Encontro Latinoamericano para a Gestão da Dança

Articulação regional, mobilidade e sustentabilidade

Será possível fugir da formulação de respostas fracas?

Boaventura de Sousa Santos, no artigo O Estado do Mundo Segundo Três Interrogações, publicado em 2007 no Inquérito Jornal de Letras, defende que atualmente vivemos num período de formulação de perguntas fortes e respostas fracas. Segundo o autor, as perguntas fortes seriam aquelas que se dirigem não apenas às nossas opções de vida individual e coletiva mas, sobretudo, às raízes e aos fundamentos que criaram o horizonte das possibilidades onde é possível optar e, por isso, causariam uma perplexidade especial. Já as respostas fracas seriam as que não conseguem reduzir essa perplexidade e que, pelo contrário, poderiam aumentá-la.

A partir da proposição de Boaventura sobre o caminho das perguntas e respostas para os problemas da atualidade, utilizo o espaço deste texto parra continuar algumas das principais reflexões propostas no espaço Diálogos na programação do 2o Encontro Latinoamericano para Gestão da Dança, promovido pela Rede Sulamericana de Dança (RSD), em parceria com o Festival Escena 1, que ocorreu entre os dias 21 e 24 de julho, em Santiago do Chile. O Diálogos foi pensado como um espaço de análise e debate, a partir de temáticas específicas,  detectadas como prioritárias para a gestão da dança na América Latina, com foco na cooperação regional. O tema discutido neste dia, Articulação, mobilidade e sustentabilidade: cenários e desafios da gestão cultural na região, contou com a colaboração de Sylvie Duran (Costa Rica), André Fonseca (Brasil), Claudia Toro (Chile), Carmen Bojorquez (México) e mediação de Lúcia Matos (Brasil). A programação completa pode ser acessada aqui: www.movimiento.org

Neste primeiro dia de trabalho, as discussões se deram em torno de pelo menos três aspectos da temática do evento: i) a necessidade de dados e indicadores sobre a dança na América Latina; ii) o avanço na construção de políticas públicas específicas para a área; e iii) sustentabilidade para a dança na região.

Quando da existência de dados e indicadores sobre a dança, a posição dos debatedores foi unânime: há uma fragilidade das iniciativas nesta direção. Praticamente não existem ações concretas para isto na região. Cadastramentos rasos ou levantamento de dados com pouca complexidade de cruzamento de informações deflagram a necessidade de pensar ações mais efetivas. A ausência de informação qualificada, por exemplo, implica num baixo conhecimento dos diferentes segmentos da dança, comprometendo a elaboração de políticas públicas e programas qualificados para a área e a identificação de setores que necessitam de projetos específicos; uma saída, talvez, para escapar de proposições genéricas e pontuais que costumam delinear programas de Governo, em detrimento de políticas de Estado.

Quando digo informação qualificada, busco me afastar aqui de fontes exclusivamente numéricas. Os números, em geral, são dados frios, que precisam ser lidos a partir dos seus contextos, levando em consideração as variáveis sociais, econômicas e culturais, para assim conduzirem a uma reflexão crítica da área e favorecer o encaminhamento de ações concretas.

No Brasil, temos algumas iniciativas como o Cadastro de Dança da Funarte e a Base de Dados do Itaú Cultural Rumos Dança. O Cadastro da Funarte aponta para uma configuração de fonte de informação (banco de dados), não oferecendo, por exemplo, o cruzamento destes dados, mas, se amplamente divulgada poderá reunir informações importantes para a realização de análises mais complexas.  Já a Base de Dados do Itaú Cultural Rumos Dança avança na proposição de um mapeamento, com a participação de uma rede de pesquisadores espalhados por diversas regiões do país e que, justamente por isto, consegue propor uma avaliação a partir dos diferentes contextos da produção em dança no Brasil. No entanto, o projeto trabalha a partir do recorte específico da produção em dança contemporânea havendo a necessidade de que outras frentes possam ampliar este escopo de observação.

Na Argentina, uma importante iniciativa vem sendo desenvolvida pelo Governo da Cidade de Buenos Aires. A cena independente de dança na cidade de Buenos Aires: estudo diagnóstico[1], realizado em 2011, apresenta um panorama atual da produção de dança independente nesta cidade. Desde 2009, o Governo buscou levantar informações que pudessem constituir subsídios para o desenvolvimento das políticas públicas na área, através do Prodanza – El Instituto para el Fomento de la Actividad de la Danza no Oficial de la Ciudad de Buenos Aires. O documento é organizado em cinco partes, propondo uma análise que vai da comunidade artística envolvida, até do público participante das ações, passando pela programação de salas específicas para apresentações e a produção de crítica no segmento. O projeto acolheu, inicialmente, a produção em dança contemporânea, mas vem ampliando seu leque de atuação para o tango, a dança flamenca, a dança folclórica e o hip hop.

No campo das políticas públicas para a dança é reconhecível um avanço quando comparado, por exemplo, com o início do trabalho da RSD, há 10 anos. Recordo-me que no encontro de 2004, realizado em Araraquara, interior de São Paulo, a situação era bem diferente: tateávamos os poucos mecanismos de distribuição democrática de recursos públicos existentes na época, com uma política que, apesar de recentemente alterada, ainda carregava as fortes marcas da lógica do balcão; desconhecíamos as realidades dos nossos vizinhos e, no caso do Brasil, não apenas de outros países da região, mas dos próprios estados que compõem essa enorme nação, sem falar na complexa relação capital-interior e no histórico descompasso de investimento e de visibilidade na/da produção do eixo Rio-São Paulo, quando comparado com o restante do país.

