A violência do endereçar

Este texto foi originalmente escrito para o Festival ImPulsTanz 2006.

Durante o Festival ImPulsTanz 2005, Peter Stamer convidou coreógrafos, performers e diretores para conversar em um ambiente particular. Sendo residente-em-residência (sic) do festival, suas conversas aconteceram em um flat alugado temporariamente pelo ImPulsTanz. Um por um, ele encontrou Meg Stuart, Benoit Lachambre, Ismael Ivo, Jan Ritsema e Paz Rojo, conversou e cozinhou para eles em diferentes tardes, para fazê-los se sentir em casa.

***

Eu preciso de outro tipo de coreografia. Outro espaço. Este não é o meu apartamento. Pertence a outra pessoa. Me mudei por quatro semanas para encontrar e conversar com convidados que eu quis convidar. Eu não estou em casa aqui, e ainda tento descobrir como me sentir em casa. Ok, eu estou aqui. A primeira coisa a fazer é mudar. Mudar os móveis em volta. Não estão nos seus lugares certos. Tenho que mudar de um lugar pro outro. E então eu tenho que estocá-los num quarto pequeno perto da cozinha que não vou usar nas próximas semanas. Este quarto se torna o arquivo dos móveis que eu não preciso, que eu não quero. É o museu, o espaço negativo, o depósito deste apartamento. É o quarto secreto dos móveis, objetos, arquivo de um espaço usado. Rearrumando os cômodos, tive que mover duas caixas de livros empacotados como sardinhas. Empurrei elas pro canto menos atrativo do quarto. Jogar fora este sofá.

Os cômodos são como um corpo. Com minhas mãos, meu corpo, eu os acaricio, tocando cada detalhe, pegando os livros em minhas mãos e colocando-os de volta. Encontrei alguns livros que eu sempre quis ler. Eles me querem e querem ser meus amigos. Estou explorando este corpo, suas costas, sua espinha. O banheiro é quente, úmido, um buraco escuro sem nenhuma janela. Pode-se tirar a roupa. A sala de estar para trocar pensamentos, a cabeça do corpo, comunicativa, espírito, rindo, seduzindo, com a cabeça curvando para trás. Fumando cigarros. A cozinha é o coração e as tripas. O estômago do corpo. A máquina pulsante que mantém o corpo vivo, esperando ainda um ponto e continua a pulsar. Comida, comendo para ser digerida. E o quarto é seu colo, meus membros, minha periferia com que eu toco, eu sinto. Limpar o banheiro é como lavar os genitais de alguém, é uma obrigação, mas não tão prazerosa, excitante.

Quando estou num quarto de hotel, eu também tenho que mover os móveis um pouco. Nada especial, nada particular. É suficiente quando eu pego a cadeira (se tiver uma) e empurro um pouco para a mesa, ou então coloco algumas roupas em cima. Eu não preciso colocar minhas roupas no armário. Eu posso deixá-las na minha mala. Não preciso deste tipo de regressos ao lar, como desembrulhar, desvelar, organizar como se estivesse em casa. Ainda, tenho que deixar vestígios no lugar, vestígios de gestos que conquistam esse espaço, que fazem ele se tornar meu mesmo. Indo para o meu apartamento, sou obrigado a limpá-lo. Eu não sou um limpador fanático, e embora meu lar seja arrumado, tenho que varrer, passar o aspirador para vir a ser lar, para conseguir conhecê-lo outra vez. Uma volta ao lar em tatilidade, um toque. Meus gestos, meu corpo volta para casa melhor quando trabalha seu lar fora. As minhas mãos viajam, seguram uma prótese, uma extensão do meu corpo, uma vassoura, para explorar o apartamento com quem eu compartilho minha vida. Compartilhar um plano com um plano.

