A transfiguração do gesto cotidiano no processo de Metrópole.

O corpo na dança se faz um duplo ser

Unidos braço a braço; perna a perna

Torso e ventre e ventre e torso

Unidos corpo e dança, dança e corpo

Casto coito entre o sonho e a realidade.

Ora um ora outro torna-se visível.

João de Jesus Paes Loureiro.

Sábias são as palavras do poeta, que traduz o significado verdadeiramente ambíguo da arte da dança. Realidade ou ilusão? Na verdade essa arte pode ser mesmo é caracterizada segundo os preceitos de Kant, para quem o que existe de fato é um jogo entre razão e imaginação.

A abordagem que aqui se apresenta possui como enfoque o olhar para a recriação da realidade ou da própria abstração na dança, verificando sua especificidade no tratamento concedido ao gesto cotidiano urbano no processo de criação do espetáculo Metrópole, dirigido e coreografado pela autora que aqui se apresenta e encenado em Belém do Pará pela Companhia Moderno de Dança.

Nesta perspectiva, entende-se que, ao contrário das situações cotidianas, o gesto na dança possui um diferencial que o torna verdadeiramente artístico. Esse diferencial é a função estética que ele assume ao ser incorporado na encenação coreográfica.

De acordo com Mukarovsky (1993, p. 120), a função estética “tem a sua origem e o seu fundamento numa das atitudes elementares que o homem adota perante a realidade: a atitude estética”, ou seja, as informações do mundo são captadas e re-organizadas a partir de uma determinada intenção e para um dado fim. Desse modo, o gesto cotidiano, em determinadas situações, também não deixa de possuir apelo estético, ainda que este não seja artístico. Em se tratando da arte da dança, esse apelo é algo que se estabelece não somente pela atitude estética do seu executor, mas principalmente pelo valor estético atribuído à sua execução, que é artística e esteticamente contemplável.

No caso específico do espetáculo Metrópole, o gesto funcionalmente prático passa por uma travessia e mergulha em uma outra qualidade que é artística. Por estar fundamentado na realidade cotidiana dos grandes centros urbanos, nesse espetáculo, o gesto cotidiano comum, sua matéria prima, transfigura-se em gesto cênico, re-significado conforme as concepções artísticas da coreografia.

Neste sentido, cabe utilizar o conceito de conversão semiótica, proposto por Loureiro (2002) e a partir do qual compreendemos o movimento transformador do gesto para a coreografia. O autor explica a conversão semiótica como

o movimento de passagem por meio do qual as funções se reordenam (…). A conversão semiótica significa o quiasmo de mudança de qualidade simbólica numa relação cultural no momento de sua transfiguração. Ela pode ser observada, por exemplo, na criação artística (…). Propomos a denominação de conversão semiótica a essa passagem de mudança de qualidade de signos, que resulta do cruzamento e da inversão das funções situadas no alto e no baixo de um fenômeno cultural determinado, parte do movimento dialético de rearranjamento das funções (p. 124 – 125).

Ao realizar um estudo acerca da cultura amazônica, este autor verificou a presença de categorias que se voltam para uma situação de transformação, a qual denomina de conversão semiótica. Em nosso caso, podemos considerar que o gesto na dança, por apresentar uma transfiguração do prático ao cênico, sofre uma mudança de função para o sentido estético, que se torna dominante como função, razão pela qual consideramos esta passagem uma forma de conversão semiótica.

Esta conversão, entretanto, garante ao gesto uma outra característica além da função artística: a ilusão. Pode-se admitir que o artista da cena caracteriza-se, dentre outras razões, pelo fato de comunicar algo através de uma ilusão. A arte da encenação “é uma recriação, num processo em que o artista se torna um co-criador da realidade. Reinventor do mundo” (LOUREIRO, 2002, p. 61). No caso da dança, o artista (coreógrafo/ bailarino) capta as realidades do mundo, através da sua capacidade de observação, análise e imaginação, bem como a partir de suas referências pessoais, condições culturais e de todas as impregnações que o cercam, tornando-as visualmente contempláveis, graças às combinações dos movimentos corporais.

