Artista e instituição: uma parceria idealizada?

O trabalho que desenvolvi nos últimos 25 anos, como programadora de dança e depois como gestora de artes cênicas, sempre me fez refletir sobre a relação entre artista e instituição. Me propus essa reflexão baseada na observação de que ambos os lados, mesmo tendo compreensão de seu próprio papel, pouco pensam sua posição em relação ao papel do parceiro.

Convidei 12 profissionais para responder às seguintes perguntas:

– Qual o papel das instituições culturais e qual o papel dos artistas?

– O que as instituições esperam dos artistas e projetos culturais e vice-versa?

– Qual o comprometimento com o público por parte das instituições e dos artistas?

Recebi nove respostas de: Ricardo Marinelli (coreógrafo e bailarino, Curitiba), Marcio Abreu (diretor teatral, Curitiba/Rio de Janeiro), Marcelo Evelin (coreógrafo e bailarino, Teresina), Sandro Borelli (coreógrafo, bailarino, Presidente da Cooperativa Paulista de Dança), Kil Abreu (crítico, curador de teatro do Centro Cultural São Paulo), Celso Curi (curador, produtor, administrador cultural, São Paulo), Maria Tendlau (diretora teatral e gestora do TUSP em Piracicaba São Paulo), Isabela Silveira (performer, produtora e gestora pública na Bahia) e Sesc SP. Fui bastante influenciada pelas respostas e agradeço publicamente a grande colaboração de todos.

A princípio, fiz um grande resumo das respostas e esse artigo tendia a um arrazoado e, mesmo com reflexões muito boas e pertinentes, não me pareceu suficiente compilar as entrevistas apenas acrescidas de algumas considerações. Então, o que de fato eu queria dizer?  A dificuldade de formular a resposta, gerou outros questionamentos em mim para além do conteúdo recebido.

Voltei a elas e a primeira apreensão é a visão comum acerca da liberdade imprescindível e do pensamento crítico que o artista deve ter. E de que o papel das instituições é criar as melhores condições para que se desenvolva o trabalho artístico. Os gestores esperam propostas de qualidade e relevância artística e os criadores, que as instituições invistam em suas idiossincrasias e num diálogo mais profundo, menos burocratizado e unilateral na constituição da parceria artista-instituição.

Comecei por pensar no diálogo, descrito por alguns como um campo de escuta e proposição de lado a lado. Me perguntei, como esse diálogo tem se dado? Geralmente em reuniões onde o projeto é apresentado, discute-se e negocia-se o que um precisa e o que o outro dá.

Nesse ponto, um que pede e o outro que dá, acaba-se definindo também um “eles e nós”. E essa sempre foi uma grande questão para mim. Tinha a utopia de que todos podiam conviver bem no mesmo território. Só agora com algum distanciamento, consigo me perguntar: O “eles e nós” é de fato um problema? O que é uma parceria? Dois lados com valores próprios e um alvo comum?  O êxito da parceria seria o melhor denominador comum das diferenças de parte a parte? Há uma idealização dessa parceria?

Se aprendermos um pouco com os processos de criação e conscientes de estarmos inseridos em um mundo-mercado neo-liberal, não interessa chegar a média, ao meio-termo e sim a um campo vertical de construção. O êxito dessa parceria é para baixo.

No fundo não há nada de novo, artistas sempre criaram e sempre criarão obras críticas e instituições, via de regra, buscarão a estabilidade, a preservação da memória e a democratização do acesso da sociedade à arte. Por tudo isso as instituições tornam as relações mais duráveis, e um território sólido é importante no atual estado de liquidez das relações humanas.

E além de serem mantenedoras ou patrocinadoras, algumas instituições são importantes pesquisadoras, tratam e mesmo criam conteúdos e sentidos tão importantes quanto a própria produção dos artistas. São responsáveis por perenidade, formação, sustentabilidade, etc. – não importando aí se são governamentais ou privadas.

Claro que há instituições e instituições. Essa preservação não precisa ser conservadora, a solidez não precisa ser de ferro, o conceito de hierarquia pode e precisa se atualizar constantemente e, sobretudo, instituições dessa natureza não devem se comportar como empresas competitivas – a demanda por ineditismo, novidade, acesso quantitativo, cronograma e prestação de contas não-factíveis são perigosas e não condizem com o espírito público. A situação fica ainda mais difícil e delicada quando o projeto tem dois ou três apoiadores e todos querem o lançamento, a abertura, a primeira página, o que for. Produtor e artista ficam desesperados. Precisam atender suas fontes de financiamento e, uma vez mais, lhes exigem a habilidade de um negociador no sistema competitivo.