Estou ouvindo um CD que encontrei no apartamento. O disco parado no cd-player, à mão para mim, parecendo que foi deixado pelo ocupante anterior para ser entregue a mim. É a última música que vai em alta rotação neste player desde então: ‘Her Space Holiday’: Slow Down Smile. Um homem canta: “ eu perdi meu único amigo, problema”. O violão chora em dois acordes, três vezes o refrão. Gestos de saudade, que pertencem a alguém que eu não posso ver, que está ausente. Um vestígio, uma trilha sonora, um presente musical que foi deixado por alguém que está ausente. O desejo de sentir-se em casa com a ajuda de meios de comunicação, representações que desencadeiam uma memória de lar que está aurático: perto e distante ao mesmo tempo, passado e presente. O sentimento “caseiro” retorna como memória, como sentimento de perda. Um tipo de lar esquisito vindo.

Às vezes eu acho que os proprietários do flat me deixaram alguma coisa que eu tenho de encontrar. Um jogo de criminologista. Vestígios a serem encontrados, encontrar ovos no jardim, um coelhinho da Páscoa. Entro no lugar e encontro coisas estranhas. Na prateleira da cozinha, há vinagre mais velho que a primeira república de Áustria, você poderia usá-lo como líquido para conservar as verduras que foram esquecidas no refrigerador e fazer floresce muito estranhamente. Você simplesmente não pode mais confiar em alimentos.

A violência do não-endereço. Eu não sei onde, nem que você é. Uma conversa com nenhum endereço e nenhuma pergunta. Investindo meus gestos privados. Coreografar o privado num lugar estrangeiro. Estar sob a pesquisa de testemunhas. Usar um head-set que controla minha voz. Falar com você que controla minha fala. Ter essa conversa transmitida aos outros cômodos do apartamento. Comer o que tem sido cozinhado. Deixar vestígios íntimos na mesa, coisas deixadas que não foram digeridas. Conversar em casa. Não há nenhum roteiro, nenhum texto, nenhum projeto de entrevista, nada preparado e nenhum despreparo. O presente da presença. Deixe-me Peter fora. Gaguejo (N.R: em inglês, Stammer, trocadilho com o sobrenome do artista). Pôr outro “m” no meu sobrenome, tentando me superar, meu orgulho, meu egoísmo por não provar quão espertas minhas perguntas poderiam ser. Nenhum fã.

Quando ela chegou, a primeira coisa que quis fazer foi tomar um banho. Logo depois de um olá tímido na porta. Um encontro às escuras. Como afastar a primeira sensação de inquietude depois de você ter aberto a porta. Ela aparece menor de como me lembro dela de outros encontros. Posso ouvir a água correndo quando estou na cozinha preparando algo para nós. Estranho o suficiente, não nos conhecemos bem, e ainda ela tira suas roupas – ela está nua agora – e há uma parede entre a gente que esconde minha visão. Terá deixado uma jaqueta de lã em meu banheiro depois desta noite, mas ela não sabe ainda. Um gesto íntimo, um resto, de qualquer maneira intimidador. Um intimidar, mas nenhum encontro de namoro. Ela sai, está secando o cabelo. Gostaria de fazer uma ligação, ela diz.

Tomar um banho… demora um pouco ajustar a torneira para água quente. Necessito de gestos especiais para continuar, um entrelaçamento específico das mãos, de um lado a outro como resíduos viscosos previnem-no de trabalhar adequadamente. Meu gesto de tomar banho. Isto tem que ser reapropriado depois de um tempo fora. As instalações do lar e seu tratamento especial, o jeito como se dá bem com eles contribui para ser, se sentir chez soi. Chez soi. Bei sich. Em si. Como se fosse um convidado no próprio apartamento. Como se o apartamento fosse um amigo que é sempre presente e por perto. Ao redor como as paredes que o cercam. O jeito como se faz um café usando o moedor, com um entrelaçamento particular, o jeito de ligar o sistema-hi-fi abaixando em direção a ele, trabalhando com alta fidelidade depois de ter-se abaixado, o jeito como faz uma chamada de telefone sabendo que os botões “4” e “7” são bastante duros de digitar e portanto meu polegar tem que achar a posição certa de apertá-los, até mesmo o jeito que eu tenho que abrir meu flat com a ajuda de uma chave que não entra na fechadura adequadamente e eu tenho que fraudar um pouco.

