Arte: um bem simbólico | Art: a symbolic good

Apresentação da tese:

A tese de onde saiu este trecho está em andamento no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sua linha de pesquisa é em Poéticas Visuais Performance.

PODER SIMBÓLICO, CAMPO E HABITUS NA ARTE

O poder simbólico surge como todo poder que consegue impor significações e impô-las como legítimas. Os símbolos afirmam-se, assim, como instrumentos de integração social, tornando possível a reprodução de uma certa ordem estabelecida. No caso do sistema das artes, o que irá definir esse conceito é justamente o que se legitima. Aí entram outras questões: quem legitima? Sob a luz de quais critérios (e/ou interesses)? Em possíveis respostas a essas questões, o sistema das artes não se define somente através do clássico esquema emissor – obra – receptor; sua estrutura está calcada não apenas no mero fazer (pelo artista) e apreciar [pelo(s) público(s)]. Nessa relação primária de emissão e recepção estão imbricados todos os atravessadores que serão responsáveis pela circulação do feito. Para que seja possível esta circulação é necessário que haja pessoas interessadas (e interesses) naquela espécie de feitura (algum objeto feito sob a intencionalidade de ser obra). É necessário um espaço para veicular a obra; em um espaço há sempre marcas a delimitarem suas fronteiras. Acordos são necessários. Mas, tais acordos, nem sempre estão explícitos aos olhares ingênuos. Há uma certa crença, ainda, de que as obras se estabelecem ‘lépidas e belas’ para serem vistas; que existe uma aura de magia a circundá-las e, por isso, conclamam os olhares e se legitimam.

O campo surge como uma configuração de relações socialmente distribuídas, através das diversas formas de capital; no caso da arte – no foco desse estudo, o capital simbólico. Os agentes participantes em cada campo são munidos com as capacidades adequadas ao desempenho das funções e à prática das lutas que o atravessam. As relações existentes no interior de cada campo definem-se objetivamente, independentemente da consciência humana (aí a razão da terminologia optar pela palavra agente para designar um sujeito). E é na estrutura objetiva do campo (hierarquia de posições, tradições, instituições e história) que os indivíduos adquirem um corpo de disposições, que lhes permitem agir de acordo com as possibilidades existentes no interior dessa estrutura objetiva: o habitus. Desta forma, o habitus funciona como uma força conservadora no interior da ordem social. Isso se estende aos outros sistemas, uma vez que se criam, regulam-se e se dispõem em função do estabelecido.

Se Pierre Bourdieu denomina o seu sujeito de agente, poder-se-á pensar que era um descrente em termos de qualquer possibilidade de autonomia atribuída ao indivíduo… Mas, ciente do histórico do autor, acredita-se que, através dos conceitos desenvolvidos em seus escritos, talvez tenha tentado responder à pergunta: Qual o papel do indivíduo dentro do sistema social?. Quer-se crer que esses estudos, recorrentes na teoria do autor, tenham sido uma tentativa de encontrar e delinear margens de liberdade possíveis para esse indivíduo, em relação aos mecanismos de uma sociedade que o fabrica e, ao mesmo tempo, o encerra. Para o sistema das artes argüi-se: qual o papel do artista? Seria o artista um mero agente dentro do seu campo?

Percebe-se, enfim, que o valor de qualquer sujeito ou qualquer objeto que se coloca dentro de uma estrutura só será definido pelas relações que se estabelecem com o campo e com o habitus; a partir daí institui-se o que se pode chamar de jogo de poder simbólico; são as peças que não cessam de permutar valores. Valores que se (re)definem a todo instante, em acordo à posição do sujeito (agente), em acordo à posição do objeto.

O ARTISTA (AGENTE) SOBRE-VIVE EM UM SISTEMA

Ao estabelecer o objeto desse estudo – de fazer uma analogia com a arte – o agente em questão seria o artista que estaria situado em seu campo (a comunidade de seus pares contemporâneos). Nesse campo estaria inculcado tradições e rupturas referentes às peculiaridades do conjunto de valores do próprio sistema das artes, bem como dos fatores históricos e sociais – oriundos do sistema social; o qual, inevitavelmente, terá relação com as outras estruturas.

