Abordando Stationen | Approaching Stationen

Tradução de Marcelo Almada, Editext-Editoração de Textos

O teatro ocidental tradicional baseia-se, entre outras coisas, na clara e não ambígua separação entre palco e platéia, produção e recepção. Essa disposição funda-se na premissa da exclusão inclusiva, segundo a qual a representação cênica se dá tanto com a exclusão do público no tocante à ação que ocorre no palco quanto no fato de o público nela ter participação ativa pelo fato de observá-la. Essas construções contraditórias – performativas – de um todo sempre incompleto, que pode somente emergir da incompatibilidade de suas partes, não se restringem apenas ao fenômeno cultural do teatro ou às várias formas de artes cênicas.
Na verdade, o performativo parece habitar muitos cenários e procedimentos sociais, como explicou Giorgio Agamben.

É, no entanto, interessante notar que essa separação restritiva e compulsória dos dois lados do palco – este lado e além dele –, já praticada há séculos, vem sempre acompanhada do desejo de superar essa separação na própria performance. O consumo do teatro é ele mesmo baseado nessa promessa comunicativa segundo a qual os elementos conflitantes podem ser refundidos num todo único. Da crença na onipotência dionisíaca do êxtase do teatro – passando pelos estudos etnológicos e exoticistas das formas da dança ritual em todas as partes do mundo – à variedade de performances coreográficas do nosso presente obcecado por experiências, permanece perceptível o desejo veemente de superar, ao menos temporariamente, o abismo estrutural e social erguido entre a mera visibilidade e a efetiva performance, entre o representado e o realizado.
Essa questão dá margem a extensas considerações. Gostaria de me restringir aqui a afirmar que a absoluta exaustão de tais métodos de espetáculo e de gêneros periféricos – performance artística de um lado, consumo de arte do outro; abundância de experiência versus abundância de criação – como a que se verifica no teatro, nas artes plásticas e, sobretudo, na dança, não pode ser coincidência.

Vejo o projeto de pesquisa de Thomas Lehmen sobre a estrutura, o efeito e a comunicabilidade desses sistemas auto-referentes como o sintoma de uma difundida dúvida. A força dessa dúvida tenta tornar indistintas as fronteiras que até agora diferenciavam artista de consumidor, dançarino de espectador, artista de público. Isso não remete ao grande projeto modernista de procurar eliminar completamente as fronteiras entre a arte e a vida. Na minha opinião, trata-se mais de conquistar um insight sobre a estrutura artificial e, portanto sempre logicamente insatisfatória, desse sistema, que vê, ou ao menos aprova, cada vez menos critérios para diferenciar entre a biografia vivida e a encenada, entre a técnica treinada e o gesto do dia-a-dia, entre a apresentação ilusória e a análise desconstrutiva. O fato de que a arte tem suas próprias regras, leis e linhas mestras, e de que a transição da criação artística ativa para o consumo passivo de arte acontece com base em critérios altamente ambíguos serve, na minha opinião, de problemático pano de fundo para o projeto Stationen.

Ao permitir que a realidade da arte e da dança, com suas regras de improvisação, colida com a realidade das pessoas normais, que têm suas máximas de comportamento geradas de modo compulsório e coincidente, bem como social e individualmente (portanto, de modo performativo, num processo de autodesempenho), Stationen torna visível a estranheza mútua dessas pessoas, algo que, por sua vez, se baseia no próprio fato de que os dois lados do sistema se complementam.

Isso dá continuidade à linha que os projetos de Lehmen têm tomado nos últimos anos, nos quais a produção do artefato como obra de arte tem lidado de modo crescente com suas próprias regras e abandonado a idéia de obra completa. Distanzlos (1999) e Mono Subjects (2001) ainda recorriam a uma dramaturgia sólida, mas parte dessa dramaturgia era também o próprio processo de criação e um situar constante da dança no modo subjuntivo. Essa relativa interdependência tornou-se completamente clara em Schreibstück (2002 ff.), que contava com uma estrutura formal, por meio da qual a efetiva realização artística é deixada para as ações de vários artistas contratados mas autônomos.

Stationen permanece, é claro, um experimento. Mas é um experimento que apresenta as muitas estratificações envolvidas na criação de um trabalho coreográfico que toma determinado material como ponto de partida e o transfere para formas e estruturas que, idealmente, compõem um significado para outras pessoas, para os espectadores (imparciais). Para esse fim, sem nenhuma pressão moral, Lehmen permite que a arte e a realidade existam como esferas paralelas. Não se trata de avaliar as duas em nome da arte ou da política, mas de ser capaz de examinar sua interação.