Todos estes gestos que vêm antes dos gestos de tomar café beber, escutar, chegar em casa. Escuto música de forma diferente quando estou fora de casa. Meu gesto de escutar, talvez sentado numa cadeira, ou comendo, ou não escutando absolutamente nada, é diferente num contexto que tem que ser conquistado antes de eu poder chamá-lo de lar. Quando escuto, o meu corpo aceita uma postura específica. Esta atitude vai junto com um jeito de segurar a cabeça, alguns pensamentos que surgem e me levam longe. Um efeito de memória que é montado pela escuta, como me esqueço de respirar, como meus olhos começam a ficar apertados, como meu rosto inteiro perde a atenção e fica macio. Gestos de contemplação.

Sou incapaz de escrever, de localizar o que acontece ‘em casa’. Como poderia escrever SOBRE isso para eu não poder me distanciar da organização inteira. Pela primeira vez talvez em minha vida, eu não prospero em conseguir espaço no entre o projeto que eu estou fazendo e o meu ser. Eu não posso supervisionar, não há nenhuma lacuna entre meu olhar e o objeto que eu tento escrutinizar. Sou incapaz de me observar como um observador. Eu sinto como sendo paralisado por estas conversas que chupam a energia para fora do meu corpo, da minha mente. Ter que ser mentalmente presente por algumas oito horas, uma presença mental e física. Sinto que meu corpo não somente fica mudo, também fica mutilado pela energia que toma estar ciente, acordado. Quando acordo, tenho uma ressaca. Como depois de um longa festa com muitas bebidas. O meu corpo dói, a minha boca é seca, eu não quero absolutamente conversar . Sou fantasma, estupefato pela intensidade da véspera. Entrar no parque, sair, necessitando de um dia inteiro antes de eu mesmo pode assistir a um espetáculo.

Isto é completamente estúpido de dizer, ela diz para mim. Isso é o que ela quer dizer. Isto é estúpido e infantil. Ela não quer um homem para reivindicar sua liberdade, ela diz. O que faz que queira dizer, pede. A liberdade do quê? Isto é comportamento covarde, é o que ela pensa. Ela sabe do que está falando, teve que sofrer uma separação, uma ruptura mesmo antes de ela nascer. Literalmente uma identidade partida. Ela sabe sobre identidade, ela pode contar.

Me sinto obrigado a ser um bom anfitrião que cuida dos seus convidados. Falar com o convidado, prestar atenção ao que ele(a) diz, faz, pensa, instigando uma conversa, e sabendo que convidados invisíveis cercam-nos, não intervindo, mas deixando seus vestígios de presença em nossas conversas. Nossas conversas são fortes, às vezes sobre nada, uma pequena conversa como meus convidados às vezes não querem conversar. Posso perceber desconfiança, franqueza, ataque, afabilidade, temor, descanso, ou tudo ao mesmo tempo. Cada conversa é diferente, e cada conversa me faz diferente. Sinto-me como um camaleão sem identidade. Quanto mais eu falo, mais percebo que minha conversa está em perigo de tornar-se somente uma figura de discurso. Tenho que ter cuidado não forçar meu convidado a alguma coisa, quero que ele(a) se sinta em casa, literalmente. Mas como pode ser isso quando o head-set está em uma cabeça? Esses fones de ouvido marcam a presença de uma maquinaria que não somente transmite nossas conversas, mas também as registra, ter no mínimo algo a ser restaurado da transitoriedade de nossos encontros, mas espero que eles se tornem transparentes, cada vez mais invisíveis o mais damo-nos bem com eles.

Eu não serei capaz de escutar a gravação antes de 2035. Se eu o fizesse, teria que cuidar deles, lidar com eles. Teria testemunhado nossas conversas e teria a responsabilidade de escrever algo sobre. Se você não leva em consideração o contexto destes encontros, o estar-sem-casa, você não entende nada, eu tenho medo. Reduzir os encontros ao discurso, sem acompanhar gestos, olhares, objetos significariam reduzir o corpo a texto. A informação simples de nosso discurso. E sua estupidez. Não se pode só tomar uma sentença, há tantas coisas desinteressantes que foram ditas, se considera-se “interessante” em termos de entretenimento como se fosse uma categoria de uma conversa.

