Balé de Rua no coração de Paris

Transgredindo o que a natureza brasileira poderia oferecer a negros e mulatos oriundos da periferia de uma pequena cidade do interior do Estado de Minas Gerais, os componentes da Cia Balé de Rua ultrapassam a barreira social. Como num ato de resistência, eclodem em Paris, permanecendo em cartaz no Teatro Trianon, numa temporada de três meses[1]. Conseguem elevar o característico mau humor dos parisienses às graças e magia da efervescência brasileira.Nesta composição homônima apresentada em Paris, os dançarinos do Balé de Rua tocam em cena instrumentos de percussão acompanhando as músicas compostas por Naná Vasconcelos e Vincent Artaud. Os bailarinos apresentam movimentos ondulatórios em suas composições coreográficas. Esses movimentos, característicos do povo brasileiro, pontuam a diferença dos movimentos lineares e repressivo/repressor do povo francês. Movimentos estes bem característicos do ‘corpo dócil’ descrito por Foucault[2]. Assim sendo, nesta composição, os bailarinos desta companhia preservam os ‘afetos dos espaços estéticos'[3] brasileiros. Não corrompem o corpo imaterial a fim de serem aceitos por curadores que exigem padrões estéticos que não lhes são comuns.

Essa violação citada acima, mostra-se presente entre a maior parte das companhias brasileiras de street dance, que se esforça para manter um padrão norte-americanizado de felizes cristãos protestantes.

Do mesmo modo, diversas companhias brasileiras de dança contemporânea esforçam-se para que seus trabalhos assemelhem-se aos trabalhos de companhias européias[4], colaborando para perpetuar a noção cristã/platônica[5] do corpo.

Vejo que muitos curadores brasileiros de dança teimam em colaborar com a divulgação do corpo sado-masoquista da referida noção, muito apreciado na Europa. Num ato ditatório, determinam o que deve ser feito pelas companhias, para as mesmas serem aceitas nos festivais e mostras de dança. Assim, padronizam um estilo de representação do corpo em cena, contribuindo para o empobrecimento dos ‘afetos corporais'[6] do dançarino brasileiro.

Superando a segunda barreira

A beleza destaca-se perante o olhar, quando existe uma identificação entre as coisas. Quando nos olhamos de ímpeto no espelho, é comum não haver o reconhecimento da imagem refletida no mesmo. Para haver a identificação é preciso que haja o reencontro de imagens familiares. Para isso buscamos entre as coisas estocadas no fundo da memória, de maneira que a imagem familiar sobreponha-se à imagem estranha vista no espelho. A partir daí promove-se a identificação e o reconhecimento do belo. Do contrário, pode acontecer o estranhamento. Como diz Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho…”[7].

Ser como brasileiro[8] é o objeto de desejo que o povo do velho mundo sonha conquistar a partir da recente miscigenação nos países brancos. Esquecem-se, porém, que no Brasil essa miscigenação iniciou-se há mais de 500 anos com a entrada do povo português[9].

Mesmo que ser-brasileiro seja o objeto de desejo do povo branco, o brasileiro e a arte feita por brasileiros têm um caráter exótico, como ‘cartão-postal-do-Rio-de-Janeiro’, sobretudo ao olhar dos franceses.

A fim de provocar a aproximação, a Cia Balé de Rua inicia o espetáculo com uma imagem familiar. Apresenta um samba em que os dançarinos estão caracterizados por chapéu-terno-e-gravata, uma homenagem ao ‘malandro’, personagem característico nos sambas dos anos 20. Aparentemente o trabalho da companhia vai desenvolver-se como uma caricatura vendável no exterior.

De fato o ‘gringo’ gosta, bem como espera ver esta caricatura-cartão-postal. Afinal, é isso que a média francesa conhece. E gostar do caricatural, talvez seja a maneira encontrada a fim de manter certa distância. Dessa maneira preserva-se da frustração de não reconhecer-se nas imagens, posto que de fato não pode mesmo reconhecer-se. Não deixa de ser uma forma de defesa, como vemos na fábula A raposa e as uvas, de Jean de La Fontaine.

A dessemelhança autoriza a manutenção da noção que o não-intelectual francês cultiva: por mais ignóbil que ele seja (e ele não se considera assim) ele será sempre melhor que não importa qual estrangeiro. Posicionam-se dessa maneira, sobretudo em relação aos que nasceram em países em desenvolvimento como é o caso do Brasil. Assim sendo, eles preferem manter a imagem caricatural à possibilidade de poder assemelhar-se ao tido como menor.

