibilidade maior de organização dos movimentos no corpo. Estava em curso uma dissociação e espécie de vivi-dissecação da estrutura musculoesquelética. Parte do motivo de se trabalhar o corpo dessa determinada maneira visava descontaminá-lo das formas do balé clássico para que no momento em que esse corpo fosse desenvolver formas criativas elas não apresentassem interferência (ruídos) nem do código do balé, nem de sua estética. Os experimentos indicavam que o corpo podia, a partir de sua estrutura, fazer algo diferente e gerar uma nova autoria para a dança no Brasil.

O alerta desta busca passa pelo entendimento que “passos“ carregados de imagens e transmitidos prontamente vinham viciados. Então, como medida preventiva, a ação de ensino aprendizagem fundava-se na descoberta individual, pautando-se tão-somente na estrutura, minimizando associações extras. Era primordial descobrir o estímulo do movimento no corpo, a partir da sua estrutura.

Complementando-se às direções ósseas, nasceu o trabalho articular tão preconizado em Klauss. Seja pela noção de encaixes, seja pela de marionete, abrir os espaços articulares era vital, esse procedimento visava soltar um segmento do outro, para descolar a musculatura mais profunda de “aderências”(5) aos ossos, realizando em parte a dissociação mencionada acima. Vivenciar as descobertas de cada músculo ou articulação da forma como se fazia, separando, dividindo e isolando segmento por segmento tinha a função de soltar desfazendo tensões crônicas e abrir espaços para reestruturar. Qual é, entre outros, o fundamento da dissociação? Separar uma coisa da outra, no sentido de encontrar o caminho do movimento, descartando associações condicionadas e procurar novas associações com maior autonomia, gerando a ampliação de repertório de movimentos. Dentro da idéia de aprender a aprender, a experiência individual é a que interessa. Tal fato estava coerente com os pressupostos de autoconhecimento e individuação defendidos pela auto-educação.

Klauss e seus alunos esmiuçavam a relação centro/periferia exaustivamente a cada grupo articular, muscular e ósseo, em função de eixos, arcos e diagonais. Você pode visualizar isso se, por exemplo, um acionamento (no corpo) partisse de um ponto central na bacia para relacionar-se às extremidades do braço no espaço limítrofe arredondado, isso perfazia um percurso com a ponta do compasso gerando como rastro de si um limiar curvo.

O mesmo pode ser imaginado a partir do calcanhar (novamente o compasso) até o dedinho e o dedão (como limiar curvo). A noção de eixo vertical vai sendo aos poucos abandonada e surgem inúmeros eixos: as relações centro/periferia passam a ser múltiplas. O trabalho passa a ser realizado a partir dos segmentos: deitado, sentado, de lado, em pé, transitando pelos níveis alto, médio, baixo (da nomenclatura labaniana), preenchimento de espaço ampliando-se em todas as direções. Quando as relações convergem para o eixo vertebral, convencionou-se chamar de centralização, quando não, chamou-se distribuição de apoio: referindo-se a diversos pontos do corpo/espaço simultaneamente. A generalização pela qual havia passado o conceito de oposição e direção óssea, (cap 1) servindo para todo e qualquer segmento do corpo, parece que também se deu em relação aos conceitos de eixo, diagonal, arco e centro/periferia. Essas foram as novas ferramentas com que os alunos passaram a fazer seus experimentos.

O autoconhecimento profundo da estrutura, passo a passo e como ela se articula por autoconsciência parece ser uma das chaves de diferenciação deste trabalho de consciência corporal em relação a outras propostas de conscientização do corpo.

Os aportes geométricos euclidianos desde sempre constituíram as regras de organização do balé para o movimento e do corpo no espaço, desde o ponto de ocupação desse corpo, passando pela kinesfera (6), à passagem do espaço individual para o espaço geral (7). Agora, contudo, serão salientadas somente as relações estruturais de espaço linha/curva, explorando os espaços internos entre segmentos tanto quanto configurando o conjunto de segmentos no corpo, descartando-se um único tipo de relação com o espaço a volta. Que tipo de conseqüência traz trabalhar o corpo dessa maneira: (a) pela segmentação a partir da estrutura, (b) pelas relações estruturais de espaço, (c) por observação com distanciamento da emoção, (d) em diálogo com o momento (e) semelhante à tentativa e erro substitutivos?

