Acertando o alvo

As críticas abaixo foram originalmente publicadas no Jornal do Brasil. Cada texto refere-se a uma semana do evento.

A principal mostra de dança do primeiro semestre da cidade do Rio de Janeiro teve início nesta última quinta-feira (8 de março), trazendo, como sempre, ótimas possibilidades de discussão, próprias da dança contemporânea. O Solos de Dança no SESC mostrou, mais uma vez, novas combinações de coreógrafos e bailarinos que nunca, ou quase nunca, haviam trabalhado juntos. O resultado é sempre um lugar híbrido de linguagens que os dois artistas inauguram em um curto tempo de convívio. E, para entendê-lo, há que se lembrar sempre desse último dado.

A edição desse ano tem uma novidade: sua idealizadora e curadora, Beatriz Radunsky, lançou um desafio temático aos 16 bailarinos e coreógrafos que tomam parte da mostra, dividida em duas semanas, com quatro solos cada uma. A partir de um poema de autoria de Alice Ruiz, Acertar o alvo, todos tiveram que se deparar com os sete pecados capitais como fonte primeira de seus trabalhos. Tal desafio, aliado ao ineditismo das parcerias, mostrou logo nessa primeira semana o quão difícil é estabelecer pactos temporários entre criadores e intérpretes. Ou ainda, entre coreógrafos e bailarinos, relação não tão óbvia quanto parece.

O primeiro solo da noite, Acídia, do paulista Luís Fernando Bongiovanni, trouxe as reflexões de São Tomás de Aquino à cena, para discutir uma tristeza que se poderia traduzir em uma espécie de preguiça. Para tanto, o coreógrafo contou com a precisão física da excelente bailarina Fabiana Nunes, numa adequação elegante de seus propósitos num corpo que dança. Apenas uma certa previsibilidade poderia ter sido driblada para que a idéia de ausência de perspectiva presente no conceito de acídia pudesse ser traduzida coreograficamente com maior justeza. E a noção de repetição não se confundiria com a de previsível.

Em Unheimlich, Natasha Mesquita encontrou-se com a coreógrafa mineira Suely Machado num passeio inquietante pela luxúria e pela gula, não sem recuperar o sentido da palavra alemã que dá título à obra: estranho. Aqui, sem dúvida, trata-se de um bom exemplo de como o tempo de convívio entre criador e intérprete às vezes é crucial. Natasha ainda carece de uma entrega mais visceral ao que se propõe em cena, para que o tema a inunde realmente, tomando seus movimentos. Nada que Suely não pudesse burilar em mais alguns ensaios. Mas o que aparece é ainda quase postiço. E os passos de dança, dispensáveis ao final do trabalho, poderiam dar lugar ao puro gozo que se anuncia em todo seu belo início.

O mais belo momento da noite veio com Caminho Aberto, numa parceria instigante entre Paula Águas e o coreógrafo Mário Nascimento. O retorno de Paula à dança que sempre lhe coube provou mais uma vez que se trata de uma das mais completas bailarinas brasileiras. Seu vigor técnico atingiu uma maturidade que compreende com uma rapidez desconcertante a idéia do coreógrafo. Mario parece ter percebido isso também rapidamente. E o que se vê em cena é um arroubo milimétrico de novas relações entre o movimento e a própria interpretação deles. Aqui, a presença de Daniela Visco para auxiliar nessa equação mostrou-se fundamental. O público ficou com a respiração suspensa. Era o mínimo que podia acontecer.

Fechando a noite, Bruno Cezário, bailarino ímpar que constrói uma sólida carreira no exterior (hoje no Ballet de Lyon – França) convidou o coreógrafo japonês Shintaro Oue para compor Feche os olhos e você verá o que não pode ver. Sem dúvida, trata-se do trabalho mais frágil de todo o programa. A exuberância da dança de Bruno não encontrou ressonância na idéia de Oue e o resultado, confuso e cambaleante, fica aquém da potencialidade do bailarino, infelizmente. Um bom começo para se decupar a idéia que ali apenas se insinua seria avaliar, com urgência, a pertinência daquele figurino.

