Graça / Foto: Samia Bittencourt

Alguns rumos possíveis

Cinco dias reunindo recortes e formatos diferentes de abordagens da dança contemporânea. Articulação entre grupos, fomento de público, renovação de repertório, encontros. A mostra Solos Contemporâneos – Alguns Rumos movimentou Caxias do Sul (RS) entre 23 e 28 de maio. Três trabalhos do Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010, em sua fase de Difusão, integraram o programa: O Que Antecede A Morte, de Marcos Klann, Como Superar o Grande Cansaço?, de Eduardo Fukushima, e Graça (foto), dirigido por Andréa Bardawil. Este é o primeiro dado significativo do encontro: inserir novamente Caxias do Sul no circuito da produção e circulação de espetáculos nacionais. Salvo algumas oportunidades pontuais, o público caxiense, que havia sido iniciado à linguagem contemporânea da dança nos primeiros anos de atuação da Cia. Municipal de Dança de Caxias, tem poucas oportunidades de contato com a produção atual da cena nacional.

Público para a dança contemporânea é um dilema recorrente. Em alguns dos debates mais acalorados de encontros de criadores, produtores e curadores, existem posições antagônicas. Há os que defendem a pesquisa sistemática, apresentação de processos e… mais pesquisa. Outros querem, tentam e buscam fruidores para suas questões artísticas e estéticas, seus pensamentos escritos corporalmente. No meio do caminho, há muita indagação. Os três trabalhos do Rumos Dança apresentados ao público caxiense ilustraram algumas opções.

Marcos Klann aproxima as ditas margens borradas entre dança e teatro para “encenar” dores corpóreas em busca de um novo estado deste suporte ancestral de experimentos, o corpo humano. Ao expor-se ao perigo, ganha atenção imediata da assistência. Há inquietação e incomodação na plateia, que oscila entre risos nervosos, estupefação, choro. Por este viés, o trabalho consegue comunicar, elaborar informações sensório-estéticas que instalam outras instâncias de percepções aos que o assistem em ações de flagelo. O que é possível questionar é a possibilidade desse processo ser ou não já mecanizado, numa “cena sobre” e não num “estado de”. Independentemente de solucionar este possível embate, há potência na pesquisa formatada em espetáculo.

Na performance de Eduardo Fukushima, cresce o ruído acionado pelo que é dançado no linóleo. Para além do que fica explícito ao fim dos 25 vigorosos minutos de movimentação, da exaustão como ignição de novas instâncias de linguagem para aquele corpo que ali dança, Como Superar o Grande Cansaço? tem a capacidade de incomodar. Depois de assistir ao trabalho, uma senhora atribuiu a condição de “saído do sanatório” a quem tinha selecionado tal obra para a mostra. Sinal do quanto instigante pode ser uma linguagem construída a partir da experimentação. A incomodação da espectadora é um viés significativo para falar de potência na dança. Fukushima se faz entendido quando aciona o que, em tese, é uma fala que lida com um certo desentendimento sobre aqueles recursos usados na e para a dança. Ao mesmo tempo, seu trabalho se faz alavanca para desencadear novas indagações. Vontade e potência, cansaço e viço, aquietação e incomodação.

No terceiro dos três trabalhos do Rumos mostrado em Caxias do Sul, o ambiente conversa de roda de amigos enriqueceu ainda mais a experiência de Andréa Bardawil e Maria das Graças, a Graça que empresta nome ao trabalho. Ao expor o processo de construção da obra, o encontro entre as duas, os diálogos e desafios partilhados, o trabalho arma sua primeira camada de significado. É por esta tônica confessional, dialógica que ganha o público, iniciado ou não nas nuances dos discursos e práticas contemporâneas para a dança. Claro que, com esse processo, Bardawil está propondo trocas, significações e ressignificações o tempo todo. Mas o faz sem pedantismo ou erudição exibicionista. E, no palco, Maria das Graças materializa isso em dança, entregando-se ao processo, admiravelmente desprovida de pudores. É o tal salto, o arrebatamento do intérprete diante do imponderável, acreditando no que vem depois disso. Mas a trama de percepções tem mais urdiduras.

Por lidar com o universo popular e, com ele, construir seu mote de cruzamento de linguagens, Graça aproxima-se daquele tipo de público que ainda vê nuances “lunáticas” em certos procedimentos da dança contemporânea, mas se entrega. Amplia, com isso, o campo de conversão com diferentes públicos. Ou, num viés contrário, reduz as distâncias entre os dois universos, abrindo espaços para novos e novos encontros. A obra tem, ainda, a capacidade de riscar o verniz do hermetismo que cerca muitos discursos e práticas da dança contemporânea. A simplicidade como eloquência é uma das tantas riquezas do trabalho.

Nos três recortes da cena contemporânea na dança brasileira, alguns rumos tomados pela mostra caxiense. O primeiro é o da aposta na diversidade, na perspectiva de promover múltiplos olhares, instigando uns, arrebatando outros, desafiando terceiros. Eis, ainda, a riqueza proporcionada por um programa como o Rumos, que investe em pesquisas e as faz chegar o resultado delas a diferentes cidades e espaços, renovando e oxigenando os ambientes culturais com estas informações. Por isso, o público caxiense pode ter se incomodado, se emocionado ou saído do teatro com muitos questionamentos. Mas certamente experimentou três momentos distintos e, no mínimo, renovadores de seu repertório para o gênero.