O que percebo no trabalho da Cia Balé de Rua é que de maneira criativa o espetáculo prossegue e arranca suspiros da platéia ao afinar a semelhança, quando apresenta Ave Maria, de Schubert[10], em ritmo de samba. Neste momento, o muro que separa o mundo clássico e o mundo moderno destruído e em seu lugar percebe-se a presença de um ponto tangente entre o velho e o novo. Assim abre-se para a identificação da semelhança e oferece um ponto tangente entre o velho e o novo. Assim abre-se para a identificação da semelhança.

A partir daí, rompem-se as dissonâncias. Os parisienses despelam-se e prevalece o desejo de abrigar-se sob a pele do brasileiro. É como se de fato o povo do velho mundo se transpusesse além oceano, transformando-se em brasileiro, num hipnótico e verdadeiro carnaval descrito por DaMatta[11], onde tudo é possível.

Num determinado trecho desta composição da Cia Balé de Rua, os dançarinos pintam seus corpos com tintas que misturam-se à medida que são acrescentadas nas diversas partes do corpo. Esse movimento abre a possibilidade para numerosas interpretações. Dentre tantas, pode ser visto como um elogio à miscigenação como também às múltiplas e infinitas tonalidades das cores da fauna e da flora brasileira, ou simplesmente como abstracionismo. De fato a interpretação do espectador vai depender dos seus afetos.

Em outro momento eles apresentam uma cena que pode remeter a um cortejo cristão. Carregam um objeto, como fazem os cristãos transportando seus ícones nas romarias. Deste objeto coberto por um tecido surge um dançarino que está posicionado de cabeça para baixo.

Esta cena conduziu-me a pensá-la como símbolo do rompimento de Merleau-Ponty com o discurso do corpo dual proposto por Platão e assimilado integralmente pelo pensamento judaico/cristão. A noção do corpo em Platão alimenta diretamente a noção de corpo no Antigo Testamento. Conforme Shusterman[12] em acordo com Schaeffer[13], a noção de corpo no mundo ocidental tem como referência a noção do corpo proposto pelo Cristianismo.

Sabemos através de Schopenhauer[14] que a noção budista do corpo revela-se pelo sofrimento do mesmo. Porém, é importante pontuar que o mundo ocidental é regido pelo pensamento do Cristianismo e não do Budismo. E, mesmo que nos consideremos laicos, a referência no mundo ocidental permanece sob a égide do pensamento Cristão. Assim, agimos e pensamos conforme os ditames da noção do corpo proposto por Platão/Cristianismo.

Em seus discursos, Platão[15] revela a imagem do corpo como túmulo e prisão da alma. Para ele a carne é motivo de vergonha e o símbolo do pecado. Sócrates, personagem de bastante relevância para a fala de Platão, suicida-se[16] num ato de vaidade, por considerar que o corpo é matéria de descaso.

Merleau-Ponty[17] propõe a inteligência, ou seja, o espírito como parte integrante do corpo assim como concebemos um olho, uma mão etc. Juntos, esses elementos formam a unidade corporal. Para ele, o humano desvela-se perante o mundo através da materialidade do corpo. A pele faz a fronteira entre o íntimo e o social. Ela é o invólucro dos músculos, ossos, vísceras, humores etc. A carne organiza-se sob a pele, e através da projeção do olhar do outro[18], modela-se segundo as normas sociais[19].

A cena do espetáculo Balé de Rua na qual aparece um dançarino posicionado de cabeça para baixo, remete mais à imagem (invertida) do ‘Louco’ do tarô de Crowley[20] do que ao ícone da Santa Mãe cristã. Assim, a Cia Balé de Rua compactua-se com Merleau-Ponty e distancia-se de Platão, quando deixa à deriva a possibilidade de interpretação dos ícones. Afasta-se da noção repressora do corpo indo ao encontro da proposição de Nietzsche[21] quando ele sugere que é necessário desfazer-se desta moral de escravos. Pois a arte tem um caráter liberatório em face às novas propostas. Não necessita, portanto permanecer no domínio das crenças e religiões.