A primeira semana no Solos prova que sua importância para a cena carioca irriga pensamentos. Não há outra função mais fundamental. Não nesse momento, quando o SESC continua sendo a única casa da dança nessa cidade.

A segunda semana

A segunda semana dos Solos de Dança no SESC trouxe mais quatro novos trabalhos que fazem dela um programa sem dúvida mais interessante do que a primeira semana. Novamente, a grande estrela da noite são os próprios bailarinos, apontando para uma possível crise pela qual devem estar passando nossos coreógrafos.

O primeiro solo, intitulado Lado B, tenta expurgar uma ferida histórica, aliando comicidade e uma ironia ácida. João Wlamir, ensaiador do Ballet do Theatro Municipal, mostrou a excelente Laura Prochet, sua colega de companhia, como uma típica bailarina de corpo de baile, desnudando seus pensamentos durante um ensaio geral. Não há como negar que boa parte da platéia da noite de estréia sabia do que se tratava, o que comprova a pertinência de se exorcizar esse tipo de pensamento entre os bailarinos de uma companhia. Apenas uma coesão maior poderia deixar esse solo mais enxuto e talvez assim mais impactante.

Em …algum início…, Paulo Marques constrói uma elegante trajetória coreográfica para o bailarino Rodrigo Maia. Nesse trajeto, há como se detectar no corpo que ali dança suas influências a partir dos coreógrafos com quem já trabalhou, mostrando sua maturidade. Apenas a duração do solo, um tanto esgarçada, poderia ser repensada a partir de uma coerência na trilha sonora, o que faria estar em sintonia com a luz certeira assinada por Luiz Oliva e pelo próprio Paulo.

Maturidade também parece ser a palavra-chave para se depreender as idéias que estão por trás de Percurso coerente para um corpo impertinente, solo que traz a bailarina Andrea Bergallo coreografada por outra bailarina, Denise Stutz. O interessante é o entrecruzar de maturidades dessas duas artistas presente em toda a coreografia, fazendo saltar aos olhos o lugar do bailarino, do intérprete, ofício que as duas conhecem tão bem. O resultado é o puro estado desse elemento fundamental do fazer coreográfico e isso é desvelado com precisão e poesia por Denise e Andréa.

Fechando a noite e a mostra, a mestra Carlota Portella reencontra um ex-integrante de sua companhia, Inho Sena, no solo O prato da balança. Toda cumplicidade de anos trabalhando juntos reaparece em cena, formando um elo intenso de compreensão mútua entre bailarino e coreógrafo. A bela investida em movimentos precisos contrastaria com primazia com a ira estampada no ato de quebrar pratos, se não fosse truncada pela trilha sonora que excede às vezes em seu sentido narrativo e também por pequenos gestos por demais dramáticos de Inho. Em sua balança, Carlota ainda deveria perseguir o peso justo desses elementos. Há que se comentar a poética iluminação de Deise Calaça, sobretudo ao final da obra.

Aliás, na noite de estréia, justamente o final dessa obra sugeriu um interessante modo de se olhar toda a programação da noite. Um dos pratos usados por Carlota/Inho é oferecido pelo bailarino a uma pessoa da platéia. Na ocasião, essa pessoa era ninguém menos que Tatiana Leskova, a grande mestra do ballet. Ela, em sua sagacidade, não hesitou em também arremessar seu prato ao centro do palco, quebrando-o. Seu gesto inteligente de ira conversa com o primeiro (e por que não, com todos) solo da noite, deixando-a redonda. Tanto Leskova quanto os Solos de Dança no SESC acertaram seu alvo, recuperando o título do poema de Alice Ruiz que norteia toda a mostra.