Alkantara Festival: Sejamos dignos dos nossos sonhos

O idanca.net estabeleceu uma parceria com a revista portuguesa Obscena, dedicada às artes performativas. Para abrir os trabalhos, publicamos o texto de Tiago Bartolomeu Costa, diretor da revista, que faz uma reflxão sobre a programação do Alkantara Festival, que acontece 22 de maio a 8 de junho. A revista está disponível para download em pdf no site, clique aqui.

Quisemos olhar para a programação proposta pelo Alkantara Festival fazendo-lhe perguntas. Perguntas algumas delas sem resposta e que partem, assumidamente, de dúvidas que queremos ver respondidas e não se relacionam directamente com os espectáculos. Antes partem deles, e a eles regressam, num vaivém discursivo que entende o binómio criação reflexão como motor de um mundo mais actuante, menos conformado, mais empenhado. Olhámos e quisemos sempre perguntar mais: o que é isto que nos caracteriza e encerra numa fronteira geográfica? Poderemos transferir esse limite para uma fronteira artística? E até onde se pode ir com um espectáculo, se o entendermos nessa óptica de actor político? Até onde se pode ir politicamente? E nesse gesto que produzirá consequências, como dialogamos com o outro? Com aquele que olhamos e nos olha, querendo saber porque impomos as regras e os códigos e as normas numa área que vive, fundamentalmente, de partilhas? E depois, como comunicar tudo isto? Isto da arte, isto da política, isto da sociedade, isto da vida, isto do mundo? O mapa que traçamos para este festival que quer fazer do mundo um palco, é só o nosso mapa, esperando que, quem o quiser usar, nos possa ajudar a fazer ainda mais perguntas.

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Eu sou o sistema

A metáfora é do coreógrafo Miguel Pereira e serve bem para ilustrar a cena contemporânea nacional: um território selvagem onde foi construída uma cidade e que, com o passar dos anos, está a ser engolida por essa selva. Miguel Pereira, que no Alkantara Festival apresenta, em estreia mundial, a peça Duo (5 a 7 de Junho, Centro Cultural de Belém), sente-se permanentemente em transição entre a inquietação constante de quem cria num território avesso à definição e a necessidade de encontrar uma qualquer acalmia que lhe permita compreender melhor qual o seu lugar no contexto criativo português. Não é que esta seja a sua questão primordial, mas é uma recorrente quando se fala dos criadores portugueses. Há anos que é assim e, de cada vez que alguém tenta ultrapassar a fronteira do reconhecível há sempre uma voz que pergunta: “tu és de Portugal? E lá fazem o quê?”.

Poderá parecer estranho que mais de vinte anos depois do surgimento da geração que fez a Nova Dança Portuguesa (NDP) e quase dez desde que vários projectos, na altura marginais, ascenderam à categoria de estruturas sustentadas por programas de apoio plurianuais pelo Ministério da Cultura (através do Instituto Português de Artes e Espectáculos, depois Instituto das Artes, agora Direcção-Geral das Artes), ainda se sinta necessidade de travar a selva. Programadores, criadores, crítica e público não se entendem no que pode ser já uma instituição, uma novidade, um artista em trânsito, um emergente ou um excluído. “Eu sou o sistema”, resume Pedro Penim, do colectivo Teatro Praga que regressa ao Alkantara com Conservatório (23 a 29 de Maio, Armazém do Hospital Miguel Bombarda).