Cenas

Em reunião informal numa tarde em junho de 2003, foram apresentados os primeiros resultados desse confronto e o modus operandi desse recíproco cruzar fronteiras. De início, a apresentação, conduzida com desembaraço pelos participantes da vida real (um supervisor de construção, um corretor de seguros, um pesquisador da área médica e um chefe de serviço de segurança) não causou impacto algum, permanecendo uma explicação sem ação. Nesse meio tempo, os dançarinos improvisavam (de acordo com diretrizes estruturais fixas de interação, denominadas funções) atuavam sem nada explicar. O característico cruzar dos dois regimes já começou aí, quando cada lado não mais detinha o contexto pleno e efetivo para suas próprias ações. O coreográfico surgia contra o real; o real tropeçava no coreográfico. Assim, não mais se disputava de modo algum a linha entre o real e o falso (com os dois lados mantendo o tempo todo sua própria, por assim dizer, realidade biográfica) mas muito incidentalmente esticava-se essa linha até um ponto de quebra.
Cada lado trabalhava com suas camadas de experiência, de estudo, de artístico, de reflexão, mas essas camadas simultaneamente se acumulavam e se erodiam. Novamente, confrontava-se uma associação paradoxal que implicava a própria criação, mas não se aceitava efetivamente essa criação.Quanto mais se tomava conhecimento da realidade das ações dos bailarinos e da presença de pessoas dos mais variados estilos de vida (nas palavras do anúncio de jornal que procurava participantes), mais isso se diluía, se desmanchava e se anulava ao longo do confronto. As duas realidades não se afinavam e, no entanto, partilhavam um espaço comum no qual se moviam e interagiam. Além disso, esse confronto incluía a realidade ambígua do público convidado, que, ao longo dos estágios de desenvolvimento que se seguiram, era focado cada vez mais perto da ação, sentado às mesas, fazendo perguntas e intervindo, ao lado dos artistas participantes. Desse modo, uma arqueologia espontânea do conflito arte/vida ocorreu, por assim dizer, no processo em que o revelar é sempre também um sobrepor. Parece que se está muito perto da realidade dos participantes e, no entanto, no contexto da performance, o confronto executado e apresentado (ou, talvez mais precisamente, organizado) continua sendo uma pose, portanto algo artificial/artístico. Nem um lado ganha do outro; um questiona o outro. A convenção do teatro, por meio da qual os elementos da vida permanecem incluídos e, ao mesmo tempo, excluídos constitutivamente, torna-se cada vez menos atuante aqui. A fusão do performer, do espectador, do artista e da pessoa que trabalha (ou que está desempregada) num todo homogêneo, não teatral – estendendo a chamada arte para algo de não artístico, até o ponto em que a diferenciação se torna irrelevante – é portanto central para o experimento.
No início, colocou-se a questão de quão exclusiva deve ser a coreografia; ou em que medida ela não deve ser mais considerada um meio de comunicação inclusivo. No fim provisório desse confronto (isto é, no momento da apresentação pública), no entanto, duas coisas parecem se definir: a quase agressiva auto-exposição da arte enquanto material biográfico / subjetivo apresentado e a tranqüila percepção de que os dois domínios não são perfeitamente intercambiáveis; de que o pessoal não se encaixa na formação de um contexto teatral como mera confissão e puro fato sem subverter a si mesmo e ao contexto. Performance/ dança/ coreografia têm estruturas tão inerentes quanto a vida/ a realidade/ a biografia, e não podem deixar de levar em conta, de um jeito ou de outro, esses fundamentos caso se queira trabalhar num contexto de teatro. A afirmação possivelmente não-intencional do espaço performativo poderia ser o fim-resultado de Stationen.

Por mais que se tente estender a ação característica da arte cênica para a vida, um segmente excluído sempre permanecerá atuante; um terreno exclusivo ao qual simplesmente nada e ninguém pode pertencer. As diferenças devem necessariamente permanecer como questão.
De outro modo, não haveria mais nenhuma dialética nem nenhum teatro.

Franz Anton Cramer* é crítico de dança freelancer e autor em Berlim. Também participa de congressos e seminários em universidades e academias da Alemanha, França, Espanha e Holanda.