Outro atributo da Cia Balé de Rua é que, enquanto a maioria dos grupos que trabalham com a dança egressa dos negros da América do Norte mantém-se submissos ao discurso do colonizador ao reproduzirem os característicos gestos e estilo de músicas desta subcategoria artística; o que percebo é que Fernando Narduchi e Marco Antônio Garcia transmutam com irreverência a street dance norte-americana em Balé de Rua com toda a imanência do povo brasileiro.

(1)Inicialmente a temporada seria de dois meses.

(2)Michel Foucault, Surveiller et punir, Naissance de la prison, Paris, éditions Gallimard, collection Tel, (1975), (1er dépôt dans la collection : avril 1993), 2006.

(3) Noção que venho desenvolvendo em minha tese de doutorado a ser publicada em 2009.

(4) Essa observação foi reforçada a partir de vídeos que recebi após uma convocação feita por meio da revista eletrônica https://idanca.net/2007/02/12/videos-brasileiros-para-o-dia-internacional-da-danca-em-paris/, publicado no dia 12/02/2007. Nos numerosos vídeos que assisti de artistas de diversas cidades e estados do Brasil, foi relevante a constatação do que afirmo no texto.

(5) Jean-Marie Schaeffer, La chair est image in Qu’est-ce qu’un corps? Afrique de l’Ouest/Europe occidentale/Nouvelle-Guinée/Amazonie sous la direction de Stéphane Breton., Paris 2006, Ouvrage coédité par le musée du quai Branly et les éditons Flammarion.

(6) Noção que venho desenvolvendo em minha tese de doutorado a ser publicada em 2009

(7) Caetano Veloso, Sampa, in Caetanear, Brasil, Polygran.

(8) Para melhor compreender essa noção, sugiro ler Roberto DaMatta. O que faz o brasil Brasil?, Rio de Janeiro, Brasil, editor Rocco 1984

(9) Sobre esta questão sugiro pesquisar em Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, editora Companhia Das Letras, 1995

(10) Franz Peter Schubert, Ave Maria

(11) Roberto DaMatta. O que faz o brasil Brasil?, Rio de Janeiro, Brasil, editor Rocco 1984.

(12) Richard Shusterman, Conscience du corps, pour une soma-esthétique, traduit de l’anglais (USA) par Nicolas Vieillescazes, Paris, éditions de l’éclat, 2007

(13) Jean-Marie Schaeffer, La chair est image in Qu’est-ce q’ un corps? Afrique de l’Ouest/Europe occidentale/Nouvelle-Guinée/Amazonie sous la direction de Stéphane Breton, Paris, Ouvrage coédité par le musée du quai Branly et les éditons Flammarion, 2006.

(14) Arthur Schopenhauer, Le monde comme volonté et comme représentation, Paris, editora PUF,

(15) Para melhor se aprofundar sobre esta questão sugiro ver, sobretudo em: Phédon, Timée, Philèbe e La République.

(16) Platon, Phédon, Traduction nouvelle, introduction et notes par Monique Dixsaut, Publié avec le concours du Centre national des Lettres. Paris, GF Flammarion, 1991.

(17) Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception Paris, éditeur Gallimard, coll. Tel 1945 (1996).

(18) Jean-Paul Sartre, L’être et le néant, Essai d’ontologie phénoménologique. Edition corrigé avec index par Arlette Elkaïn-Sartre, Paris, collection Tel, Gallimard 1943, (1996)

(19)Michel Foucault, Surveiller et punir, Naissance de la prison, Paris, éditions Gallimard, collection Tel, (1975), (1er dépôt dans la collection : avril 1993), 2006.

(20) Gerd Ziegler, Tarô, espelho da alma. Manual para o Tarô Aleister Crowley, tradução: Maria de Almeida, Revisão técnica: Swami Dhyan Yukti (Marcelo Passos), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.

(21) Fréderic Nietzsche, Généalogie de la morale, traduzido por Éric Blondel, Ole Hansen-Love, Théo Leydenbach et Pierre Pénisson, introdução e notas por Philippe Choulet, com a colaboração d’Éric Blondel para as notas, traduzido com o concurso do Centre national du Livre. Paris, editora GF Flammarion (1996), 2002.

Márcia Almeida é doutoranda em Estética (Filosofia da Arte), na Université Panthéon-Sorbonne-Paris1 e membro do CID-UNESCO (Conselho Internacional de Dança-UNESCO)