sobreVIVENTES / Foto divulgação

Ambientes da dança

O jornalista e crítico de dança Carlinhos Santos é um dos novos colunistas do idança. Ao longo do ano, ele irá abastecer o portal com suas reflexões, observações, e também com notícias sobre o que vem sendo produzido em Caxias do Sul (RS). Abaixo, sua coluna de estreia.

Pensando na dança como um fluxo constante de trocas entre seus intérpretes e o contexto em que vivem, parto disso para inaugurar, neste espaço, muitos diálogos. E como partidas se fazem desde um lugar, começo falando sobre meu entorno, meu espaço de atuação, dividindo o olhar com os demais interessados nos contextos da dança contemporânea brasileira. Desde 2003, atuo em Caxias do Sul, serra gaúcha, onde, aqui chegando, deparei-me com uma experiência significativa no contexto da produção coreográfica brasileira, a Cia. Municipal de Dança de Caxias do Sul.

Criada pelo poder Legislativo caxiense em julho de 1997 e vinculada à Secretaria Municipal de Cultura, desde o início a Cia. Municipal constituiu-se com as finalidades de resgatar e cultivar, através da dança, as manifestações artístico-culturais como forma de expressão; desenvolver e divulgar a cultura e a capacidade artística local; gerar oportunidades, através de espetáculos e mostras, de educar, entreter e desenvolver o gosto e a apreciação por esta manifestação artística.

Uma das características que a marcaram em sua origem foi a reunião de intérpretes com informações e trajetórias diferentes. Assim, constituíram seu corpo de baile integrantes vindos do teatro, da capoeira, do basquete, da dança de salão e do balé clássico de repertório. Também havia os que não tinham experiência ou habilidades corporais nesta área. Neste grupo heterogêneo, a meta foi trabalhar com uma linguagem específica, que congregasse estes saberes diferentes, trabalhando com especificidades próprias, sem uma homogeneização de linguagem.

Dentro deste contexto, a Cia. Municipal de Dança focava a disponibilidade corporal de cada intérprete, sem estar preocupada com o desempenho físico de resultados. A meta foi justamente trabalhar com os conhecimentos e saberes de várias áreas, congregando-os num novo artístico. Um projeto artístico-educativo que se adaptou ao contexto conjuntural, elaborando experiências a partir dele. Registre-se, significativamente, que a companhia agregou em sua identidade o dado histórico da colonização, marca de formação da cidade e região, aglutinando um grupo de trabalho cujas características da miscigenação, do multiculturalismo e da multiplicidade foram, também, seus alicerces.

Atenta ainda ao processo de crescimento cultural, e visando não só o produto cultural em si, mas também a educação e formação, a Cia. apostou na descentralização cultural e na área do conhecimento sistematizado, através da implantação e manutenção da Escola Preparatória de Dança (EPD). Estas ações oportunizaram e desenvolveram potencialidades entre corpos com disponibilidade à dança.

Com este perfil, a Cia. Municipal de Dança buscou inserir-se na contemporaneidade, privilegiando os processos criativos com base na investigação e experimentação, e apostando na fusão de linguagens e na valorização dos intérpretes locais. Tal trajetória levou-a à conquista do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2003. No ano seguinte, com a mudança da gestão política da prefeitura, o projeto da Cia. Municipal sofreu diversos baques. Foram afastados nomes fundamentais, responsáveis pela articulação do pensamento artístico que manteve o grupo unido. Decorrência disso, houve em seguida uma diáspora dos bailarinos. Alguns passaram a atuar de forma independente na cidade, criando grupos como a Cia. Matheus Brusa ou a escola Ballroom, do bailarino e coreógrafo Giovani Monteiro, outros buscaram espaço em companhias nacionais, como a Lia Rodrigues Companhia de Danças.

Entre 2004 e 2010, o processo de manutenção da formação foi instável. Mudanças de direção, de coreógrafos e a constante alteração dos integrantes do corpo de baile deixaram a formação à deriva do devir. Noutras frentes, pensamentos sobre arte e movimento se articularam. Na Universidade de Caxias do Sul, em 2008, foi desenvolvida a primeira edição da especialização Corpo e Cultura – Ensino e Criação, focando o pensamento em torno das potencialidade do corpo como matriz e motriz de produção de arte, cultura e conhecimento. À frente desta iniciativa, Sigrid Nora, coreógrafa fundadora da Cia. Municipal e incansável articuladora de muitas frentes de atuação da dança contemporânea em Caxias do Sul e Brasil afora.