Mas as provocações artísticas e estéticas não ficaram nas três obras citadas. Quando Cláudia Müller entregou danças a domicílio, deixou mais dúvidas do que certezas a quem as recebeu – um professor e diretor de teatro aposentado, uma executiva de marketing, uma cozinheira do restaurante comunitário e uma jovem trupe produtores de cinema. O projeto Dança Contemporânea em Domicílio, que Cláudia vem desenvolvendo há anos, subverte narrativas, acionando outras estratégias de atuação na dança. Trata-se de uma escolha estética e política, oxigenando novamente os campos de conceituação da dança, investindo também nas margens borradas, que promovem aproximações e pertinências entre gêneros artísticos. Ao bater à porta oferecendo uma dança e falando sobre os lugares dessa arte, o trabalho do artista e as condições de desenvolvê-lo – explicitando o dilema recorrente entre a arte como “missão”, portanto, gratuita, ou trabalho que precisa ser pago para pode ser desenvolvido –, a ação fala dos novos lugares da dança, das condições de existência da arte e, ainda mais, sobre estratégias e possibilidades de encontro com o público. Um movimento que se aproxima e reforça o conceitualismo, perguntando-se sobre a natureza da arte e, ao mesmo tempo, reinventando novos conceitos para ela. Além das entregas de dança, Cláudia Müller também comandou a oficina Corpos, Poéticas e Política, reunindo bailarinos e coreógrafos de Caxias e região. Acionou, também neste encontro, novas questões e sobre a dança contemporânea e sua atuação.

A mostra caxiense também foi palco de um encontro significativo entre a Cia. Municipal de Dança e os integrantes do Grupo ArticulAções, do Núcleo de Pesquisa de Ciências e Artes do Movimento Humano, da Universidade de Caxias do Sul (UCS). As duas formações apresentaram Interfaces2. Coreografada por Ney Moraes, a obra dá continuidade à proposta de trabalho de Moraes, que investiga as possibilidades de construção de movimentos no corpo humano. Juntos, os dois grupos investiram na experimentação de uma escrita corporal conjunta e, ao mesmo tempo, em paralelo. O trabalho deve ser entendido, portanto, como uma etapa de pesquisa em andamento, não como obra finalizada.

Seguem por este viés outras experiências da dança contemporânea produzida em Caxias do Sul. Embora novamente embrionária, dado o refluxo de produção e experiências irradiadoras de novos formatos, a cena local oscila entre apostas de virtuosismo corporal com arroubos herméticos gratuitos, ou construções mais articuladas, produtos da busca de um pensamento elaborado a partir de propostas pesquisa. O que resultará como mecanismo de evolução da cena local só virá com o tempo, com o diálogo entre um e outro movimento.

Um fragmento da opção que une indagações estéticas e elaboração artística pode ser visto no trabalho Florescer, da bailarina Cristina Lisot, que integrou o programa da mostra. Partindo de sua pesquisa em torno do figurino para a dança, desenvolvida na especialização Corpo e Cultura – Ensino e Criação, na UCS, Cristina constroi uma delicada aproximação entre questões íntimas sobre o dançar e o corpo que enverga uma dança. Consegue fazer dessas indagações pessoais uma trama delicada de possibilidades ainda a serem investigadas. O trabalho é composto basicamente por um vídeo projetado no palco, que tem camadas finas de gaze, numa espécie de filtro/tela. Nele vemos a bailarina em ensaios de sala e também circulando por espaços urbanos, usando um longo vestido branco e, na cabeça, vistoso arranjo de flores. A mesma figura vai aparecer no palco, revelada por frames de luz. Essa talvez seja a imagem mais potente do trabalho, num diálogo entre excesso de movimentos e a ausência deles, da sôfrega busca por um movimento, quando o “não-movimento” pode ser dizer mais. Aí talvez esteja a nuance do que brota com mais eloquência dos incontáveis ensaios daquilo que, ao fim, um criador leva à cena. Bailarina da Cia. Municipal de Dança, onde também atua, Cristina costura e tinge sua dança de um colorido profundo, ainda que envolvo em luz gris e fumaça. As flores que restam suspensas e sozinhas no palco, ao fim do trabalho, pedem novos sopros inspiradores para polinizar novas danças, novos floresceres.

A mostra Solos Contemporâneos – Alguns Rumos apontou possíveis caminhos para a dança caxiense. Primeiro, o fato de reunir, em três noites, público disposto a conversar sobre o que viu. Outra constatação é a benvinda construção de parcerias entre ações privadas e públicas com programas de cultura nacionais – caso do Rumos Dança, do Itaú Cultural. Num bate-papo informal realizado no último dia da mostra, reunindo a curadora do Rumos, Sonia Sobral, as coreógrafas Andréa Bardawil e Sigrid Nora, a diretora da Cia. Municipal caxiense, Cristina Calcanhoto, mais um grupo de bailarinos, coreógrafos e produtores locais, festejou-se esta possibilidade de descentralização dos encontros, conversas e mostras de trabalhos.

Na última noite, após a apresentação de Graça, Andréa Bardawil conclamou novamente a conversa, o diálogo, as trocas de impressões e expressões. Neste momento, Maria das Graças falou de vocábulos da dança. É que, para ela, qualquer apresentação é show. Diferente da nomenclatura recorrente na dança contemporânea. Entre risos descontraídos, afetivos mesmo, ficou claro para todos que, mesmo entre distâncias, há aproximações. É o que, num pequeno recorte, a mostra caxiense, ainda incipiente, conseguiu fazer: aproximou formações locais, trouxe discursos diferentes elaborados em dança pelo Brasil, instigou o público, gerando novas conversas. Ensaiou um primeiro passo para novos encontros. Outros rumos, é claro, serão possíveis, com a dança produzindo e instigando pensamentos em ambientes de arte.

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