Vejo muito rostos entendiados quando olho ao redor. Isto não é um espetáculo, amigos! Quais são suas grandes expectativas? Isto não é um talk-show, e eu tento muito não ir justo ao ponto, o grande esperto conservador . Eu não quero que meu convidado seja forçado a ser esperto ou inteligente. Quero soltar. Isto é um objetivo que é muito duro de se lidar. Saber que olhos com expectativa estão em seu rosto, ser observado para ser entretido e ainda não dar. Não estar encantando, seduzindo, nem amável demais.

Depois que quatro horas, nós finalmente achamos um acesso. Perto da sacada, no meio de uma multidão falante de pessoas, eles tocam nossos ombros, eles fazem o que eles fazem, e achamos um acesso ao outro. Como se fosse necessário ir a público, mergulhar na multidão para ser capaz de conversar. Ambos sabemos que nossa conversa é transmitida aos outros cômodos onde é mais silencioso, onde se pode entender cada palavra. Esta lacuna entre a situação íntima e o conhecimento de publicar no minuto que é dito parece ser desafiador para nós. Continuamos nossa conversa ao começa-la pela primeira vez.

Como lidar com o outro? Como não colocá-lo(a)numa posição onde ele(a) sempre será o outro? Como antes encontrar o outro não no gesto da alteridade, como outro, mas um outro sem alteridade? Deixar o outro ser, não é o mesmo que permitir a alteridade do outro. Cada declaração produz o outro discursivamente. Fácil, e ainda, este é um impacto que determina nossas conversas. Porque entrevistar força o outro a responder ou não, e de novo esta decisão já é formada pelo fato que há alguém que pergunta. Minha pergunta deixa a decisão, a reação, estrita. O que quer que ele faça, será entendido como uma resposta, ou como boa vontade, ou relutância em dar uma resposta. Por isso, o outro já é deixado outro. Quem sou eu para perguntar, pelo amor de Deus, o direito de perguntar a estas pessoas? Como podem fazer suas posições sem serem forçados a decidir se querem dar uma resposta ou não, quando cada endereço meu já molda seu discurso, o modo de fala? A violência de se endereçar. Como posso conversar com você sem conversar comigo? Tomar você por aquilo que eu acho que você é?

Olho dentro dos olhos dele, sorrio. Ele olha de volta, tenho a impressão de que ele se sente inquieto. Às vezes nossa conversa pára embora haja o suficiente sobre o que conversar. Parece que confiança/desconfiança determinam uma conversa mais do que somente o conteúdo, saber o que se quer dizer. Estas paradas fazem nossa conversa gaguejar. Estas paradas caem entre nós dois , elas estão cheias de temor, até mesmo desinteresse. Temos que conversar embora nós não queiramos? Eu não quero forçá-lo a fazer isso. Posso perceber que ele quer conversar com outras pessoas, também, talvez seja porque ele não está ok com a organização destes encontros. Mas se eu pedisse sua opinião, me tornaria uma polícia do discurso. Eu não quero negociar o formato, ainda, todo o maldito tempo que eu tenho que falar sobre os porquês, os para quês, comos. Negociar as fronteiras do formato. Quão repressivo é estar em casa? Necessitamos ver o fim de tudo para calcular até onde podemos ir? Tem algo a ver que ele não queira conversar sobre privacidade? Isto é o que eu percebo…que algumas questões devem ser deixadas de fora, e eu o faço, eu as deixo onde elas estão. Tire seus sapatos, se você quiser, e fique com eles ao mesmo tempo.

