Autoria: qual é a da dança?

O tema de autoria em dança vem me perseguindo há algum tempo e, inclinada a debater diversas questões sobre criação, coletivo, direção, intérprete, coloco este artigo aberto a controvérsias, incômodos e inquietações de artistas e teóricos.

Como aqui me apresento como colaboradora, apesar de atuante e pesquisadora, não cabe aqui articulações teóricas de profundidade; algumas citações para nos guiar, alguns apontamentos, mas certamente pontos para refletirmos. Nossa tática é levantar questões que se repetem e podem nos introduzir nesse complexo assunto de autoria.

Questão número 1: Por que temos necessidade em assinar nossas obras e idéias?
Segundo Foucault, em “O que é o autor” (1992), há uma unidade primeira, sólida e fundamental que se refere ao autor e sua obra. As pesquisas sobre autenticidade e a atribuição de uma obra a alguém fundou um sistema de valorização e julgamento do autor, fazendo disso uma relação exterior e anterior à obra. Ou seja, o poder instituído à obra advém do poder do autor, que fora da obra e antes dela existir, ele (o autor) é uma regra imanente, um princípio inserido no sistema. A obra é legitimada por sua autoridade e adquire um caráter autêntico.
Isso não é estranho à prática de nenhuma linguagem artística ou feito científico, uma vez que alguém produz algo, o faz sob sua tutela. Busca, portanto, ser autêntico e com isso adquire certo poder sobre sua criação.

Questão número 2: Autoria é uma questão de direito? De quem é o direito: do sujeito (autor) ou do objeto (obra)?
Afirmamos, com muita naturalidade, que uma idéia é de alguém. Subverter essa ordem não é colocar em dúvida séculos de história que justificam a autoria. No entanto, o que vale questionar são as implicações ou impecilhos que tal poder promove.
Se compreendêssemos o mundo sob ponto de vista antropocêntrico, as idéias estariam subjugadas aos homens que as articulam. Mas se compreendermos os diversos níveis de significação e convivência entre o homem e suas idéias, deveríamos repensar o lugar do sujeito e do objeto.
O maior problema é atribuir a autoria como original, como um lugar primeiro e único do homem, como se as idéias estivessem ao seu bel prazer e sorte daquele que a detém, como uma propriedade. E que um dia, “do nada”, alguém as possui. Alguns artistas e muitos filósofos vêm discutindo isso e propõem outras direções. Vale ressaltar, por hora, o perigo que representa a posse sobre idéias, sejam elas quais forem, o que, por sua vez, não ameaça a necessidade de autoria, apenas a descola deste lugar centralizador de poder.

Questão número 3: Autoria ou assinatura?
Certa vez, junto a teóricas respeitadas, este debate foi travado. Outros modos de atribuição foram pensadas e inspirados em outros autores.
Repare: do mesmo modo que pensamos algumas noções sobre autoria aqui, outros já fizeram, assinam outros artigos, concordam ou discordam, inclusive inspirados, consciente ou inconscientemente, em outros tantos pensadores, mais ou menos legitimados.
Em um certo nível de curiosidade ou provocação, não importa quem assinou o quê, mas sim o que foi discutido.

Pausa: Isso significa que, já que muitos já fizeram e não tem como se rastrear, o autor é um mero instrumento de significação?

Novamente devemos alertar aos mais conservadores que o direito do autor é dado por sua assinatura, por sua publicação ou difusão. Não dá a ele plenos poderes vitalícios sobre seu pensar-fazer, mas sim o situa em uma linha do tempo de que aquelas idéias, articuladas daquele modo, naquele tempo, têm uma assinatura. Nem tirano, nem servo; mas articulador.

Atente para o fato de que a noção de autor é legítima uma vez que regulamenta o pensar-fazer, cria mercado e autentica sim alguns discursos, e outros não, por competência que tais idéias articuladas e assinadas contêm.

Questão 3: Assinatura seria mais apropriado?
Uma hipótese. Parece que assinar algo todos fazemos, deixamos marcas da singularidade do nosso fazer sobre tais idéias. Não podemos perder de vista: outro alguém vai se apropriar disso e refazer novas teias. Um momento, uma circunstância: a assinatura pode modificar nosso entendimento possessivo que o autor contém, além de assegurar a particularidade que o define.

Sugestão: volte a questão 1.

Questão 4: Copyright e copyleft.
Laurence Lessig, advogado que atuou contra a tentativa da Walt Disney em estender o prazo de detenção dos poderes do Mickey Mouse, foi o mentor da idéia de repensarmos a “cultura livre” do direito irrestrito do autor [1]. Ao invés de todos os direitos reservados, alguns, no lugar de copyright, copyleft. Um conceito que cabe em muitas manifestações artísticas, em novas táticas de inserção no restrito mercado das boas e vendáveis idéias. Saiba mais acessando o site do CTS do advogado e coordenador da Creative Commons no Brasil, Ronaldo Lemos [2]. Tal ferramenta internacional de selagem do direito autoral obedece a escolha do autor e consciência de que sua obra foi feita para ser disseminada. Um jeito de pensar e fazer cultura que, nas artes, ganha cada vez mais eco. Vale se informar e refletir: sua obra é right ou left?

Sugestão: volte a questão 2.

Questão 5: E afinal, qual é a da dança?
Autoria parece ser uma tema ainda mais cabeludo quando falamos de dança: uns dizem que é porque é uma arte de excelência corporal e que, assim situada, torna seu objeto ainda mais autoral; outros dizem que ainda estamos engatinhando em questões como esta por “reserva de mercado”, apelido para hábitos selvagens de tomar para si idéias, oportunidades ou informações que serviram para outros. Seja por que razão for, ainda há muito para matutar, uma vez que toda e qualquer ponderação deve se refletir em nossa rotina: compartilhar informações, trocar idéias, experimentar várias idéias em vários corpos, sem a alfândega de quem legitima o que você diz, pensa ou faz.

Right ou left, uma obra artística ocupa um lugar maior que o autor; contemporâneo (no sentido estético, político e artístico do termo em dança) e cultural, uma peça, coreografia ou obra de dança, em processo ou produto, em vídeo ou em cena, de um ou de várias pessoas, exerce uma função, uma reverberação, conta algo para os que travam contato com ela. Esta responsabilidade todos nós compactuamos. Então onde colocar o lugar do autor, se pensado como um dominador, centralizador ou originário dessa estória? Se seu lugar fizer parte de uma “partilha do sensível” (expressão do filósofo Jacques Rancière), talvez devêssemos situar nossos discursos de outro modo, ou seja, deixarmos desculpas de lado (como a arte do corpo ou arte do sujeito) e nos posicionarmos diante de nossas obras conjugadas na 3ª pessoa.

Mercado, crítica, professor, coreógrafo, estrangeiro colonizador, o legitimador, para onde vão estas figuras (no seu sentido mais convencional) em um novo cenário compartilhado? Deixo esta como a questão 6, última e sem resposta, ainda.

Notas:

[1] Veja matéria na Carta Capital de novembro de 2005.

[2] Veja os sites http://www.direitorio.fgv.br/cts/index.html e http://www.creativecommons.org.br/.