As emergências de uma ação curatorial: refletindo a Bienal SESC de Dança

“Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.”

O trecho acima foi retirado do livro “O que é o contemporâneo e outros ensaios” do filósofo italiano Giorgio Agamben e se encontra no texto de apresentação da oitava edição da Bienal SESC de Dança.

De início, parece clara a preocupação da comissão curatorial – Juliano Azevedo, Liliane Soares, Djaine Daniat, Nirvana Marinho e Valéria Cano Bravi – em indicar ao público e aos profissionais da dança a premissa teórica onde a Bienal de 2013 está baseada. O que, por sua vez, informa sobre a aspiração desse grande evento em contribuir com a produção de conhecimento em dança.

Tratando-se de uma curadoria específica para a dança contemporânea, o estímulo na frase de Agamben torna-se instigante quando se traduz em pensar a contemporaneidade buscando reconhecer suas formas de expressão no corpo. Dito isso, ao verificar a programação da bienal, questões insurgem e apontam problemáticas embutidas na tarefa de compor uma seleção de obras que criem sentido para além de uma vitrine de competências.

Há evidências que durante o processo curatorial foram identificadas, em cada obra selecionada, características que as aproximasse, e assim, três aspectos foram suscitados: a autorreferência, a performatividade e o diálogo com as artes visuais.  Atenta ao pressuposto de não desgrudar as propostas dos seus contextos, e sim, enfatizá-los, a comissão uniu-as pela coerência entre semelhanças.

Porém, trabalhos como “Big Bang Boom”, de Michelle Moura; “O Confete da Índia”, de André Masseno; “De Repente Fica Tudo Preto de Gente”, de Marcelo Evelin; “Baderna”, do Núcleo Luis Ferron; “Exhibition” de Cláudia Muller; “Nosotres”, de Javiera Peón-Veiga, “Sem Título”, de Clarissa Sachelli, “Solo de rua”, de Luciana Bortoletto, são exemplos de espetáculos e intervenções que contém em justaposição dois ou três dos aspectos acima citados. Logo, não caberia filtrá-los mais por um aspecto do que por outro.

Como um discurso curatorial especializa-se? O recorte realizado sob a ótica do reconhecimento, agrupamento e separação resulta em uma concepção curatorial genérica, pois, em maior ou menor grau, inúmeras outras obras contemporâneas dialogariam com as mesmas premissas.

O similar ocorre quando a diversidade é tomada como conceito principal em um discurso e, consequentemente, se chega a uma máxima simplista e abrangente que pouco potencializa as singularidades dos trabalhos artísticos.

Tal forma de conhecer e se apropriar guarda afinidade com as heranças da ciência moderna, a qual nos ensina sistematicamente observar, anotar diferenças e semelhanças, dissecar, nomear – estratégia obsoleta mediante um contexto cultural de lógica tropicalista e globalizada.

Como uma curadoria produz sentido, projetando no mundo reflexões emergentes? É pensar em afinar as escolhas, sabendo que informações podem ser delineadas em prol do fomento a transformação.

A Bienal SESC de Dança não se autoapresenta com a prerrogativa de um festival aos moldes mainstream. Entretanto, para que a produção de sentido pautada na reflexão que almeja seja efetivada, é necessário o esforço em rediscutir seus argumentos substanciais.

Os modos de feitura autorais de cada artista revelam especificidades sobre a contemporaneidade e os modos de produção vigente. Talvez uma das estratégias coevolutivas a se adotar nesse momento é debruçar-se com afinco no processo de criação das propostas artísticas. E, então, tentar dirigir o olhar não à superfície das criações, mas sim, aos deslizamentos multivetoriais que ocorrem entre elas, habitando o contexto de efemeridades e adaptações da dança com os seus próprios meios de produção.

Parte da programação já aponta alguns horizontes dentro dessa discussão: o Projeto 7×7, de Sheila Ribeiro, publica em um blog – anexado ao site da bienal – textos escritos por artistas sobre os trabalhos assistidos, no intuito de articular desdobramentos críticos e, ainda houve os encontros que envolveram debates sobre curadoria educativa e curadoria enquanto processo criativo.

Mais espaços de enfoque crítico devem ser arraigados para as próximas edições da Bienal SESC de Dança como momentos oportunos para a curadoria mediar diálogos junto a todos os interessados e, melhor, jogar luz nas obscuridades referentes à própria realização curatorial.

*Flávia Couto – Pesquisadora e crítica de dança. Integrante da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) em Comunicação das Artes do Corpo nas habilitações de Dança e Performance. Já atuou como colaboradora para a Folha de S.Paulo. Em 2012, fez parte da curadoria em dança do 17º Cultura Inglesa Festival.