Eu subestimo a coisa inteira? Eu não esperava que fosse exigir tanto de mim. Pensei em encontrar as pessoas e ter conversas sobre suas vidas, práticas, pensamentos, sentimentos, sem uma agenda pré-escrita. Não contava com a presença das outras pessoas, como isso poderia causar impacto em nossas conversas. Durante a conversa, uma hora depois do ‘público’ entrar e tomar conta, conquistar o apartamento, a cozinha, alguém se endereça a ele enquanto nossa conversa acontece. A organização inteira parece tão casual, cotidiana, mas é ainda altamente artificial para mim. E meu convidado começa a conversar com alguém mais, o que não deveria ser absolutamente um problema em outras condições, mas sei que se eu os deixo continuar a conversa, a noite inteira é turvada. Eu poderia deixar o apartamento. No momento em que nós, como interlocutores, perdemos contato, perdemos a conversa. Então tenho que interferir sem muita cortesia, e eu não sei se estou também um pouco zangado de que o outro tomou a posição tão facilmente sem respeitar o jogo inteiro e meu convidado. Eu ainda não sei como teria reagido a isso, se eu tivesse sido o convidado-convidado. Mas é muito visível que as fronteiras entre privado e público são muito frágeis. Tão frágeis às vezes, que cada interferência pode explodir a coisa toda.

Estou bastante irritado, me sinto inibido. Ele é muito rude, não quer conversar comigo. Para que são estes jogos de poder? Por que ele não apenas aceita o convite? Por que ele tem que pôr tudo que eu ofereço em questão? Eu não quero banalidades, ele diz, então estamos falando sobre o que aqui, pede. O que você quer de mim, ele pergunta. Sentamo-nos na sala de estar, preparo algo para comer. Ele não gosta de comer. Nem quer conversar. Para que são estes fones de ouvido estúpidos, ele pergunta? Tento ser gentil, sorrio, me sinto como uma dona de casa dos anos cinqüenta, servindo o jantar, mantendo o sorriso, nenhuma palavra grosseira. Por que isto? Ele é agudo em suas palavras. A coisa é que eu não posso atacar de volta, eu sou quem convidou, tenho que retirar me, tenho que abster-me de atacar. Posso perceber como a raiva surge, posso perceber que tenho que fazer algo para os amigos em volta escolherem um partido. É a primeira vez que eu tenho a impressão de lutar num fosso contra alguém que eu convidei. Ele me provoca, eu não sei por que, falando de alguma coisa que disse a ele numa carta. Fraseando publicamente. Claro, ele tem o direito de turvar as fronteiras, isto é muito esperto, inteligente, mas o jeito que ele faz é condescendente. Eu nunca esperei defender meu esquema e eu não quero. Isto não é um talk-show, não era absolutamente minha intenção. Por que não pegar a atmosfera como algo a começar? Por que lutar contra, transformando numa etapa de oponentes? A idéia para a casa não foi só falar com alguém, mas dar a chance de ficar em silêncio também. Calar a boca e não ter que falar por horas.

Não há nada a contar sobre isso. Ainda não há, continuo sem palavras. Palavras demais durante as noites. O que há a dizer, ainda? Minha paralisia, minha calma, não se foi ainda. Eu não tenho idéia do que acontecerá dentro destas quatro semanas, e não acho que estou exagerando.

Então qual evento Big Brother você está fazendo, alguém me pergunta. Me sinto um pouco irritado. Como alguém vem falar de Big Brother? Só porque usamos fones de ouvido, a conversa é audível nos alto-falantes? Ele diz isso com desprezo. Big Brother é explorador, voyeurístico, capitalista, mudo, enfadonho. É interessante para mim que tudo tem que ser comparado com outra coisa para ganhar valor, para ser negociado. ‘Alguma coisa é como isto ou aquilo’ é a sentença capital para cada trabalho, pune um trabalho à morte. Porque se você não estiver contente com tal julgamento, você tem que trabalhar contra isso, e se você concordar, você só verá o que você acha ou espera que vai ver. Comparar é vendar a mente de alguém.

