Alejandro Ahmed depois das quedas

A estratégia da dança do Grupo Cena 11 é produto das idéias de seu coreógrafo e diretor, Alejandro Ahmed. Assim, a companhia sediada em Florianópolis, Santa Catarina, completa 20 anos em 2013 com uma trajetória particular.

Organizando uma cena vigorosa, tendo as quedas coreográficas como uma de suas marcas registradas, Ahmed ergueu uma escrita toda particular para a dança brasileira. Para ele, dançar é pensar o mundo, problematizando soluções para inquietações recorrentes. Falando de Violência, lá no início da companhia, e propondo uma Carta de Amor ao Inimigo (mais fotos aqui), trabalho mais recente, que será dançado em Coimbra, Portugal, dias 8 e 9 de maio, o criador é incisivo e determinado, algo assumidamente “poser”. Por isso, reaparecerá num solo no próximo Rumos Dança, em junho, e ainda leva o Cena 11 para a Bienal de Santos, no fim do ano, quando deve fazer uma retrospectiva dessas duas décadas de atuação.

Foto: Luciana de Moraes/Divulgação

Foto: Luciana de Moraes/Divulgação

A entrevista que segue foi concedida no início do mês de março, numa tarde chuvosa, na sala que o grupo ocupa, no Jurerê Sports Center, em Florianópolis. Ahmed acabara de conduzir o ensaio da companhia e, depois, iria para o linóleo preparar seu solo. Movimentos correlatos para pensar a cena brasileira e as suas estratégicas de vigor, sobrevivência e reinvenção.

A companhia completa 20 anos em 2013, no ano passado conquistou o Prêmio APCA pela pesquisa na área de dança. Olhando para essa trajetória, onde você acha que a formação chegou?

Alejandro Ahmed: A gente se reconhece e é reconhecido, pois a gente também se vê pelos olhos dos outros, como uma real companhia de pesquisa em dança contemporânea no Brasil com toda a estabilidade e a instabilidade que isso de alguma maneira propõe. A gente é uma companhia de 20 anos que, ao mesmo tempo não tem nenhuma certeza, mas tem várias certezas ao mesmo tempo. A gente é feito desse tempo que nos formatou como uma companhia de pesquisa e ao mesmo tempo está sempre à mercê de ser um grupo estável sem uma trajetória tradicional de companhia e também num lugar não tradicional que é Santa Catarina e Florianópolis. Pois, apesar de todas as questões, a gente ainda é a única companhia tradicional e trabalhar e se manter com dança aqui. Foi a primeira e a inda é a única a operar dessa maneira.

Você sente como um revés, um peso, não ser uma companhia tradicional de repertório e ser uma companhia de pesquisa?

A gente trabalha numa identidade muito original, própria, nossa, que nos desloca de dois territórios: um é o de uma companhia estável de tradição, como o Grupo Corpo, a Deborah Colker, o Grupo Galpão, de teatro, ou companhias que têm esse lugar de patrocínio de tempo, que é um investimento da área de marketing das empresas, não só vinculado à produção de conhecimento em dança, mas também à produção de entretenimento junto ao público, com a ideia de excelência, vinculados ao mercado. E a gente também não faz parte de projetos que se juntam para trabalhos alternativos. Temos uma história de produção de um conhecimento específico e colocamos ele para ser compartilhado de uma maneira que a gente também não está do lado cult da coisa. Então, estamos entre ser uma companhia underground, que não mantém repertório porque ele é construído através do conhecimento que é gerado nela e não através da história desse lugar e tal, e também não é um grupo popstar. A gente tenta fazer espetáculos com acesso. Lota os teatros e tal, mas sempre com a bilheteria acessível.

Esse é um embate que a dança vive?

