Desh_Akram Khan Company / Foto: Richard Haughton

Bailarino do invisível: Akram Khan

O coreógrafo londrino Akram Khan conta em entrevista ao Idança sobre suas criações a um só tempo terroríficas e fascinantes.

O bailarino e coreógrafo londrino Akram Khan, 37 anos, esteve no Brasil pela primeira vez em outubro do ano passado, quando trouxe a São Paulo e ao Rio de
Janeiro duas de suas produções: Vertical Road e Gnosis. O primeiro, seu mais recente trabalho contemporâneo conjunto inspirado na tradição sufi e no poeta e filósofo persa Rumi, e o segundo, um solo que retorna a suas raízes na dança clássica indiana. Neste, Akram é acompanhado no palco por um grupo de músicos excepcionais da Índia, Reino Unido, Paquistão, Japão e Oriente Médio. Akram Khan é londrino e seus pais são de Bangladesh, país intimamente ligado à Índia. Quando era bem pequeno, sua mãe o incentivou a aprender o Kathak, dança clássica proveniente do norte indiano, região influenciada pelos árabes. Dança ligada à narrativa de histórias da mitologia hindu, caracterizada pela virtuosa percussão dos pés e pela conexão (especialmente verticalizada, no sentido da postura corporal) com o sagrado.

Mas o que Akram Khan transporta para o palco é muito mais do que a “pura tradição”, aquilo que costuma-se aprisionar no termo genérico “danças étnicas”. O que ele faz é dança contemporânea, sejam os seus chamados trabalhos contemporâneos ou o seu clássico Kathak. Seu elenco variado agrega à sua dança e os movimentos que eles executam calam fundo em cada um deles, em cada um de nós… É possível ver na sua dança notas do Kathak indiano, sim, da dança sufi, sim, mas também do candomblé, das artes marciais, e até da dança de rua. Nada é estanque em Akram Khan e tudo move-se em outra frequência.

A seguir o coreógrafo fala à repórter Deborah Rocha sobre seu processo de trabalho, sua origem em Bangladesh, a turnê do espetáculo Desh, seu mais recente solo que estreou no ano passado no Reino Unido, com o qual ganhou o prêmio Olivier, e sobre outros projetos em andamento.

Durante sua vinda ao Brasil, em outubro do ano passado, você mencionou que já havia tentado trazer a sua companhia para o país. Por que demorou tanto?
Nas últimas duas vezes eu traria o espetáculo in-i, um dueto com a atriz Juliette Binoche, mas não foi possível devido a complicações em função de agenda. Em outras duas ocasiões, as negociações tiveram que ser interrompidas por razões técnicas. Sempre quis dançar no Brasil e foi uma ótima experiência. Pina Bausch, que costumava ir muito ao país, me contava sobre o contato com as pessoas e a natureza exuberante.

Você divide seus espetáculos em contemporâneo e Kathak clássico. Como criar propostas tão diferentes?
O ponto de partida para a criação de ambos é muito diferente. Já que o meu treino formal é o Kathak [forma de dança clássica proveniente do norte da Índia], a linguagem corporal vai ser sempre diferente daquela que o público ocidental está mais acostumado a ver.

O que inclui seu treino?
Meu treino diário é basicamente o Kathak, que pratico pelo menos duas horas por dia, e minha educação formal é a dança contemporânea. Além disso, pratico yoga todos os dias. Os bailarinos trazem sua bagagem de dança contemporânea e eu compartilho o Kathak com eles.

Como você descreve sua técnica?
Não dou um nome a ela, pois isso a aprisionaria. Eu não me interesso em formalizá-la. É importante que ela permaneça no meu corpo e não se torne uma teoria.

Você nasceu em Londres numa família originária de Bangladesh. O que isso significa para você?
Significa que sou um estrangeiro. De alguma forma, somos todos estrangeiros… No Brasil, por exemplo, a maioria das pessoas migrou para um local diferente ao de sua origem. Vejo esse ser estrangeiro como uma forma de estar e de me posicionar no mundo. Em Londres me sinto um oriental exótico e quando estou em Bangladesh pareço mais inglês do que nunca [risos].

O que te levou à dança?
Minha mãe. Eu não queria dançar, mas ela sempre foi muito ligada à sua cultura e me transmitiu essa devoção. Hoje, sou muito grato a ela e ao meu pai pelo apoio que me deram na arte. Sou fascinado por sua cultura.