Tento preparar a série inteira encontrando meus convidados ou no mínimo conversando ou escrevendo para eles. Eu não quero que eles tenham a impressão de que a coisa toda ‘é só improvisada’. Que é sobre nada, relaxada, “somente” cômoda. Portanto, marco um encontro que funciona devido a regras estranhas: Ele senta em minha mesa num ambiente público. Conversamos antes de uma atração do festival, papeando um pouco sobre isto ou aquilo, rindo de incidentes ou experiências compartilhadas. Há um tipo de entendimento que diz que eu me dou bem com você, que nós nos entendemos ainda que nós não concordemos em tudo. É isso, entender sem concordar é a mais importante atitude para as conversas. Para discordar você precisa de entendimento, que é a base da capacidade de dizer “Eu discordo”. A comunicação assim é capacitada a tornar-se um meio de ficar junto, de compartilhar, mesmo por insistir num ponto de vista. Concordar sem entender é ignorância, é um sim-sim. De qualquer jeito, nos encontramos em um bar, tivemos uma noite amável, sorrisos, encanto, até umas conversinhas. No dia seguinte, eu abro a porta, e outra vez a impressão de uma aproximação cuidadosa. Cautelosamente conquistar o apartamento enquanto preparo algo para jantar. Ele anda ao redor, olhando cada coisa, bastante curioso. Ele até testa a cama, se é macia ou dura ou confortável. Deitando lá, me olhando, sorrindo, sem dizer uma palavra, ele me testa. Nós sentamos na cozinha, conversamos sobre seu passado artístico, sua experiência com alguns artistas, ele nunca cozinha, diz, o que é bastante comum entre meus convidados: eles nunca cozinham em casa, sempre comem fora à noite. Tudo é tranqüilo, amável, baseado em entendimento e, sim, respeito. Um entendimento mútuo que diz: Aceito onde você está ainda que eu não o conheça. Minha aproximação a você é impregnada por um entendimento da nossa dualidade , uma sensação de tomar conta, eu sou responsável por você, e eu tenho que começar meu encontro em direção a você com o desejo de que você cuide de mim também.

Ele estava investigando a situação desde o começo? Tentando controlar, mais que sendo curioso para o bem do projeto? Quando o público entra, ele muda bruscamente seu modo de conversar . Um som oficial leva embora o que era íntimo antes. Ele tira a roupa, olhando-me, deixando sua viagem visual para o público, legitima seu gesto por dizer que fica nu quando está em casa. Me pede que faça o mesmo. Mas eu, continuando a preparar a comida na mesa, somente digo: Eu não, eu fico vestido quando estou em casa. Esse é o momento decisivo onde eu me sinto traído. Percebo que ao tirar suas roupas, ele quer se agarrar a essa situação precária para transformá-la num palco como se ele soubesse o que significa estar nu em um palco. É até mesmo ridículo: estar nu fez ele aparecer até mesmo mais vestido do que antes, escondendo-se com e na sua nudez. Hora do show. Depois de ter sido surpreendido, me sinto até um pouco zangado por isto incapacitar nossa responsabilidade, nossa partilha, e o deixa representacional, encenado. Tudo o que eu digo de agora em diante torna-se uma frase, uma linha de uma figura de palco que conversa com uma figura de palco, o estado precário de estar em tal contexto vai embora agora. Tudo é muito claramente montado, e o corpo nu é apropriado.

O gênero gera conversas diferentes. A diferença, o fato puro de ser de outro sexo é eloqüente. Há todo um teatral social de gênero rolando entre nós que mantém nossa conversa viva, a alimenta com o desejo da diferença. O jeito como ela enfeita sua cabeça, um teatro cheio de movimentos de cabeça, olhares, pestanejos, posições de boca, o jeito como ela mexe no cabelo. Isto é ela neste momento, ela sabe e lida com isso, até põe ‘en jeu’, em jogo entre nós, por mais que o público entre. A maneira como ela me olha, com um sorriso sofisticado de conformidade, quando vamos à cozinha buscar café. A cozinha está lotada, e ainda assim nós não perdemos contato, como se ela invisivelmente tivesse me tomado pela mão, dirigindo-me por este mar de pessoas. Sigo seu caminho de sorrisos apoiado em suas histórias.