A sociedade, como um sistema de estruturas, se organiza em acordo às posições e valores de seus componentes, adquiridos no funcionamento do sistema. Constitui-se num arcabouço rico em significações a serem decifradas em suas relações constitutivas de poder e da perpetuação desse poder, juntamente com seu histórico de rupturas de conceitos e domínios estabelecidos.

Na parte de sua teoria, em que se dedica à construção do objeto sociológico, Bourdieu pontua dois pensamentos de outros autores; começa pela frase de Saussure o ponto de vista cria o objeto e prossegue com a de Marx para quem a totalidade concreta enquanto totalidade pensada, concreto pensado, é na verdade um produto do pensamento, do ato de conceber.

Se o ponto de vista cria o objeto, dada a relatividade das coisas, É óbvio que a força explicativa das proposições de tipo estrutural varia consideravelmente de acordo com as posições das classes sociais às quais são aplicadas (3). Segue-se o raciocínio em relação ao sistema das artes e ressalta-se um fato: para que se institua o sistema em questão é necessário que se tenham obras, além de todos atravessadores indispensáveis. Se o poder simbólico no sistema das artes se impõe pelo que se legitima, sugere-se o seguinte pensar – quanto à legitimidade de uma obra de arte: 1) Espaço – Onde está inserida? 2) Aspecto curatorial – Quem a inseriu? 3) Por quais razões? (buscar compreender ideologia da Instituição); 4) Qual o contexto vigente (histórico, político, etc)? 5) Quem a idealizou e concretizou? Nessa última questão, poder-se-á vislumbrar uma espécie de sombra do sujeito que fez a obra, o agente, ou melhor, o artista…De fato, nada mais falso do que acreditar que as ações simbólicas (ou os aspectos simbólicos das ações) nada significam além delas mesmas(4).

O artista, situado em seu campo (inserido na estrutura social), estaria a colaborar com a manutenção desse sistema; ou, ainda, seria um agente da subversão. Isso seria possível, nem tanto pelas suas obras, mas também – e principalmente – pelas suas respectivas tomadas de posição que determinariam possíveis agrupamentos na intenção de, por óbvio, legitimar-se.

Do agente ao sujeito

Em apologia à boa retórica, volta-se a dizer: a arte carece de obras para existir. Ceticismos à parte e salvo qualquer visão romântica, necessita de um sujeito que a faça. Apesar de todos os aparatos que atravessam sua autonomia, no trânsito entre vontade e possibilidade, existe um sujeito possuidor de uma motivação diferenciada, um ímpeto que o direciona (mais do que a outros) à criação de objetos, sons, movimentos, etc. Inicia-se um processo de livre expressão; segue-se uma busca por instrumentos, ou seja, como fazer – onde entram modos e procedimentos subsidiados por algo que se convencionou a chamar de técnica. Isso sempre terá relação, de algum modo, com o passado. Apreendida a técnica, com toda a motivação inerente, surgem as obras. Estas estão, de alguma maneira – positiva ou opositiva – relacionadas ao tempo e ao contexto do artista e, também, invariavelmente, às oportunidades que conseguiu lograr.

Nesse momento, aparentemente, basta esperar pelos receptores…Ora, como responder a essa causalidade ingênua? Essa é a hora, sim, em que o artista precisará tomar posições; quer mostrar a sua produção. Para isso terá de estabelecer contatos, viabilizar recursos, legitimar o seu espaço – através de sua produção. A priori, parece que não há nada que tire o otimismo do artista; mas, proporcionalmente, irá perceber que a causalidade pensada (faço a obra, logo, encontrarei receptores) é substituída por uma casualidade (por acaso estava nesse espaço, conheci o Fulano que me encaminhou para o Beltrano; vi um folder da seletiva de uma mostra, me candidatei, fui aprovado, pois a instituição tinha interesse em obras em acordo com as questões que apresentava, etc).