Esse é um embate que o Brasil vive como um país que evolui para a sua independência cognitiva, de produzir conhecimento e transformá-lo numa ação sustentável e capaz de gerar uma possibilidade melhor para a sociedade que faz parte desse mecanismo que é o Brasil. A gente faz parte desse trânsito, desse lugar de passagem, em que as escolhas precisam ser feitas e as mudanças têm que ser feitas dentro disso numa ação sustentável capaz de geral algo melhor para toda a sociedade desse mecanismo. Assim, tudo precisa ser verificado e as escolhas devem ser feitas dentro disso. As mudanças também devem ser feitas dentro disso, de acordo com o jeito que país vai. Se as coisas forem verificadas dentro dos investimentos que o Brasil tem em dança, não se compara a países com dificuldades grandes como Chile, Argentina ou Uruguai, onde agora se começa investir um pouco mais. Existe uma orfandade muito maior nesses países. Nesse sentido, o Brasil está lá na frente. Aí, se pode ver através do reflexo da produção nacional, da quantidade de criadores que trabalham fora e voltam. Nesse trânsito, podem trazer qualidade de conhecimento. Nesses outros países também podem, mas têm um trânsito menor, têm menos condições, pois há menos gente trabalhando fora. Eu trabalho com o Luis Garay, argentino, que trabalha mais aqui e na Europa que na Argentina.  Isso é uma realidade, mas não significa que é só assim. Existem muitos modos e operar e muitos vícios também, hábitos que se acabam se grudando à maneira de sobreviver, que têm que ser revistos e mudados em função do próprio país em relação à cultura, à produção de conhecimento e à ciência também.

O que a dança não está fazendo no sentido de um diálogo mais amplo, da geração de mais público?

Acho que a dança conversa, que tem público, que ela faz as coisas. Mas a gente tem que entender que público é esse e não confundir proporções erradas, que é a confusão das proporções entre entretenimento e produção de conhecimento. Tem que ver isso, é diferente. Dá para falar da dança e do minimal Techno, por exemplo. Tem o show do Gusttavo Lima e tem um DJ de Colônia, da Alemanha, que vem pra cá. E também não rola colocar o Gusttavo Lima para tocar lá (em Colônia). A gente precisa agora avaliar o próprio legado das leis de mercado e da qualidade de vida, de como você se porta diante disso. A ideia da formação de público não é aumentar o número de pessoas de forma massiva, mas qualificar o pensamento para ele ser da ordem da escolha e da liberdade crítica de julgamento, mas que os acessos estejam aí. Nesse viés, você não vai ter ações de arte ou de ciência sustentáveis apenas por elas, pois são de pesquisa bem específicas. Isso não significa que sejam chatas, significa que são específicas. Elas podem dar origem a um grande sucesso de mercado ou não. Isso não importa, o que importa é que elas precisam ocorrer para que você construa uma sociedade crítica e livre. E que saiba criar restrições para conter aquilo que vai tomar conta e não é saudável a médio e longo prazo e incentivar aquilo que é tão frágil e por si só não vá conseguir se estabelecer.

Nesse contexto, emerge o debate em torno do que tem se chamado ditadura dos editais. Eles limitam ou favorecem ações na área?