Na coreografia, o corpo e tudo aquilo que se encontra ligado a ele, é utilizado expressivamente. Na realidade, em se tratando de encenação, o corpo é o intermediário entre ficção e realidade, além de ser a maior referência estética da obra coreográfica, possuindo valor mais pelo que faz do que pelo que representa em cena. Em suma, cabe ao corpo a função estética da obra de arte em dança, pois ele é o material da cena, é o representante do conteúdo e o executor da forma, ou seja, dos movimentos. Ele é continente e conteúdo da dança.

A respeito do gesto corporal, consideramos que, tanto no que é relativo à vida cotidiana quanto no que se refere às artes cênicas, ele é “o elemento intermediário entre interioridade (consciência) e exterioridade (ser físico)” (PAVIS, 1999, p. 184). Ele é tido, então, como a exteriorização de um sentimento que se evidencia no corpo. Trata-se, no entanto, de uma concepção clássica do conceito de gesto, de modo que, em nossa perspectiva, ao assumir diferentes funções em situações diversas, ele passa a possuir também outras concepções.

No que tange à prática cênica é possível evidenciar uma concepção de gesto que difere da simples idéia de expressão de um sentimento. Pavis (1999) argumenta que se trata da função de produção de signos artísticos, ou seja, de elementos que são resultantes dos trabalhos de pesquisa exercidos pelo artista da cena e que desembocam na criação de uma gestualidade ilusória, passando a ser a representação simbólica do sentimento e da cultura.

Sobre esta gestualidade ilusória que emana do corpo que dança, Langer possui uma concepção bastante significativa. Ao assumir o caráter simbólico e abstrato do gesto na dança, essa autora passa a considerá-lo gesto virtual, isto é, como uma realidade produzida, não concreta e, por conseqüência, abstrata. Para essa autora, “gesto é a abstração básica pela qual a ilusão da dança é efetuada e organizada” (LANGER, 1980, p. 183).

Langer explica esta virtualidade do gesto utilizando, como exemplo, a gesticulação de um animal. Diz a autora:

apenas quando o movimento que era um gesto genuíno no esquilo é imaginado, de maneira que possa ser executado isoladamente da mentalidade e situação momentânea do esquilo, é que se torna um elemento artístico, um possível gesto de dança. (LANGER, 1980, p. 183)

Esta concepção significa admitir que o que se vê em cena, em uma obra coreográfica, é uma representação estilizada de algo, um símbolo. Dessa maneira, a virtualidade gestual defendida por Langer (1980) se deve ao conjunto de impulsos, efeitos e sensações causadas pelo aspecto visual da dança, os quais a autora denomina de “poderes virtuais” (p. 184), explicando que se tratam de elementos que parecem estar além de quem os executa.

Por outro lado, há que se levar em consideração um outro aspecto virtual da obra de arte em dança: o sentimento. Assim como o gesto, o sentimento também é criado, e criado através da imaginação. “É o sentimento imaginado que governa a dança, não condições emocionais reais”. (LANGER, 1980, p. 186). O sentimento, produzido pelo psicológico do artista, impulsiona a pesquisa de uma gestualidade que o represente. Particularmente acreditamos que a força do verdadeiro artista reside nesse aspecto. Quanto mais real o sentimento parecer, mais eficiente terá sido o trabalho de pesquisa, bem como o seu resultado formal expressivo.

Neste sentido, pode-se acreditar que na dança há uma contradição: o querer fazer parecer real aquilo que, de fato, não é e se realiza por não ser real. Tanto o gesto quanto o sentimento, em sua subjetividade, procuram sugerir a realidade, além de carregarem um forte caráter de objetividade pelo fato de serem premeditados, isto é, eles são, no mínimo, pensados e planejados, até mesmo quando se trata de improvisações.

A relação sentimento versus gesto é diretamente proporcional. Cotidianamente, o modo como se executa um gesto é capaz de traduzir um sentimento, pois qualquer gesto estará sempre impregnado por um sentimento, sensação ou intenção, assim como todo sentimento se manifesta através de um gesto. O gesto artístico, de forma semelhante, traduz um sentimento, mas que não é do artista e sim do personagem, isto é, não é um sentimento real, mas sim criado, produzido. Sobre esse aspecto, é importante considerar ainda uma profunda e complexa associação entre elementos reais e virtuais.

