Lost in Dance – Episódio I

Começo com este texto uma série de três artigos, movido pela minha paixão pela dança contemporânea. E como toda paixão também envolve angústias, minha intenção é a de dividir algumas delas. Para isso retomo outra paixão (ainda que muitos acometidos por alguma síndrome neo-apocalíptica possam achar inadmissível ou que não pegue nada bem amar a dança contemporânea e a televisão). Na década de 60 e 70, o seriado norte-americano Perdidos no espaço foi muito popular nos Estados Unidos e no Brasil, e narrava a saga da família Robinson pela galáxia tentando retornar para casa, quase sempre impedida pelas artimanhas do ardiloso, atrapalhado, irreverente e mal humorado Dr. Smith. Dentre os personagens, havia também o B9, robô que sempre alertava a todos de iminentes ameaças nos planetas onde passavam. Ao iniciar este texto, decidi recorrer a este último personagem e sua célebre frase nestes momentos, enquanto oscilava os braços freneticamente: Bidi,bidi,bidi! Perigo!Perigo! Perigo!

O leitor a estas alturas deve querer saber, mas afinal onde entraria a dança neste seriado? E, respondo: não tinha. Do seriado, busquei o alerta de B9 por ser, no meu imaginário, um dos mais poderosos sinais de atenção. Alerta que tenho ouvido disparar frente a algumas tendências que vêm se sedimentando na produção de dança contemporânea no Brasil (outros perigos por aí também rondam, mas de alguns muito se tem falado e aos que vou me referir pouco se tem permitido falar). E faço a recuperação retrô deste seriado, para retomar o mesmo período no qual esta idéia de dança contemporânea começa a tomar forma, lá pela década de 60, seja na dança pós-moderna norte-americana ou em projetos autorais vigorosos de criadores europeus que, por este momento ou um pouquinho depois, se configuram.

Ou estou muito equivocado, ou que bem me lembre, a idéia de dança contemporânea vinha propor a possibilidade de vocabulários, sintaxes, técnicas “alienígenas” ao que se praticava na época, ao status quo da dança. Combater os cânones, não por serem cânones, mas por eles impedirem que novos territórios para dança pudessem ser habitados, que outros corpos também tivessem lugar na cena, que outros procedimentos pudessem ser experimentados.

O que tenho visto em certa parcela (e não muito pequena) da produção de dança contemporânea vem se configurando nos últimos anos na contramão dessa perspectiva e percebo uma possível instauração de modelos para se fazer dança contemporânea, que caminham, de maneira geral, em duas vias, que por vezes se tocam. A primeira, assumiu uma atitude quase religiosa com as propostas da dança pós-moderna estadunidense, leia-se Judson Church. Os “nãos”, proclamados no manifesto de Yvonne Rainer são levados a cabo, numa síndrome quase stalinista. Não ao cenário, não à música, não à iluminação, não à teatralidade, não ao movimento. Quem se atentar um pouco ao que foi feito e escrito por seus criadores pode perceber que nem a Judson se levou assim tão a sério e que a idéia de estar dentro de uma igreja não era a para sacralizar uma seita. Além disto, os trabalhos que caminham por esta via parecem esquecer que este movimento aconteceu há mais de quarenta anos e lá, em New York.

Não, não, não. Não estou aqui dizendo que aquilo lá é passado e deixe-o lá. As idéias proclamadas por artistas como Trisha Brown, Steven Paxton e outros tantos são fundamentais para a existência e o pensamento da dança contemporânea e revisitá-los é sempre muito oportuno. Mas as maneiras de lidar com este material precisam ser outras, as questões hoje colocadas para a dança são outras, as velhas questões prementes na vida nossa de cada dia são, mesmo que similares, mais diversas e complexas, ainda mais quando se produz num país chamado Brasil. Fico pensando que nestes quarenta e poucos anos devem ter aparecido outras coisas para se dizer não e outros modos de fazê-lo. Talvez o maior não que a dança pós-moderna da Judson estivesse dizendo era à ranhetice de se eleger papas e dogmas, numa área em que duvidar é essencial, mais do que aderir a uma fé irrestrita.

E aqui surge o segundo perigo. Noutra tendência, surge o deslumbramento quase que tributário à produção de vanguarda (uso o termo na falta de outro melhor, ainda que assumindo seus riscos semânticos) do “Primeiro Mundo”. Um relevante número de trabalhos que começaram a aparecer, a partir da virada para o século XXI, repletos de cacoetes recorrentes em inúmeras obras. Cacoetes que levaram a jornalista Adriana Pavlova há alguns anos, a listar ironicamente o que estava sendo in e out na cena de dança contemporânea, numa matéria que fazia o balanço de final de ano para o jornal O Globo, no Rio de Janeiro.

Nesta via, entre alguns acertos, novos cânones se sedimentaram, com a proliferação de pastiches de Thomas Lehmen, Benoit Lachambre ou Jérôme Bel. E aqui não há demérito algum a estes criadores e seus saberes. Dialogar com estes criadores e seus materiais não só é saudável como estimulante. Mas falo do perigo da instalação da impossibilidade da possibilidade de outra existência que não seja a dos preceitos que “colaram” no mainstream da dança contemporânea no mundo. Preceitos que passam a ser incensados em alguns circuitos nacionais, resultando em conceitualismos inócuos e em discursos monocórdios. Quase um fastfood contemporâneo. Acrescente os elementos certos, faça uma justificativa com citações com referenciais a intelectuais da moda e pimba, você faz parte da rede! Não é uma questão de gosto, mas de indigestão. Tudo bem que Macunaíma era preguiçoso, mas engolir sem mastigar ele certamente não faria, porque tinha um mínimo de esperteza.

A dança contemporânea no Brasil vem assumindo tendências que me fazem ficar angustiado por um lado, mas também estimulado, por outro. E aqui, meu aplauso irrestrito a todos os que conseguem diálogos profícuos com estas vias, a todos os desvios destas vias e todas as apostas nas muitas possibilidades de se pensar e criar em dança, como Lia Rodrigues, Luiz de Abreu, Márcia Milhazes, Henrique Rodovalho, Ângelo Madureira e Ana Catarina, Luciana Paludo, Bruno Beltrão, Wagner Schwartz, Paulo Azevedo, entre outros que com certeza acabo sem aqui nomear. Temos um pé no mundo, sim, e outro aqui, em algum lugar deste vasto continente que nos permite o exercício da singularidade. Inventividade sim, e a partir delas a abertura para experiências conceituais, cerebrais, ponderadas, econômicas, mas também para as prazerosas, divertidas, incômodas, irritantes, esbanjadoras, anárquicas, apaixonadas, intensas, antropofágicas, musicais, porque não?

De minha parte, sempre achei limitador o circuito que se contenta em trafegar constantemente pelos mesmos planetas. Prefiro as navegações constantes, mesmo que tenha escolhido o planeta-dança contemporânea. Gosto da liberdade de visitar o planeta-balé, o planeta-hiphop, o planeta-tango, planeta-dança-popular. E não faço isto por turismo, mas por acreditar que a galáxia-dança é ampla e fundamental para nutrir, inquietar, movimentar e repensar a vida no meu planeta. Prefiro este exercício, ao exercício de habituar-me às mesmas rotas enquanto se sacode a cabeça com um sorriso incômodo em sinal de aprovação para não ser banido do “circuito estelar”. Por favor Dr. Smith, continue esculhambando um pouco tudo isso para não corremos o risco de voltarmos entediados e conformados para casa com toda a correta e perfeitinha família Robinson.