A gente precisa entender e criar mecanismos de compatibilidade para tudo isso. Se eu tenho um patrocínio da Petrobrás por três anos, por exemplo – ainda não temos, talvez tenhamos, mas se não tivermos a gente sempre corre o risco de se extinguir. O Estado não tem nenhuma iniciativa viável, você não consegue nenhum edital direto pra subsistir. Você sempre volta ao nível zero, não tem nada que te compatibilize em relação ao seu percurso, a aquilo que produziu, sempre tem que produzir mais para ter alguma coisa. Isso é um pensamento de mercado muito claro. Então você vale quanto produz e em relação à eficiência com que maneja o que produz, independentemente da qualidade que produz, ao seu percurso, ao que faz e fez, ao que contribuiu, à formação e ao lugar que ocupa nessa cadeia de transformação. Isso é bem difícil. O que poderia acontecer é, por exemplo, no caso de se ter um patrocínio específico, se apresentar por um valor um pouco menor. Mas isso desde que você tenha efetivamente esta estabilidade que o patrocínio dá. Senão, você tem o patrocínio para juntar dinheiro, pois o patrocínio vai acabar e você não tem nada. Então, além de ter edital, tem que cobrar cachê, pois um festival também está atrelado ao mesmo jogo e tal, ele também passa por editais. Deveria ter um equilíbrio para, por exemplo, com patrocínio, eu poder dançar para um festival por um custo mais barato. Isso para que as pessoas possam acessar aos trabalhos e o festival trazer mais coisas. Aí o público assiste, eu estou subsidiado por outra forma, o festival pode trazer outros grupos e pagar mais a eles, tem um cachê mais forte para quem não tem subsídio e é menor. Mas isso sempre às claras, o que é difícil. Aí você sabe que está pagando um cachê maior para quem está sem subsídio para se manter. Você pagar para que aquilo exista e dê continuidade a esta existência. São peças fáceis de se encaixar. Aí os editais podem ser configurados também dentro dessa possibilidade de construção, de saber quem está aqui ou acolá, que região é esta, que Estados estão aí. É preciso também uma noção de quantos, como e quais trabalham (no setor). E a nação ter uma noção sobre isso, para saber quantos e quais são os que trabalham e, de alguma forma, ter um guia, uma orientação para isso de forma que as coisas não sejam díspares. Óbvio que um município como São Paulo, que tem uma arrecadação maior que Florianópolis. Se você for ver em proporção ao que tem em cada lugar, as coisas poderiam se equivaler com mais inteligência. Isso é outra questão: o fomento. Em São Paulo, por exemplo, os editais fazem produzir muito. Claro, muito do que se produz lá fica por lá, pois os outros lugares não conseguem levar isso. Então, precisa criar um sistema que seja um pouco mais articulado do que se já tem. E os editais podem crescer. O Rumos, do Itaú, por exemplo, é o único que não te pede uma prestação de contas daquela tipo “prove que você não é um estelionatário e não vai roubar o meu dinheiro”. Esse olhar é horrível, ele já pressupõem que talvez o cara seja, no mínimo, um marginal. Outra coisa que se geralmente se propõe é que se produza uma pastelaria de espetáculos. Aí todo mundo tem que inventar algo para manter-se. E aí o debate entre processo e produto fica tão rançoso por que o processo também é um tipo produto. Mas a ideia de produto é que ele precisa ser apresentado para ser vendido para ser reconhecido como algo que aconteceu e nisso, publicamente, ser legitimado. O problema não é o que você apresenta, mas como o público entende aquilo que está sendo disponibilizado e onde está sendo disponibilizado. Às vezes é num teatro, às vezes é numa sala de aula de uma universidade, num local público, num congresso de arquitetura. O problema é que está tudo vinculado a você locar seu teatrinho e fazer uma dancinha. Isso vale mais do que você mostrar, por exemplo, um programa de pesquisa.

Falando em pesquisa, o novo trabalho da companhia, Carta de Amor ao Inimigo, avança em procedimentos, para além da tradição dos recursos das quedas, anunciando algo como uma coreografia?

Desde 2008, a gente vem num processo de encontrar o que chamamos de honestidade simbólica para dançar. Onde a metáfora é algo independente e, ao mesmo tempo, é a própria coisa, não é a mensagem a ser passada. Para a coreografia não ser, de alguma forma, um conjunto de passos de dança que, de alguma forma, passam uma mensagem, noção ou organização pré-determinada para isso, a gente foi procurando ferramentas. Desde a queda em si, que é uma ferramenta, pois você é sujeito e objeto da própria ação, e essa ação só se revela na inevitabilidade do encontro com a gravidade do chão e a sua maneira de se defender e se adaptar a isso. Esse núcleo de pensamento carrega, por si só, uma ideia que às vezes pode parecer até presunçosa, mas é uma ideia de tempo real, de honestidade, de corpo enquanto objeto e sujeito da própria ação. É uma ideia de arte da presença como aquilo que acontece agora na presença daquele outro, que é o espectador, naquele dado momento. Isso precisa se configurar como evento da não trivialidade total para que isso se configure em algo que não seja apenas um acidente ou um acontecimento mundano como o fato de chover hoje. Ai sim a arte faz disso o seu ofício: de como você transforma as coisas em outras coisas de forma a evocarem uma forma específica que só a arte consegue fazer e as outras coisas não conseguem fazer. Aí falamos de uma área de conhecimento, de uma área mais específica desse conhecimento. Carta é, portanto, um amadurecimento dessa nossa procura em 20 anos de companhia, que trabalha com algumas coisas bem simples, mas que são complexas de se chegar ao que se chegou. A ideia de coreografia é uma delas, a ideia de situação coreográfica, a ideia de dança generativa, em uma companhia que nunca trabalhou com improvisação. A improvisação, de uma maneira ou outra, se corporificou como um modo de operar, seja dança ou em outro lugar, como algo para produzir material ou dar a liberdade para que se faça o que se quiser. E nunca se pode fazer o que se quer, pois existem limitações no mínimo biológicas. E os desejos vão além disso. Portanto, você precisa de outras ferramentas. O Carta muda a nossa maneira de operar coreografia, nossa maneira de dirigir e ser dirigido num trabalho, a maneira de se colocar, a sua disponibilidade de entendimento de como isso pode acontecer, a maneira de treinar, isso vai mudando. Você não pode treinar sem assumir de que qualquer coisa que está sendo gerada na relação entre as coisas, objetos e pessoas e as informações, é discurso. Como você vai aproveitar e o que vai fazer com esse discurso é outra coisa, mas você precisa treinar assumindo que qualquer ação, em qualquer contexto, e as relações que surgem disso, são produção de discurso metafórico. Para isso o treino tem que mudar, senão você encerra seu corpo na predeterminação da produção de um tipo configuração, um passo o que seja, para então produzir um tipo de mensagem e significar algo. Para significar, desse jeito, a gente tem uma trajetória.