Por sua vez, o artista não pode estar munido só de crítica até porque também ele corre o risco de ser unilateral ou de se adaptar e se formatar. Há que se falar também que o artista romântico, que espera que a instituição ou o Rei Luís XV o salve, é uma criança mimada. Não digo que não há limites, pois na mesma medida em que a natureza da arte é ser livre, um resultado precisa ser cobrado e uma avaliação precisa ser feita por quem a subvencionou. O desafio é esse limite.

Entretanto, quanto mais o artista estiver desimpedido, quanto menos precisar ser administrador, melhores condições as instituições estarão dando para que ele desenvolva seu trabalho artístico. Quem quiser explorar o máximo do potencial criador deve diminuir a carga sobre ele.

O artista já faz muito. Da criação até a apresentação do trabalho, há estresse, sobrecarga, medo, dúvida e debate interno. É demasiado colocar algo no mundo, desviar do sentido consensual, ampliar nossa rede de representações, arranhar as hegemonias. Essa é a sua função, outras serão sempre artificiais. Não se tem que esperar mais do que isso.

As instituições ganham mais ao dar autonomia aos artistas. Porque é somente nessa condição que obras de arte dignas desse nome, acontecem. E as instituições querem os bons com eles. Elas se orgulham, com razão, de estarem numa produção relevante. Contudo o limite que cinde é quando os riscos das criações têm que estar nos parâmetros aceitáveis pelas instituições.

O que fazer? Aceitar o limite concedido pelo patrocinador ou buscar apoios que fortaleçam a posição artística? Apoios nada fáceis dentro da lógica capitalista global.  Sim, pertencemos a esse mundo, mas nem por isso precisamos valorizar seu caráter globalizado, mas talvez equilibrar a equação fortalecendo a singularidade de cada contexto criativo. Caminho às vezes artesanal.

Aliás o antagonismo pode estar dentro do campo criativo. Curadores podem exigir concessões na apresentação dos trabalhos ou na capacidade de público, tendo como lógica a espetacularização, o que é diferente de problematizar questões. Festivais, museus, jornais, bienais, artistas e até mesmo escolas ou igrejas podem operar (ou não) no regime de valores neo-liberal. E sabemos que todo pacto carrega sua ética intrínseca.

Penso no que fiz, ou melhor, no como fiz enquanto gestora. Acredito que todo meu gesto se deu e se dá na ponte. O que me moveu foi sempre diminuir a distância entre o dentro e o fora sem enfraquecer ou ameaçar nenhum dos lados, pelo contrário. Hoje coloco essa postura como proposta do papel do gestor – a de mediador. (Os produtores artísticos também são mediadores. Seria preciso discorrer mais sobre isso)

O gestor deve cuidar dessa interlocução e da viabilidade, em todos os sentidos, do projeto. Esse papel é delicado e não pode ser confundido com o de facilitador. Ele escuta, propõe, executa, debate. Precisa traduzir o conceitual e o filosófico para os limites da técnica, do jurídico, do financeiro, etc. É responsável, portanto, por trazer o território do artista para o território da instituição. Mas entendendo que, embora vizinhos, é necessário um translado.

Se defendo que a instituição garanta respaldo e que o artista garanta a produção de novos sentidos, o gestor deve transformar uma aparente dicotomia entre essas coisas numa área de conexão. É ativação e trânsito entre o simbólico e o formal. É a capacidade de reconhecer os lados, se mover entre eles e intensificar a diferença enquanto potência.

Finalizo citando Ricardo Marinelli, em uma de suas reflexões sobre a relação entre artista e instituição: “Para mim o compromisso que ambos têm que ter é com o tempo.”

 

Referência

PASCAL, G.  Criatividade & outros fundamentalismos. 1.ed. São Paulo: Annablume, 2015. 128 p.

 

Sonia Sobral

Campo. Teresina (2016)
Instituto Itaú Cultural (1999-2015)
Red Sudamericana de Danza (2001-2008)
Idança.net (2005 a 2008)
Bolsas Vitae de Artes (1996-1998)
Oficina Cultural Oswald de Andrade (1991-1992)