Sigrid, o coreógrafo Ney Moraes e Verónica Zevallos, ex-primeira bailarina do Ballet Equatoriano de Câmara, voltam à atuar com a Cia. Municipal de Caxias em 2011. E esta é uma volta para lá de significativa, que ocorre sintomaticamente, no momento que a Cia. está em cartaz (dias 16 e 17, 29, 30 e 31 deste mês) com a obra sobreVIVENTES. Concebida pela coreógrafa Daggi Dornelles, a peça é um híbrido de dança que dialoga com a fotografia. Imagens da coreografia serviram de suporte para a exposição Kit de Sobrevivência, com imagens do fotógrafo Frank Jeske e experimentações visuais de Jorge Soledar. O trabalho é particularmente significativo por mostrar, igualmente, o desenvolvimento de uma pesquisa da bailarina Cristina Lisot em torno de figurino. Integrante da primeira turma da especialização Corpo e Cultura, com uma pesquisa em torno da tríade corpo, dança e figurino, Cristina tem focado suas pesquisas na criação de “usáveis” para a cena. Neste trabalho, o figurino foi todo elaborado a partir de peças e materiais catados no lixo.

Sobrevivemos até aqui e, agora, é hora de retomadas. Mas isso só é possível graças ao que se pode chamar de ambiente, de contexto favorável a revisões. Neste aspecto, registre-se, a articulação da atual diretora da formação, Cristina Nora Galcagnotto, é importante. Por isso, o ano se anuncia, vamos lá, auspicioso!

Sigrid Nora, que criou e dirigiu a companhia nos primeiros oito anos, e o coreógrafo Ney Moraes, também da formação original e que deixou o grupo em 2006, retornam à formação para ações diferentes. Moraes vai trabalhar com a técnica boby motion, recorrente em seus procedimentos coreográficos. Sigrid deverá dirigir um solo, duo ou mesmo um trio para a companhia e, na coordenação do Grupo Articulações, do Programa de Ciência e Artes do Corpo, da Universidade de Caxias do Sul, desenvolverá em parceria com a Cia. um projeto de dança aérea. A técnica foi usada na montagem de Três Partes Y Una Pared, da coreógrafa argentina Brenda Angiel, que a companhia estreou em julho de 2003. Usando cordas para suspender os bailarinos, tendo uma parede como base para seus voos coreográficos, até hoje a montagem é tida como um dos grandes momentos da companhia caxiense na cena contemporânea brasileira. A ideia é retomar aqueles movimentos com os equipamentos já existentes no acervo da Cia., integrando os bailarinos das duas formações, com a possibilidade de apresentações conjuntas ou separadas.

A troca de experiências, de conhecimentos, de profissionais e de modos de fazer é o que permite investir nas relações possíveis entre ambientes de produção de conhecimento e que, da mesma forma, articula esta “volta”. Ao mesmo tempo, o ambiente da dança contemporânea caxiense se mostra produtivo noutra faceta. Dentre os seis projetos da área de dança selecionados na segunda edição do Financiarte (Financiamento de Arte e Cultura), fundo municipal destinado ao fomento da produção local, cinco focam a dança contemporânea e suas variações. São eles:

Corpos Possíveis: discursos à margem, da coreógrafa Gislaine Sachet, que passou pela Cia. e atualmente mantém a 4ª Parede Cia de Dança e é professora universitária, Dança Arterior, de Juliana Martini Camazzola, Protótipos, de Marcos Paulo Pozzer, Ident(idade), do Ney Moraes Grupo de Dança, e Estampas da Memória: a dança de um lugar, de Sigrid Nora. Neste último projeto, outra palavra potente: memória é, de fato, a articulação de passado e presente, mobilizando corpos que dançam no aqui e agora, alentando um futuro possível para a dança contemporânea caxiense.

Carlinhos Santos é historiador, jornalista, crítico de dança, especialista em Corpo e Cultura: Ensino e Criação pela Universidade de Caxias do Sul e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação (UCS). Também é titular da coluna 3por4, do Jornal Pioneiro, em Caxias do Sul, RS.

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