Desapego / Foto: Domingos Guimaraens

Artistas no corpo

Em janeiro, participei do V::E::R 2011 – Encontro de Arte Viva, que reuniu cerca de três dezenas de artistas e pesquisadores na ecovila Terra UNA, em Minas Gerais. Foram dez dias conversando, criando e imaginando formas de trabalhar, da manhã à noite, numa convivência desafiadora. Foi uma experiência rica para pensar em colaboração e contaminação, para compartilhar perspectivas e friccionar desacordos.

Num evento que se propôs habitar um “terreno rugoso, impuro e mestiço, onde linguagens se cruzam e fronteiras se borram”, era de se esperar que a dança estivesse bem representada, e assim foi. Eu já conhecia alguns dos artistas que transitam pela dança contemporânea carioca, como a performer curitibana Michelle Moura, que depois do solo Cavalo continua a explorar as propriedades muito específicas do seu corpo numa dança quase expressionista, uma espécie de Mary Wigman quântica. Também há tempos venho acompanhando a trajetória entre artes visuais e dança de Michel Groisman, que espalhou por Terra UNA o seu vasto acervo de jogos que colocam as relações entre corpos no foco, como Polvo, Sirva-se e Instrumento de comunicação. A diretora e coreógrafa argentina Lucia Russo (parceira de Gustavo Ciríaco no lindo Eles vão ver) caminhou pelas ruas da pequena cidade de Liberdade – MG, investigando os relatos de seus moradores. E Jamil Cardoso levou para diferentes espaços (uma campina, um galpão de madeira, uma cozinha) o seu Working process, um solo sensível e multifacetado que confunde sua própria história com a história de outros.

Mas também conheci em Terra UNA artistas vindos de outros lugares, que também exploram o corpo em sua matéria, suas propriedades e suas consequências. E sinto o desejo de falar um pouco mais sobre duas destas pessoas: Júlia Pombo e Élcio Rossini.

Júlia é uma jovem artista carioca com uma produção recente de vídeos e fotografias concentrados no corpo, principalmente o seu próprio (seu trabalho pode ser conhecido clicando aqui). Muitas dessas obras têm um claro sentido cênico ou performático, corpos em relação com o espaço, com o próprio corpo, com outro corpo. Como Máquina, um vídeo simples e preciso misturando corpos e engrenagens em movimento; ou a Série Introspectiva, estudo dobrado sobre si mesmo que me remete aos primeiros trabalhos da coreógrafa Alice Ripoll; ou Still, série fotográfica que é quase o resumo de um videodança, expressiva tanto na construção da imagem quanto no que deixa de mostrar.

Desapego / Foto: Domingos Guimaraens

Desapego / Foto: Domingos Guimaraens

Para Terra UNA, Júlia levou uma proposta de instalação – Desapego em que ela trocava com os outros artistas objetos com valor afetivo. Cada objeto oferecido por Júlia vinha com uma pequena narrativa, “herdada” pelos novos objetos que foram aos poucos tomando o lugar dos originais. Um trabalho delicado e lento sobre construção de memória, sobre intimidade, sobre as histórias que nos definem, lembrando Christian Boltanski e Sophie Calle. E um trabalho que também me parecia falar de memória do corpo, um corpo ausente mas persistindo naquelas roupas, brinquedos, em um livro, em um caneca, nas fotos de um ex-namorado.

Élcio é gaúcho, um artista que eu admirava desde que morava em Porto Alegre, e que continuei acompanhando de longe em seus trânsitos entre artes visuais, performance, teatro e dança. Há anos a coreógrafa Cibele Sastre já me falava dos seus Objetos para a ação, parangolés imensos feitos de um tecido muito fino, que inflam ao serem manipulados, tornando-se uma espécie de tenda ou pára-quedas ao redor do corpo. É empolgante experimentar a riqueza de possibilidades de movimento destes infláveis, suas respostas inesperadas e envolventes, a sensação de “dançar” com o ar. Parece uma ferramenta incrível para pensar em contato-improvisação, no espectador-participante de Hélio Oiticica e Lygia Clark, nos poliedros de Laban, em tempo, em relação com o outro.

Outro trabalho que Élcio levou a Terra UNA foi a instalação  Ora, bolas (na 1ª foto) – balões transparentes cheios de água pendurados em fios de nylon, um imenso e cinético instrumento musical. Como os Objetos para a ação, é uma obra para uso que revela as suas possibilidades ao ser tocada, um convite à relação entre os corpos dos participantes (como os jogos de Michel Groisman). A fragilidade dos balões, que ameaçam a qualquer momento estourar e dar um banho em todos, provoca mais que limita, ainda mais na tarde de sol forte em que experimentávamos a instalação. E foi assim, com alguns alfinetes, que a instalação se desfez em segundos, numa apoteose de gritos e jorros de água que ficou ressoando na minha cabeça como o final de um concerto.

* V::E::R 2011 – Encontro de arte Viva foi a segunda edição de um evento que já havia ocorrido em 2005 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Organizado por Beatriz Lemos, Marcela Levi, Marcus Vinicius, Nadam Guerra, Domingos Guimaraens e Alex Cassal, se propõe como um espaço propulsor de troca e reflexão em arte contemporânea.

Alex Cassal nasceu em 1967, em Porto Alegre, onde foi um dos fundadores do Movimento de Grupos de Teatro de Rua de Porto Alegre. No Rio de Janeiro desde 1996, vem colaborando com artistas de dança e teatro como Dani Lima, Gustavo Ciríaco, Denise Stutz, Alice Ripoll e Felipe Rocha. Participou do projeto Dialogue Sessions RJ Springdance (2002), do Programa Rumos Itaú Cultural Dança (2006/2007) e do Programa de Residências Artísticas para Criadores de Iberoamérica (2008). Em 2010 fez parte do projeto Otro or weknowitsallnothing, do Coletivo Improviso.

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