Esta afirmação, plena de assertividade e devedora de uma frase clara do artista plástico italiano Maurizio Cattellan – “também quero uma fatia do bolo” – assume contornos de statement quando olhamos para os artistas portugueses programados, seja em regime de estreia mundial, nacional, reposição, produção ou co-produção e acolhimento, na edição 2008 do Alkantara. A saber, e por data de apresentação: Teatro Praga, Tiago Rodrigues (27 a 30 de Maio, Yesterday’s Man, Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, trabalho co-assinado com o encenador libanês Rabih Mroué), Cláudia Dias (29 a 31 de Maio das coisas nascem coisas, Teatro da Politécnica), Filipa Francisco (30 de Maio a 1 de Junho, Íman, co-assinado com o grupo Wonderfull’s Kova M), Patrícia Portela (31 de Maio a 3 de Junho, Banquete, Palácio da Ajuda), Vera Mantero (1 e 2 de Junho, Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza…, Espaço da Mitra), Clara Andermatt (3 e 4 de Junho, Meu Céu, Castelo de São Jorge), Tiago Guedes (5 e 6 de Junho, Coisas Maravilhosas, Culturgest), Miguel Pereira e Projecto Teatral (7 e 8 de Junho, Lion Noir, São Luiz Teatro Municipal). A estes nomes juntam-se os de Pedro Carraca e Cláudia Gaiolas que apresentarão a primeira fase do longo processo de encenação de Crimes Exemplares, de Max Aub, com actores não profissionais residentes no Bairro do Alto da Cova da Moura (onde Filipa Francisco também criou a sua peça). Todos eles são parte integrada do sistema e representam, para o bem e para o mal, uns mais e outros menos, uma das razões pelas quais alguns programadores e críticos contactados pela OBSCENA se deslocarão a Lisboa entre 22 de Maio e 8 de Junho: “vamos ver os portugueses”, disse-nos uma programadora inglesa. Cláudia Dias diz que se irrita com “esta coisa de ser vista como ‘a portuguesa'” porque “há sempre um olhar sobre o exótico”. Esta ideia colou-se, há anos, à criação nacional supostamente colada à imagem de “um país periféric e mais pobre”, diz a coreógrafa que com das coisas nascem coisas assina um dueto, interpretado por Márcia Lança e Rui Silveira. Miguel Pereira conta-nos que, em conversa com amigos bailarinos residentes em Berlim, quando confrontados com a necessidade de desenvolveram essa ideia de “estranheza” causada pela criação nacional, disseram apenas “ser muito própria” e “ter qualquer coisa de diferente”. Tiago Guedes, que no fim de três anos como artista associado de um teatro no norte de França, o Le Vivat, em Armentiéres, perto de Lille, apresentou uma carta branca com artistas nacionais (Vera Mantero, Teatro Praga, Inês Jacques e Projecto Teatral), escolhidos a partir, sublinha, “de laços estético-emotivos”, chega mesmo a dizer que o máximo de diferença que lhe souberam explicar foi “não serem feitos por franceses”. Logo, fora dos esquemas tradicionais e expectáveis para os padrões locais. Mas que significará isso exactamente? Guedes, que no Alkantara faz a estreia nacional da peça Coisas Maravilhosas, estreada e Fevereiro e já apresentada em Paris, diz que “não sabe”. Miguel Pereira fala de “um denominador comum que não utiliza o vocabulário da dança mas outras formas de explorar outras disciplinas”.

Já Vera Mantero, que repõe em Lisboa Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza…, peça estreada em 2006 na Culturgest que dividiu público, crítica e colegas de profissão por ir mais longe na afirmação de um discurso sobre o acto de fazer, é de guerra que fala, numa entrevista inédita a Mónica Guerreiro: “Uma vez, o José Gil perguntou-me uma coisa que me marcou imenso: ‘ó Vera, qual foi a sua guerra? Você parece ter passado por alguma guerra’. Isto já foi há muitos anos… E eu dizia-lhe: ‘mas qual guerra?!’, sem perceber. Ele explicou-me: ‘você faz coisas que têm a ver com artistas que passaram pelas grandes guerras, você parece ter respostas que estão próximas das respostas dos artistas que trabalharam em reacção a isso’. Nunca mais me esqueci desta sua observação”. Clara Andermatt, que ocupa o Castelo de São Jorge com Meu Céu, criação que estreia a 15 de Maio no Festival Imaginarius, em Santa Maria da Feira, e que reúne idosos, jovens praticantes de parkour, música de João Lucas e Vítor Rua, e interpretações da encenadora e actriz Lúcia Sigalho, e dos bailarinos e coreógrafos Luís Guerra e Tânia Carvalho, percebe-a bem porque, tal como Vera Mantero, esteve lá, na formação do movimento da Nova Dança Portuguesa. Diz: “quando éramos miúdos tivemos que ir para fora [Nova Iorque, Bélgica, França foram alguns dos destinos] e isso deu-nos força para andarmos com a casa às costas”. Mas hoje, confessa, sente-se “presa”.