Sendo assim, poder-se-á dizer que os feitos artísticos que se instauram no sistema da arte devem suas especificidades aos interesses que estão imbricados no jogo, em relação às funções que são cumpridas – ou que se fazem passíveis de serem cumpridas – pela ação da arte a serviço de seus públicos (aí a razão do plural, pois se dividem em diferentes categorias) e, também, dos responsáveis pelo agenciamento e circulação da respectiva produção. Essa produção está à mercê de um mercado, o que Bourdieu chama de O Mercado de Bens Simbólicos. Nesse raciocínio, (…) as funções que cabem aos diferentes grupos de intelectuais ou de artistas, em função da posição que ocupam no sistema relativamente autônomo das relações de produção intelectual ou artística, tendem cada vez mais a se tornar o princípio unificador e gerador (e, portanto, explicativo) dos diferentes sistemas de tomadas de posição culturais e, também, o princípio de sua transformação no curso do tempo(5).

RECEPÇÃO: QUE JOGO É ESSE?

Numa lógica didática, faz-se o seguinte raciocínio: alguém fez uma obra, encontrou um espaço para veiculá-la – através do habitus vigente na estrutura do campo e do poder simbólico instituído e legitimado no respectivo sistema… Como fica, então – nessa forma de compreender o funcionamento da estrutura do sistema da arte -, a questão da recepção? É óbvio que não se aceita a idéia de uma recepção fortuita. Para que algo seja percebido é necessária posse e uso de instrumentos que possibilitem essa recepção. É preciso que se tenha capital cultural para que se possa adquirir os bens simbólicos. Essa questão é uma metáfora ao cultivo de hábito. Mas, para cultivar um hábito é necessário que se tenha oportunidade de conhecer e tempo para que a familiaridade com tal objeto tenha ocorrido. Leia-se objeto por realidade.

A obra de arte considerada enquanto bem simbólico (e não em sua qualidade de bem econômico, o que ela também é) só existe enquanto tal para aquele que detém os meios para que dela se aproprie pela decifração, ou seja, para o detentor do código historicamente constituído e socialmente reconhecido como a condição da apropriação simbólica das obras de arte oferecidas a uma dada sociedade em um momento do tempo(6).

Não existe, porém, nenhum código constituído de uma vez por todas e cuja aplicação seria suficiente para que a obra de arte pudesse exibir seu sentido pleno e acabado. As obras, em tempos e contextos diferenciados assumem outros valores, dado aos códigos (conjunto de normas instituídas) que serão aplicados para sua apreciação; desta feita, a mesma obra de arte destila uma informação diferente e isso diz respeito à época, lugar, cultura ou espaço em que estiver inserida. Sendo assim, Quando a mensagem excede suas possibilidades de apreensão, o espectador incapaz de receber a informação não tem outra escolha senão desinteressar-se do que lhe parece uma borração sem rima e sem razão, um jogo de formas ou de cores desprovido de qualquer necessidade, ou então, vê-se forçado a aplicar os códigos de que dispõem sem indagar a respeito de sua adequação ou de sua pertinência (7).

Sobre a aquisição dos bens culturais e bens simbólicos: (…) a apropriação destes bens supõe a posse prévia dos instrumentos de apropriação. Em suma, o livre jogo das leis da transmissão cultural faz com que o capital cultural retorne às mãos do capital cultural e, com isso, encontra-se reproduzida a estrutura de distribuição do capital cultural entre as classes sociais, isto é, a estrutura de distribuição dos instrumentos de apropriação dos bens simbólicos que uma formação social seleciona como dignos de serem desejados e possuídos (8).

