As memórias corporais do grupo Alaya

A Companhia Alaya de Dança estreou em novembro seu mais novo espetáculo, intitulado Água. Em 17 anos de trajetória, tendo sido fundado em 1990, o grupo brasiliense segue sua busca por uma linguagem de dança ligada às origens da memória corporal. “O vocábulo sânscrito alaya significa ‘base fundamental’, tendo sido a palavra retirada do livro Tantra, de Rajneesh, no qual alaya também aparece como sendo ‘morada interior’, ou ainda, ‘ser interior’ ” [1]. Essa premissa é um dos nortes do processo de composição artística desenvolvido pela diretora e fundadora do grupo, Lenora Lobo.

Ao longo de sua carreira, a artista desenvolveu um método de formação do intérprete criador, denominado “Teatro do Movimento”, o qual deu origem ao livro do mesmo nome. Com esse instrumento, Lenora Lobo estimula os integrantes do seu grupo a investigarem sua própria forma de se movimentar e se expressar artisticamente, sem impor uma técnica corporal específica. Foi esta diretriz que impulsionou a fundação do Núcleo Alaya e da Mostra de Intérprete-Criadores, onde a diretora abriu espaço para seu elenco e alguns alunos criarem suas próprias obras. O espetáculo Água é um desdobramento desse trabalho, tendo a concepção coreográfica assinada por Alexandre Nas, um dos mais antigos membros no grupo e disseminador do “Teatro do Movimento”.

A partir dos espetáculos da Companhia, fica evidente que a memória corporal mais latente no elenco deriva das danças populares. Assim como em outros trabalhos, na peça Água os elementos da cultura popular estão presentes na movimentação, na escolha das músicas, na utilização de percussão ao vivo e na narrativa inicial apresentada por João Negreiros. Alexandre Nas, entretanto, conseguiu colocar esse universo em cena de forma mais sutil.

Em Matracar, obra anterior da Companhia coreografada por Lenora, a estética das manifestações populares era predominante, com um cenário colorido, músicas dos próprios folguedos e uma interpretação própria dos brincantes. Em Água, esses símbolos se diluem pelo cenário elaborado com projeções abstratas, onde a cor prata das bacias é predominante, fruto do trabalho de W. Hermushe. A água aparece como mote para as lendas que habitam o imaginário do povo. Um elemento que faz parte da paisagem do interior brasileiro, com seus rios, poços, chuvas. E é nessa atmosfera que Alexandre evoca a memória corporal do elenco formado por ele, Aline Maria Santos, Christiane Lapa e Hilton Gonçalves, para remeter a imagens dos seres e deuses presentes nesse habitat.

Um olhar mais aprofundado sobre os dois trabalhos da Alaya, os quais presenciei, me leva a questionar a forma como o seu corpo se apresenta em cena. De fato, a escolha por retratar um universo da cultura popular se mostra genuíno e honesto, tendo em vista a própria origem da diretora Lenora Lobo, que é piauiense e transitou pelas brincadeiras populares do Nordeste em sua infância. Os outros integrantes do Alaya também são oriundos de diferentes regiões do Brasil e trazem suas culturas para o trabalho. Mas os princípios do “Teatro do Movimento” apontam para um método consistente para aflorar as peculiaridades da memória corporal, o que não percebemos nas montagens do grupo. É preciso ainda desvelar algumas camadas dessa memória.

O trabalho de criação de uma linguagem, em um universo tão amplo de possibilidades que se têm hoje no cenário da dança, não é tarefa fácil. Principalmente quando essa investigação parte do olhar do corpo do outro, como faz Lenora Lobo em seu grupo. Ao entrar em contato com o seu livro percebo a inquietação de colocar em cena o resultado dos princípios implementados nas aulas e laboratórios. A sistematização de um método próprio de formação e criação tem sido um dos temas recorrentes e pertinentes da cena contemporânea. Nesse sentido, creio que o Alaya já deu o primeiro passo com o pensamento desenvolvido por Lenora Lobo, mas consolidação dessa investigação ainda aponta para um caminho a ser percorrido pela Companhia e seus integrantes.

[1] LOBO, Lenora e NAVAS, Cássia. Teatro do Movimento – Um método de formação para o intérprete criador. Editora: LGE Edições, 2003.