Repetirá várias vezes ao longo da conversa a expressão inglesa stuck. Miguel Pereira também lá esteve, tal como Filipa Francisco, ou porque foi mais tardia a sua revelação como criadores, ou porque nunca se preocuparam em saber a que família deveriam pertencer, integram uma faixa a que Clara Andermatt chama “a geração entalada”. Pereira diz que já “não tem idade ou paciência para o discurso do enfant terrible”, que vários tentaram colar-lhe. Tiago Guedes diz, apesar de tudo, que “é preferível falar em famílias” do que em escola ou herança da Nova Dança Portuguesa. E que essa família pode “muito bem” ser composta por coreógrafos de vários países, ligados por um só espectáculo ou uma associação de ideias que lhes é alheia. Pedro Penim gostaria dessa ideia, ele a quem já lhe começaram a falar, e não especificamente dirigido à realidade nacional, de um “novo teatro”, que significaria “algo que não é feito nos moldes tradicionais, delimitando uma nova fronteira exclusiva”. Não houve para o teatro o que houve para a dança portuguesa. E quando lhe perguntamos se consegue encontrar parceiros, diz que trabalha com eles. O núcleo de colaboradores do Teatro Praga, ao qual se juntou recentemente o dramaturgo José Maria Vieira Mendes, forma aquilo que Penim apelida de “o meu gang”. “Vale a pena escolher, porque temos que excluir, limitar o teu espaço, o teu círculo, o teu público”. Tiago Guedes fala de “famílias sem território”. Pedro Penim quer “ultrapassar as fronteiras geradas para criar menos generalistas e mais exclusivas”. “Deve haver um despudor e devem criar-se coisas elitistas”, assume. E radicaliza: “em nome de uma suposta abertura de espírito, sem quererem excluir, já se cometeram muitas atrocidades artísticas”.

Tiago Rodrigues, cuja obra Yesterday’s Man integrou um outro projecto do Alkantara, “Sites of Imagination”, que juntou, em Outubro passado, espectáculos produzidos por estruturas sedeadas em Lisboa (Alkantara), Girona, Espanha (L’animal à l’esquena), Marselha, França (l’officina), Cagliari, Itália (Carovana) e Ljubjana, Eslovénia (Bunker), fazia fé, numa entrevista publicada em Julho de 2007 na revista dos Artistas Unidos, a um tecido cultural onde “há uma espécie de colaboração constante, de solidez entre companhias e universos – que pode ser reforçada”. E acrescentava: “Não acho que padeçamos nada de estarmos demasiado fechados no nosso cantinho, não podemos é cair na tentação de sobreviver, de nos acomodarmos ou tentar fazer parte de uma espécie de poder, de quem controla as políticas sociais ou está muito próximo delas”. Pedro Penim refuta esta ideia de aparente marginalidade: “o Teatro Praga é muito engagé e sistémico. Nunca tivemos a pretensão de ser um projecto desalinhado”. Parece – porque é – absolutamente natural que sejam cada vez mais frequentes as co-produções com espaços institucionais que absorvem o que estava nas margens. Nos últimos dois anos o Teatro Praga produziu peças apresentadas no Teatro Nacional D. Maria II (*****), Teatro Nacional S. João e Centro Cultural de Belém (Avarento ou a Última Festa), Culturgest e Festival de Teatro de Almada (Agatha Christie), Alkantara (Discotheater), Maria Matos Teatro Municipal (Hamlet sou eu) e São Luiz Teatro Municipal (Turbo-folk), e será natural perguntar se esta passagem por grandes instituições moldou o discurso da companhia. Resposta pronta: “em alguns espectáculos isso é mais evidente que em outros, por se tratar de uma encomenda [como foi Turbo-folk, do São Luiz]. Entras numa lógica de programação que não é a tua. O que não significa que não tenhamos independência nem que não façamos o que queremos”. Penim diz mesmo que este Conservatório está “a ser pensado especificamente para o Alkantara, mas houve sempre uma reflexão sobre o espaço e o contexto onde o espectáculo seria apresentado”. Para quem achava que Turbo-folk fazia figura de ovni na programação gizada por Jorge Salavisa para pensar o Ano Internacional para o Diálogo Intercultural, que este ano se assinala, Penim responde com “a vontade de criar objectos mais disruptivos em relação a uma ordem estabelecida”. E alerta: “entras no sistema e beneficias dele. Mas também sofres as consequências dos aspectos mais negativos. As coisas estão completamente interligadas”. Um desses aspectos negativos, para Cláudia Dias, é “actuar para burgueses”. Diz, num misto de lamento e resignação: “posso não ser burguesa mas acedo a esse meio. Irrita-me ter um público especializado”. Implicada politicamente – esteve recentemente envolvida, através do Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo, e com o grupo parlamentar do Partido Comunista, a elaborar o projecto de lei para o estatuto do artista, ultrapassado pela proposta desfasada, mas aprovada, do Partido Socialista – foi, aos poucos, consciencializando, por mais ingénuo que possa parecer, que “não [se sente] a mudar o mundo. Aquilo que faço, faço-o por necessidade”. “Durante anos vivi com a ideia de uma dança de intervenção, e de que a arte podia transformar o mundo no tempo imediato, em vez de por ciclos. Mas o teu tempo não corresponde ao tempo da história”.A criadores como Cláudia Dias e Tiago Guedes será sempre inevitável um enquadramento sócio-cultural mais lato e que inclua, evidentemente, a relação com a geração anterior. Ambos viram o seu trabalho crescer em visibilidade e condições estruturais através dos trilhos feitos pelos “mais velhos”, no caso, e sobretudo, por João Fiadeiro. Cláudia Dias é, aliás, seguidora do método de Composição em Tempo Real, criado por aquele coreógrafo. Mas nenhum deles faz mais do que reconhecer a importância dos que já cá estavam. Cláudia diz mesmo que “se não fossem estes eram outros”. E Miguel Pereira, que faz parte da “geração entalada”, diz que “há hoje uma coisa identitária, de procura de um caminho que não está dependente da ‘mini-tradição’ [iniciada pela NDP], mas antes a criar o seu próprio percurso”. Tiago Guedes falará mesmo de “perceberes as regras e jogares com isso ou não”. Clara Andermatt confessa que nunca teve um “perfil reivindicativo” e que, com o tempo, descobriu que “o papel que cabe a cada um é a importância de termos consciência de qual pode ser esse nosso papel”. É o mesmo que diz Pedro Penim quando inadvertidamente lhe perguntamos se é feliz a criar em Portugal (pergunta, reconhecemos, que é em si mesma absurda). A resposta demora, o performer respira fundo, reflecte e acaba por confessar: “nessa lógica de posicionamento, a primeira queixa que tenho é de mim próprio. Até chegar ao meu país, tenho que conseguir lidar com o que tenho para oferecer a mim mesmo”.