4.3. O terreno dos experimentos improvisacionais

É no sentido de fazer improvisação, uma das vertentes principais que Klauss sonhou ver realizada, que buscamos traços remanescentes da estrutura do balé sobre a estrutura do corpo. O trabalho que inventariou o balé clássico para desconstruí-lo, recuperou princípios que continuaram desempenhando alguma função importante? Klauss não descartava o rigor do aprimoramento da musculatura para o corpo.

Este procedimento da segmentação e percepção dos espaços articulares compõe os esforços de Klauss no sentido da desestruturação-reestruturação. Nisto incluem-se também as idéias de reversibilidade, corpo-máquina, projeto de domínio, investigados nos outros capítulos dessa tese. E conflita diretamente com a busca da escuta de liberdade e espontaneidade defendidas pelo trabalho, compondo tipicamente um campo de antagonismos.

A existência do hábito de pensar sobre os acionamentos da oposição enquanto acontecem, o tempo todo, que configura o chamado exercício autoconsciente e será tratado no capítulo seguinte, nos apresenta a questão da autoconsciência e nos convida a um rápido mergulho nos estudos recentes sobre cérebro e mente e sua instigante contribuição para a questão da atenção e dos esforços do relato introspectivo no trânsito mente-corpo. Este hábito contrasta com o de não pensar, representado pela busca da espontaneidade na escuta do corpo. Esse antagonismo pode ter contribuído para um forte conflito entre dançar livremente e dançar em uníssono com movimentos conscientes, conforme ditavam os novos parâmetros da investigação. Este ponto depara-se com o pressuposto do exercício da autocrítica e obriga a uma reflexão do papel da autoconsciência.

Considera-se, para os propósitos desta dissertação acadêmica, a possibilidade de o balé clássico fazer-se insidiosamente presente, seja por seus componentes resurgirem nos experimentos, (uma vez que lançava-se mão de vários deles tecnicamente), seja porque as formas espaciais estavam carregadas geometricamente, gerando, no mínimo, eventuais flutuações de aparente semelhança. Além disso, suspeita-se que o arsenal do balé carrega além da hierarquia da verticalidade, um tônus muscular em caráter de sustentação permanente que suscita um molde impeditivo para descoberta de outras variáveis e soluções repertoriais para transições e transferências em deslocamentos. Talvez não exatamente entrasse em cena só a presença do balé, mas sim a herança cartesiana, a mecanicista e seu aporte geometrizador.(1) Dançarina norte-americana pioneira da dança “livre” inspirada na natureza. Revolucionou as bases em que uma dança era apresentada em público no final do séc. 19. Tornou-se um ícone mundial da inovação dos valores artísticos de sua época.

(2) Regras internas de organização do trabalho artístico, ciência que estuda as relações internas da obra de arte. Estética: a doutrina que arte deveria valer por conta própria e não por ter algum propósito ou função que ela possa vir a servir, e mais, contrapondo-se a qualquer teoria instrumentalista da arte. (Companions to Aesthetics, 1996).

(3) Terminologia criada por Rudolf von Laban . Movimentação flui incontida “O elemento esforço do fluxo livre é a fluência liberada e a sensação do movimento é fluido.” (Laban, 1971.: 84) – “Mastery of Mouvement’, Ed. Mc Donald & Evans Lt.

(4) Nomes em francês de posições, transições, trocas e deslocamentos no balé.

(5) Termo utilizado pelos assistentes de Klauss.

(6) Toda área de alcance dos membros desse corpo, perifericamente, sem mudar de lugar. Limites naturais do espaço pessoal. Em o Domínio do Movimento (Laban, 1971: 38).

(7) relações espaciais definidas conforme as relações sociais, nomenclaura labaniana.