Você é um tipo de coreógrafo colaborativo, indutivo ou impositivo?

Acho que sou todos eles ao mesmo tempo. É impossível dizer que não sou colaborativo, pois só criei e crio dentro de um processo de uma trajetória de companhia: deles, com eles e com o tempo. Isso me dá a oportunidade de, juntos, avaliar questões. Isso não significa que eu tenha características ou hierarquias de função. E é dentro desse processo em que se estabelecem hierarquias de funções, que também são transitórias, e que a gente se organiza enquanto companhia. Eu não sei se é imperativo, mas algumas coisas eu trago a priori, como o nome da coreografia ou do que a gente vai tratar, mas isso nunca é de uma deliberação plena e unilateral, tipo “eu quero isso”. É que algo surgiu de algo que a gente já fez, alguma coisa que surgiu, uma sugestão dada dentro da configuração que a gente já fez. Na verdade, eu tenho que estar prestando atenção no caráter evolutivo da companhia e não só naquilo que eu desejo fazer, mas naquilo que se aponta e eu, enquanto hierarquicamente líder na minha função, tenho que saber conduzir a uma pergunta que nos leve a um dos caminhos que a gente possa apontar. Isso não significa “vá fazer isso, vá fazer aquilo”. Talvez o fato imperativo esteja nesse sentido.

Quais são as questões que movem a sua dança?

O fato de sobreviver fazendo aquilo. Sobreviver no sentido de ser vital. Para isso tem que haver um lugar de possível transformação e descoberta dos problemas mais básicos possíveis. Aí você pode os complexificar esteticamente. Como adaptar-se ao mundo que se revela perante você para mim é o que sempre bate. E como também o mundo responde ao que você considera uma adaptação. Pode ser de uma forma, ou de outra, e como você vai respondendo ao tempo, que te muda, que muda os outros, que muda as coisas. Isso sem resistir ao tempo ou ficar à deriva dele. A maneira de resolver problemas no tempo e ter a oportunidade de descobrir um novo mundo a cada forma de resolver esses problemas é o que mais me move.

Seu corpo tem pinos, as quedas que você criou no Cena 11 são vigorosas, polêmicas e de risco. Você abordou e se apropriou da ideia de corpo vodu. Que linguagem ou assinatura a você acha que constrói na dança brasileira? O que isso significa?

Significa, como qualquer identidade, algo que se constrói não se construindo e, ao mesmo tempo, é dado para você, você assume, expande, mas não é só aquilo. A gente não é só cair no chão, mas a gente também é cair no chão. O que mais fortifica isso é você pode ler uma estrutura descritiva daquilo e através dessa estrutura entender o que posa ser. Acho que algo que descreve a gente tem a ver com essa ideia de corpo vodu, mas tem a ver com questões de fragilidade e força. Ver força num estado frágil e ver fragilidade num estado que poderia ser de brutalidade. A inversão desses papeis, o trânsito entre eles, e até o que a gente organiza no Carta de Amor ao Inimigo, que é essa interdependência de opostos, é o que acho que pode ser visto lá do começo e pode ser visto até agora: somos uma companhia que se estabelece no tempo das coisas e, a cada tempo, de alguma maneira, conversou com o mundo através das coisas desse tempo. O Violência, por exemplo, é totalmente anos 1990, embora tenha estreado em 2000. É um trabalho over, maximal, era um outro lugar. Depois as coisas são se ajeitando de outra maneira. Depois a gente voltou a esse maximalismo, mas de uma outra forma, reconfigurado pelas informações que se tem agora. Então, acho que a gente se estabeleceu no tempo dentro desse binômio entre fragilidade e força. Talvez isso seja uma marca, mas ela não se estabelece como uma única imagem e sim como um processo evolutivo baseado numa relação entre opostos, que nunca são dois. Fragilidade e força não é um binômio só, mas através dessas relações, apontam-se outros lugares, outros caminhos.