Lembro-me de que uma vez vi uma menina na rua várias vezes e então eu descobri que ela morava ao lado. Fui suficientemente corajoso para tocar a campainha, inventei uma mentira para entrar, e então alfinetei uma nota no quadro negro: Quem é você? Completei esta pergunta com meu número de telefone. Muito e nada explícito. Eu nunca recebi uma ligação dela, minha pergunta permaneceu sem resposta. Em nossas conversas em casa, não há um quem, eu não tenho que deixar meu número de telefone que indica que minha situação difere da sua. Nenhum chamado, nenhum apelo, melhor, em casa um paradoxal onde tem que ser perguntado: onde está você? Onde você está quando fala a mim com seu rosto de diferença, de gênero diferente, de atitude e hábito diferente? Talvez você não tenha que se colocar nem posicionar seu ser por sua diferença já estar gravada no seu corpo. Você é o fato vivo, prova da diferença. Isto assegura que nossas conversas se mantenham. Esta segurança instiga minha pergunta que não pode enfraquecer sua posição: Você está no lugar onde eu suponho que esteja, ou você já moveu a um outro, se você absolutamente jamais tinha estado lá? Com homens eu posso perceber uma diferença em não ser diferente. Talvez tão facilmente, até antropológico, antropológico no significado da palavra grega para masculinidade, há uma negociação constante de nossa posição. Nós constantemente temos que declarar e temos que lutar. A falta de diferença talvez nos guie a dizer onde estamos e por isso é que nós estamos a dizer: Sou diferente de você. E você é meu outro, devido ao fato que eu provo minha diferença, eu difiro em discurso, em posição, em pele,em ficando nu, em minha recusa em conversar, em cultura. Tenho que me colocar, desenhar uma linha entre nós para eu não querer ser tomado para você, enganado por você. Minha conversa com você é para manter minha posição e menos para interrogá-lo.

Eu pergunto quem você é, quero que sua identidade não prejudique a minha se eu perguntar onde você está, quero que permaneça em seu lugar e não ultrapasse meu território masculino. Ele diz: Eu estou bem surpreso que você faça isso agora, eu não esperava isso de você. Ele quer dizer que eu estou disposto a tirar os fones de ouvido que ele estava tão relutante em usar durante a conversa. Posso ver seus olhos espantados, e eu estou espantado. O que ele pensou de mim, que eu sou um cara teimoso, tarado por conceito que tem que se agarrar a uma idéia, inflexível? Ele ficou surpreso que eu não necessite me esconder atrás de uma facilidade técnica? Ele ficou surpreso de que eu cedesse e não lutasse até o fim, como ele esperava de mim? Ele ficou surpreso de que eu cedesse minha posição tão fácil, e com isso, cedesse a diferença que ele precisava para se posicionar? Que ele pode me conquistar tão facilmente?

Ele teve que continuar a conversa comigo até as cinco da manhã. Quis me convencer, convencer-me de e com sua esperteza, inteligência. Que ele não é curto nas palavras, mesmo quando a coisa toda acabou, quando o público já deixou o apartamento. Eu sinto como se o vinho rastejasse até o meu cérebro pelas minhas veias, vendando meus pensamentos ao passo que ele não bebeu um gole de álcool, já que ele não deve beber para não perder o controle, eu presumo. E continua a controlar meu discurso, tenta pelo menos, continua tentando me convencer de qualquer coisa que ele fale. Ele é o cara, não eu, não eu, ele é maior, melhor, mais esperto, um jogo ridículo, e eu não posso dizer cala a boca, vamos pular esta parte, acabou, nós terminamos, por favor deixe a mim e minha cabeça. Eu não posso dizer isso porque parece que a conversa fez uma lavagem cerebral em mim. Minhas palavras, meus pensamentos estão em modo automático, “d” é para dirigir. Ele não me deixa ir, sempre que eu tento conversar com alguém, ele vem, dizendo que foi convidado para falar, então quer continuar falando. Ele sente o triunfo de determinar o nosso discurso agora e decidir quando está acabado, e eu quero sair disso.

Deixar ir. Não tenho nada para determinar, sou uma garrafa vazia, e eu quero que você me encha. Decidi não ser o mestre de cerimônias, que parece causar um sentimento de irritação, que pessoas diferentes enfrentam de forma diferente. Criar abertura presumivelmente tem a ver com mostrar limites que enquadram essa abertura, fronteiras que tornam essa liberdade possível.Se você abandona as fronteiras, você borra a liberdade.

O apartamento respira. Conversa comigo.