Os avanços são claros, mas não é menos clara a necessidade de ampliar e consolidar o que temos. Até aqui é nítido o protagonismo da sociedade civil na proposição e estabelecimento de políticas públicas para a dança na América Latina. No Brasil, um destaque para a recente publicação do Relatório de Atividades da Câmara e Colegiado Setorial de Dança, para o período de 2005 a 2010. Este documento apresenta, de forma detalhada, o registro de todas as ações desenvolvidas por este fórum de representação nacional da área da dança, com seus avanços e dificuldades, tão próprios, infelizmente, do percurso das políticas públicas no Brasil.

Foram necessários cinco anos para que a sociedade tivesse acesso ao primeiro registro oficial destas discussões, o que demonstra a pouca celeridade na tramitação dos marcos regulatórios no campo da cultura em nosso país. O documento apresenta ainda a última versão do Plano Setorial da Dança, elaborado a partir da participação da sociedade, que está organizado em cinco eixos temáticos, conforme alinhamento com o Plano Nacional de Cultura (leia mais aqui).

Na Colômbia, outra ação como esta pode ser destacada. Em janeiro de 2011 foi divulgado o Plan Nacional de Danza[2], que faz parte de um projeto de reestruturação política no campo da cultura deste país. Desde 2002, com a criação do Conselho Nacional de Dança, o Governo da Colômbia vem desenvolvendo, em parceria com a sociedade, uma série de ações que reposicionam a cultura e as artes no âmbito da gestão pública. Em 2004, foi criado o Plano Nacional das Artes e, em 2006, teve início um trabalho de discussão com a sociedade que se configurou na criação do plano para a dança.

Na sequência das discussões sobre políticas públicas para a dança, chegamos a outro tema frequente na agenda de discussão dos profissionais da área: a sustentabilidade. O debate entre os participantes do encontro elucidou um aspecto importante no que se refere às políticas culturais. Em geral, tais políticas vêm demonstrando uma  preocupação maior com o fomento à criação de trabalhos artísticos, enquanto a circulação ou a difusão desses materiais acaba ficando em segundo plano. A obra artística precisa acontecer enquanto realização e quando isto não ocorre, há um acúmulo de boas proposições e pouco espaço para a fruição e compartilhamento destas com o público. A criação artística acaba entrando num processo endógeno de fruição pelos próprios pares, finalizando suas temporadas quando da conclusão do ciclo das primeiras apresentações, na maioria dos casos.

Ainda neste tema da sustentabilidade cabe uma pontuação sobre uma recorrente visão quanto ao papel do Estado no campo da cultura. Funcionamos numa lógica que tende a perceber o Governo como responsável por todas as ações. Este raciocínio corrobora com a idéia de um estado paternalista que acaba encerrando numa relação de dependência e, ao mesmo tempo, de subalternidade que emperra a fluidez dos fenômenos artísticos. O Estado tem o seu papel e isto precisa acontecer da melhor forma possível, com iniciativas amplamente discutidas com a sociedade e pautadas em princípios democráticos e transparentes e com garantia de orçamento. No entanto, o que temos é uma dificuldade de conseguir avançar em certos marcos legais, como a PEC 150, que garante o mínimo de orçamento para a cultura nas instâncias de governo ou ainda da consolidação dos fundos de cultura.

A participação do público, por exemplo, é outro aspecto caro nos debates acerca da sustentabilidade na dança. Quando observamos a enorme quantidade de atividades de dança com entrada franca, logo percebemos que a maioria das ações são fomentadas com o dinheiro público e é pertinente que elas tenham acesso livre ou a preços módicos. O problema é quando apenas o Governo banca essas ações. Quando o Estado passa a oferecer apresentações gratuitas o tempo todo, não há espaço para a prática da compra do ingresso ou do investimento em capital simbólico. Como o Estado não tem condições de suprir todas as lacunas, a ausência se torna uma constante. Sem incorrer no risco ingenuidade ou na superficialidade desta reflexão, mas preocupado com a necessidade de continuarmos este debate, ressalto que não é difícil perceber que a participação efetiva do público nas realizações artísticas ainda se dá de uma maneira muito tímida e isto não ocorre apenas no Brasil. As lógicas do sistema são locais e globais ao mesmo tempo. Há quem pague por ingressos, mas é preciso pensar em alternativas que impliquem programas diferenciados, estimulando o pagamento de ingressos e também políticas que ampliem o acesso aos produtos culturais para quem não tem como pagar.

O saldo das discussões desta manhã apontou o espaço da formação como fundamental no encaminhamento de boa parte destas questões. Não se trata aqui apenas da presença da dança nas escolas de ensino formal e nisto ainda temos muito a avançar no Brasil. Mas também de uma formação profissional qualificada para o artista no que tange às discussões sobre atuação política, no conhecimento das novas lógicas de produção e criação artística e de pensar a gestão como um possível campo de formação e atuação na área da dança.

O percurso das discussões do Encontro foi capaz de trazer para a superfície a complexidade das questões ali mobilizadas. O desafio de construir alternativas de encaminhamento está posto e certamente continua no trabalho de cada um, para além da experiência do contato, que sempre aponta para um limite ou fronteira em algum nível. Nesta perspectiva, as diferenças e as semelhanças criam outros núcleos para o desdobramento das ações e, aqui, eu prefiro apostar que estamos na tentativa de nos afastar das respostas frágeis.

Alexandre Molina é artista da dança e professor. É doutorando em Artes Cênicas pelo PPGAC-UFBA e Coordenador de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb).


[1] La escena de la danza independiente de la Ciudad de Buenos Aires: estudio diagnóstico.

[2] Disponível em: http://www.mincultura.gov.co/?idcategoria=23190