Onde você aprendeu o Kathak?
Em Londres e na Índia. Nos anos 80, havia uma grande energia criativa girando em torno do Kathak, sobretudo em Londres. Sempre tive um guru até que percebi que eu tinha que ser o meu próprio mestre. Com disciplina e muito treino, consegui o que eu queria para mim mesmo.

De que forma a sua formação em dança contemporânea influenciou o seu trabalho?
Minha experiência em balé e dança contemporânea começou em 1994, na Universidade De Montfort, em Leicester. Dois anos depois, fui transferido para a
Northern School of Contemporary Dance, em Leeds, onde fiz minha graduação. Mais tarde, adicionei à minha experiência em dança o estudo de balé clássico e as técnicas de Martha Graham, Merce Cunningham, Alexander, contato-improvisação e teatro físico, quando ganhei um controle maior do meu corpo. Mas eu não diria que todas essas técnicas influenciaram o meu trabalho de maneira visível. Eu me aproximo da dança por meio de uma estética oriental, ainda que a linguagem do movimento seja muito mais ocidental.

A dança contemporânea foi uma forma de atrair público para a longínqua dança clássica da Índia?
Não. Creio que a dança contemporânea atraiu um maior número de pessoas para a minha forma de expressão artística, mas essa não foi a minha intenção. A dança contemporânea foi uma necessidade já que eu vivo em Londres. Ainda assim, eu não poderia abrir mão da minha linguagem corporal de origem. Por isso, hoje, prefiro me referir à minha técnica através do termo “confusão” ao invés de “fusão”.

Qual o papel da música no seu processo criativo?
A música é o meu ponto de partida. Através dela as pessoas têm a oportunidade de se conectarem e de vivenciarem a emoção despertada pelo ritmo. Eu trabalho muito próximo ao compositor nas minhas criações. Tento desenhar com ele diferentes sons e estéticas das mais diversas culturas. Em Londres, aprendi a tocar tabla, instrumento de percussão indiano, o que me ajudou muito a dançar.

Se você pudesse tocar algum outro instrumento, qual seria?
O violão. Sou um grande fã de Caetano Veloso. A primeira vez que o ouvi tocar ao vivo, quis me tornar aquele homem sul americano com uma bela voz e presença de palco. Isso durou mais ou menos um ano [risos].

Em “Vertical Road” você conta com um elenco de artistas provenientes da Ásia, da Europa e do Oriente Médio. Como você os escolhe?
Na maioria das vezes são recomendados a mim, mas também há audições extensas. Durante o processo, os meus bailarinos são estimulados a se envolverem criativamente. Eles são os autores dos seus próprios personagens.

Uma das inspirações de “Gnosis” foi uma história contida no épico hindu Mahabharata. Poderia resumi-la? Que mensagem você quer transmitir para o público?
Gandhari é a esposa de um rei cego, que põe em si mesma uma venda permanente nos olhos a fim de compartilhar com o marido a mesma experiência de vida. Eu queria explorar essa relação de forma contemporânea. A mensagem é sobre poder, ganância, e sobre a extraordinária visão interior de Gandhari. Mais tarde, ela veria o seu destino, sem deixar de passar por conflitos internos. Gnosis é sobre essa batalha humana diária pela consciência de si.

Você expressa um respeito muito grande pelo seu produtor Farooq Chaudhry. Qual o papel dele nas suas criações?
Ele está sempre envolvido no meu processo criativo e cria situações para que eu possa trabalhar no melhor dos cenários. Sua contribuição tem sido imprescindível para o sucesso da companhia.

Em setembro do ano passado você estreou no Reino Unido sua mais recente peça, “Desh”, indicado ao prêmio Olivier deste ano na categoria Nova Produção em Dança. A que você atribui a boa recepção que a peça tem tido no seu país?
Eu não costumo levar os críticos muito a sério. Respeito aqueles com quem se pode aprender algo. Desh tem sido muito bem recebido no Reino Unido. É um solo inspirado na minha terra-natal em que uso corpo e voz para retratar personagens familiares no cotidiano cultural de Bangladesh. Esperamos levar o espetáculo a São Paulo em 2013.

Em que outros projetos está envolvido?
Este ano continuo em turnê com o espetáculo Desh e estou atualmente pesquisando para uma nova criação da companhia que estreia em abril de 2013. Até 2014, estarei desenvolvendo também um novo solo de Kathak.

Deborah Rocha é jornalista freelancer e mantém um blog de dança – www.caisdocorpo.com.br.