Podemos pensar no caso de Patrícia Portela, que por razões de agenda não pode participar na sessão fotográfica que organizámos para este número. A sua criação, Banquete [leia a crítica na OBSCENA #8], chega a Portugal largos meses depois da sua estreia em Ghent, na Bélgica, onde Patrícia vive há vários anos, tendo sido co-produzida pelo Victoria, o mais importante teatro da parte flamenga do país. Portela sempre se confrontou com a dificuldade de classificação – teatro, dança – dependente dos circuitos que percorria Europa fora. Na verdade, o seu teatro acaba por radicar muito mais numa reflexão sobre a confluência disciplinar – definição muito menos abstracta que a transdisciplinaridade -, do que propriamente centrado numa pesquisa sobre os limites de uma determinada disciplina. Banquete, que envolve um grupo de actores que preparam uma refeição (no que parece, curiosa e provavelmente inconscientemente, um novo filão dramatúrgico), interliga naturalmente o texto de Platão com a performatividade do quotidiano – essa sim uma das temáticas centrais do seu trabalho.Indefinição é também o que está presente em Íman, poderoso retrato poético que Filipa Francisco assina, humilde e reconhecidamente, com o grupo de intérpretes que constituem as Wonderfull’s Kova M. Mais do que um projecto social e/ou comunitário, Íman ultrapassa os preconceitos que podem surgir em relação a uma peça ancorada num bairro problemático como o do Alto da Cova da Moura, no concelho da Amadora. Filipa, numa conversa que se seguiu à primeira apresentação no bairro – “um presente e um agradecimento”, confessaram, todas, orgulhosas e com razão para isso -, explicou que lhes deu “margem para trabalhar”, aproveitando (a coreógrafa prefere o termo “organizando”) “o que de melhor têm: serem corpos sem experiência”. Na fase em que vimos a peça, quase dois meses antes da sua apresentação no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, era notório que não estávamos perante um trabalho meramente ocupacional. Nos rostos daquelas oito (sim, dizemo-lo) bailarinas, estava a força da arbitrariedade que caracteriza a criação portuguesa. Como diria Clara Andermat a propósito da sua peça, também ela feita com não-profissionais – reflexão que poderíamos estender ao projecto de Pedro Carraca e Cláudia Gaiolas, que só em Novembro terá uma apresentação final – uma conjugação de diversos elementos, plenos de “uma certa espiritualidade [onde] há mais acção e intervenção na aceitação das diferenças”. Regresse-se à metáfora inicial de Miguel Pereira, que serve bem de exemplo para os atalhos pelos quais se foi desenhando a criação nacional. Diz o coreógrafo que “tu constróis outro a partir de ti próprio”

Tiago Bartolomeu Costa é crítico de artes peformáticas residente em Lisboa, Portugal, onde edita a revista OBSCENA. É colunista do idanca.net e colabora com as publicações Mouvement (França), Ballettanz (Alemanha).