Como está o processo de construção de seu solo, que estará no Rumos Dança, em junho?

É bastante desafiador, mas me juntei a pessoas em que confio, Mariana Romagnani e a Hedra Rockenbach, para poder, de alguma forma, me desafiar a falar um pouco, não sobre mim mesmo, mas de uma trajetória que, de alguma forma, faz parte da trajetória do grupo, que também sou eu. Aquilo que o grupo faz não é exatamente o que eu faço. Talvez a pergunta seja: como é que essa ideia se estabelece, como um solo de um diretor e coreógrafo que está há 20 anos com uma companhia e, depois de um tempo parado, volta para o palco, se colocando nessa tensão e exposição, tentando trazer, da maneira mais honesta possível, esse lugar. Por isso esse nome Sobre expectativas e promessas, pois é sobre aquilo que eu pensava sobre a minha própria dança e aquilo que organizei e tomou forma em outros corpos e que foram para outros lugares e voltam para mim como uma identidade que é minha, mas não necessariamente a faz parte da minha configuração biológica de execução daquilo. E, de como isso se relaciona no trânsito entre biologia e cultura, aparência e possibilidade, metáfora, ficção e realidade.

Mas como você lida com a expectativa que recai sobre você, Alejandro, diretor do Cena 11, dançando um solo?

Estou com 41 anos. Se não ficar tranquilo agora, vai ficar difícil… Poderia ser mais tenso ou não. Óbvio que tem uma expectativa, mas estou tentando fazer o meu trabalho. Dentro disso, confio nas pessoas com quem estou trabalhando pra trazer algo à tona sem pensar em fazer uma obra prima ou uma merda. Vou fazer o que, de alguma forma, no tempo que tiver disponível, possa ser, da forma mais honesta de trazer isso para o corpo possível. A tentativa sempre é de estabelecer um discurso claro para mim. Ele não deve explicar nada, mas também não deve esconder nada. Não vou fazer nada pra esconder, nada pra brilhar, nem nada pra fugir. Sou “poser” por natureza, então não vou fazer nada onde eu fique num cantinho, mas também não vou fazer nada para agradar o outro por que ele precisa me amar. Não quero nem que me amem, nem que me odeiem. Aliás, todo mundo quer ser amado. Mas eu quero ser amado por ser eu mesmo. Quero emergir nessa situação sempre que possível. Quero que aquilo aconteça por que é da natureza dos encontros e não da natureza das conspirações ou como seu eu estivesse me organizando para ser bem recebido.  É um desejo natural, humano, de você ser agradável ao outro. Isso inclui uma série de coisas, inclusive dinheiro. Quanto mais agradável você é, mais as pessoas vão querer te comprar, mais você vai ser feliz. E isso inclui você ter um carro com ar condicionando ou poder ir à praia a hora que você quiser e viajar e passear. Tá tudo certo, mas antes de tudo isso, quando você está trabalhando sozinho, tem uma série de questões que você precisa ouvir e resolver pra você mesmo. Então, se eu conseguir fazer do meu corpo um lugar honesto onde a aparência do meu discurso seja a qualidade de diálogo, ok, é isso. Comecei a dançar com 12 anos, vai fazer 30 anos que danço. É muito tempo. Então, às vezes você se perde entre o que é e o que não é. Preciso estar sempre me reavaliando sem, nostalgicamente, querer voltar para um estado de juventude, sem estar querendo rever a política do mundo e apresentar a coisa mais inovadora do não sei o que. É simplesmente fazer aquilo. Claro que você vai olhar para coisas que estão fazendo. Claro que algumas só são feitas por quem tem mais idade. Só alguém com 40 vai pode falar sobre os 40. Vejo pessoas mais velhas produzindo e vejo a importância disso. Só alguém com 80 vai falar sobre os 80, mas não só sobre os 80, mas o contexto do encontro com alguém de 20, 40, 80. E com a morte mais próxima, ou com a vida mais próxima, ou com o mover atrelado ao fim. A gente tem começo e tem fim. Até que me provem o contrário, de uma forma bem clara, uma hora você vai embora. Aos 40, você começa a descer uma ladeira. Isso não é mais dramático ou menos dramático. Isso é. Ok. Então isso surgiu e, de alguma maneira, me levou para o palco para, através disso, estabelecer um diálogo. Não sei o quanto isso vai ser surpreendente ou não. Sempre me preocupo com esse lugar, mas parto do que estou fazendo, do que comecei.