Na visão do autor, à questão da apreciação da arte contemporânea, é pontuado que o indivíduo, para que seja capaz de perceber formas inovadoras da arte não figurativa (9), não precisa ser nenhum virtuose (cujas posições de vanguarda devem sempre algo à posição que ocupam no campo intelectual e, de modo mais geral, na estrutura das relações de classe). Tal apreciação é assegurada através da (…) aptidão necessária para romper com todos os códigos, desde o código da percepção cotidiana; e porque tal disposição generalizável e transferível só pode ser adquirida através da experiência da história da arte enquanto sucessão de rupturas com códigos estabelecidos.

Esse desfecho sinaliza uma identificação ideológica; lança uma questão que, provavelmente, ficará em aberto: até quando os bens simbólicos circularão apenas em condições sociais de exceção? Esse seleto mercado em que poucos possuem capital para livre circulação e troca. A preocupação maior ao findar esse estudo recai, não em quem poderá determinar o que é obra, ou que espaço acolherá tal feito que será legitimado como obra; mas, em como esse capital cultural poderá circular mais. Por exemplo, nas mãos de quem não possui condições sociais de exceção. Que se criem essas condições.

Quanto ao que é obra – ou o que se pode legitimar como tal -, uma das maneiras que se encontrou para sinalizar possíveis respostas foi o modo de raciocínio esboçado nesse estudo, ou seja, compreender o funcionamento da estrutura do sistema das artes. Perceber quais as forças que o regulam, o que vige em seus conceitos, quem determina (através do poder simbólico) o que pode – ou merece – circular, enfim, em que mãos se encontram a posse desse capital simbólico. Como todo capital que se preze, certamente sofre de um dos males que se tenta camuflar ou dissimular: o monopólio das aquisições e perpetuações de posses.

* Luciana Paludo é bailarina, bacharel e licenciada em Dança PUC/PR; Professora do Curso de Dança UNICRUZ – RS e da Especialização em Dança PUCRS; Diretora do Mimese cia de dança-coisa; Especialista em Linguagem e Comunicação; Mestranda em Poéticas Visuais (Performance) UFRGS.

NOTAS:

1. Sociólogo francês (1930 – 2002)

2. BOURDIEU, 2003, p. 175.

3. Ibid., p. 7

4. Ibid., p. 17

5. Ibid., p. 99

6. Ibid., p. 283

7. Ibid., p. 286

8. Ibid., p. 297

9. Ibid. p. 294

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

BOURDIEU, Pierre. A Economia da Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. 5ªed – 1ª reimpressão. Introdução, organização e seleção Sergio Miceli.

This work is a result of an attempt to better understand the arts’ system. The working project that follows is based upon the ideas of Pierre Bourdieu, an intellectually unrest fellow, passionate for the functioning of the structures as well as the ways they co-exist.

The focus of this work is on the symbolic nature of the relations that are established in such systems. Pierre Bourdieu’s concept of symbolic exchanges will be the conduit of this short analysis, in such a way we can understand the functioning of the so-called arts’ system.

It is not our intent however to impose limits around any specific form of art, do to the simple fact that their structures are similar in the way they compose. As a premise for a good dialogue it is required to provide a brief definition of some of the terms utilized by the author in this theory. As an example, cultural capital and symbolic wealth, both terms coming from economics, are utilized to explain the functioning of the arts’ system and of education.

It is perceived that what regulates and dictates the functioning of different systems and structures is established in a similar form. Therefore, what defines a structure are the relations established in the area in witch they are situated, always logically ordinated by a habitus. There is an exchange system, a constant hierarchy to be shifted, what determines an interchange of power: in the case in question, the symbolic power.

It must be emphasized that the term structure does not refer solely to the organization but also to the disposition of the pieces that compose and participate in the system.

*Luciana Paludo is ballerina, bachelor and licensed in Dance PUC/PR; Professor of the Dance Course UNICRUZ – RS and of Specialization in Dance PUC-RS; Director of Mimese cia de dança-coisa; specialized in Language and Communication; undertaking master degree on Visual Poetics (Performance) UFRGS.