Os movimentos, evidentemente, são reais; brotam de uma intenção, e, nesse sentido, são gestos reais; mas não são os gestos que parecem ser, porque parecem brotar do sentimento, como de fato não o fazem. Os gestos reais do dançarino são usados para criar uma semelhança de auto-expressão e são, destarte, transformados em movimento espontâneo virtual. A emoção em que tal gesto começa é virtual, um elemento da dança, que transforma todo o movimento em um gesto de dança. (LANGER, 1980, p. 189)

Desta maneira, a dança deve ser considerada a expressão simbólica do sentimento de uma realidade, sendo produzida a partir da associação entre gestos de caráter também simbólico, isto é, funcionando como abstração de algo, ou gestos cotidianos de utilidade prática à rotina do homem.

Em Metrópole, a expressão simbólica que se evidencia diz respeito à realidade cotidiana do homem que vive nos grandes centros urbanos. Assim, no que tange à representação dos sentimentos desse homem, temos como eixo motor os sentimentos que se estabelecem a partir das relações humanas manifestadas na vida real de uma grande cidade. Os sentimentos que circundam a realidade cotidiana do homem urbano e, por conseguinte, sua gestualidade cotidiana, são os grandes indutores para a concepção do espetáculo. Nessa perspectiva, ódio, amor, cobiça, desprezo, inveja, possessividade, angústia, dentre tantos outros sentimentos, constituem as fontes de estímulo para a criação do gesto expressivo na dança de Metrópole.

No espetáculo analisado, o real informa através do virtual. O virtual concebido em Metrópole pode ser evidenciado em diversas cenas. Em uma delas, intitulada Triângulo, três bailarinos, dois rapazes e uma moça, trazem ao palco a representação de uma relação a três. Há um misto de sensações causadas no espectador que é fruto de um misto de sentimentos representados. Desejo, aversão, violência, posse ou ódio brotam da observação da realidade associada à imaginação dos artistas e se convertem em gestos dançados.

Através dos gestos criados e/ ou recriados há uma representação que diz muito dos conflitos amorosos marcados pela disputa, pela possessão e pela competitividade que é inerente às grandes metrópoles, onde valores como o respeito e a complacência para com o outro já não se encontram em primeira instância.

Outra cena que, como a anteriormente explicada, traz muito dos sentimentos que tomam o homem nas urbes, desvelando os outros “eus” de cada indivíduo, é a cena intitulada Burguesia. Nesse momento, os bailarinos, representando os burgueses que compõem parte da população das metrópoles mundiais, adquirem uma postura austera, um ar de soberba e superioridade que se pretende sério e respeitoso, porém peca pela falta de escrúpulos e de honestidade, características que emanam da sempre referente competitividade e briga pelo poder.

Todas estas atitudes cênicas, contudo, são como o próprio nome diz, cênicas, isto é, pertencem à cena e, como tal, apenas simbolizam a vida real. O palco do teatro transfigura-se em rua, casa, quarto, bar ou qualquer outra localidade pertencente à uma metrópole. O bailarino transfigura-se em personagem que sente, assim como o ser humano da vida real. Há, portanto, toda uma virtualidade que, enquanto característica da dança, deriva da pesquisa gestual que incorpora um sentimento real ou imaginado, convertido semioticamente em valor estético e artístico para a encenação daquilo que fora pesquisado.

BIBLIOGRAFIA

LANGER, Susanne. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva (Coleção Estudos), 1980.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Elementos de estética. 3ª ed. Belém, EDUFPA, 2002.

MUKAROVSKY, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Ed. Estampa, 1993.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira (direção). São Paulo: Perspectiva, 1999.

* Professora de dança e coreógrafa concluinte do curso de mestrado em artes cênicas da Universidade Federal da Bahia. Atua na área de dança-educação, em Belém do Pará e é fundadora e diretora artística da Companhia Moderno de Dança.