Santa Catarina discute a criação de um curso de dança, o Brasil vive um boom de cursos de dança, você trabalha com intérpretes que vêm de áreas distintas, como dança, teatro e arquitetura, entre outras. Quem pode ou não dançar?

O conhecimento pode ser acessado de acordo com as ferramentas que você tem enquanto cidadão e pessoa. O trânsito entre uma pessoa-cidadão, que é o que você pode acessar seja numa universidade, no ensino público, seja numa disponibilidade de conhecimento que o Estado fornece, seja na liberdade de alguém que pode andar e ver as coisas num país livre, seja ele o Congo ou outro qualquer. Não vejo uma formação exata ou, o que é uma formação. Lógico que os cursos só tendem a melhorar o panorama de tratar a dança como área do conhecimento. Na companhia, temos gente de diversos cursos e instituições. A academia é um lugar de produção de conhecimento. O ruim é quando você atrela essa produção de conhecimento a uma performance equivalente. Você estudar uma coisa é diferente de praticar, diferente de pesquisar. Produzir conhecimento e produzir objetos através de sua pesquisa também é outra coisa. Isso requer uma série de conexões interdisciplinares. Então, a formação em dança tem a ver com uma formação no mundo também: uma formação de pessoa, de cidadão, e, às vezes, de como você entende isso. Agora, acho importante a gente reconhecer o que é dança como uma área específica para que você também possa se aprofundar em questões que são da dança. Pois organizar movimento no tempo, com certa organização neural, é da dança. E ela consegue responder a algumas questões que a matemática não vai responder. Então, estudar isso, ter lugares para isso, centros de pesquisa sofisticados sobre essas questões, são mais do que bem vindos e válidos. A formação é da qualidade do entendimento, quanto mais vertical possível, mas também visto de uma forma horizontal. Você tem que olhar o todo horizontalmente e verticalizar naquilo que você sabe e perguntar sobre o que não sabe. Interessa-me, numa formação de companhia, as pessoas que questionam, que se interessem por um questionamento, que tenham um posicionamento crítico e, através dessa crítica, que sejam capazes de se auto organizar e ir buscar o que precisem nos momentos em que as lombadas aparecem. Se não tiver isso, se a pessoa esperar que a gente vá explicar isso, não vai dar certo. Se a pessoa também não estiver disponível… Às vezes a gente precisa estar no estado de obediência, não só no estado de questionamento. O estado de questionamento também é um estado de obediência, pois você também tem vazios. Um dos meus conceitos é “obedeça”: obedeça a você, obedeça à questão, obedeça à restrição que se aparece. Se você também só tem essa ideia neoliberal de liberdade como independência suprema, isso é a beira do envelhecimento sem saber. Por que quando chegar o tempo e ele te fizer refém de condições que você não vai ter, porque outra pessoa possa ter uma ideia de eficiência naquele momento, você não consegue superar aquilo. E aí você automaticamente se sente frustrado e faz do fracasso a sua identidade. Enquanto você está na crista da onda, transitória, da eficiência como ideia, você sobrevive. Mas depois não tem ferramentas para lidar com a falha, pois ela tem outra identidade que não aquela que a gente precisa trabalhar. Ela é tão equivalente ao sucesso quanto qualquer coisa. Ela vai existir junto. Você vai ter que estar trabalhando junto. Ela não é nem bom nem ruim. O sucesso não é nem bom, nem ruim. Os dois podem ser venenosos de acordo com o que você mistura. Esse equilíbrio entre conhecer, criticar e obedecer é o que procuro numa formação.