Base Nacional Comum Curricular: por que isso interessa à dança?

A legitimação do ensino da dança nas escolas brasileiras ainda não é uma realidade. Apesar da Arte configurar-se como disciplina no currículo da Educação Básica desde 1996, não há nenhuma garantia para a presença da Dança nas escolas, mesmo que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) sugiram esta como um dos quatro campos artísticos a ser ensinado nas escolas, juntamente com as Artes Visuais, a Música e o Teatro. No entanto, há um Projeto de Lei (7032/2010) em tramitação no Congresso Nacional que prevê a garantia do ensino dessas quatro manifestações artísticas. O PL foi aprovado em 2013 na Comissão de Educação e Cultura e em 2015 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, ambas da Câmara dos Deputados.

Enquanto isso, o Governo Federal, por meio do Ministério da Educação, tem investido fortemente na divulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNC). Campanhas publicitárias na TV, rádio, jornais e também nos sites oficiais do Governo, inclusive através das redes sociais, têm convidado a população a conhecer e contribuir com a redação final do documento, divulgado pelo MEC em setembro de 2015, e que segue em consulta pública até o próximo dia 15 de março. Mas de que forma esse documento poderá impactar o ensino das artes nas escolas?

Segundo o MEC, a BNC “vai deixar claro os conhecimentos considerados essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros terão o direito de ter acesso ao longo de sua trajetória na Educação Básica”, desde o ingresso na creche até o final do ensino médio. A investida não é uma novidade. A Constituição de 1988 já previa a fixação de conteúdos mínimos com a finalidade de assegurar uma formação básica comum. Com a criação do Plano Nacional de Educação, em 2014, a proposta foi ampliada para o ensino médio. Contudo, a história da educação já demonstra que o currículo também pode ser compreendido como instrumento de manipulação dos saberes – ou, melhor ainda, do que efetivamente se deve saber e, portanto, a elaboração de um currículo está longe de ser uma plataforma desinteressada de proposição de conhecimentos.

O documento disponibilizado para consulta pública está dividido em quatro áreas de conhecimento: matemática, linguagens (onde se insere a arte), ciências da natureza e ciências humanas. O texto preliminar contou com a participação de cerca de 120 profissionais de 35 universidades, sob coordenação do MEC, e conta ainda com a leitura crítica de outros professores com atuação e pesquisa nas diferentes áreas que compõem o texto da BNC. Para o componente curricular Arte foram convidados 10 profissionais, mas apenas um deles é da dança, o que já demonstra um enorme descompasso nas possibilidades de negociações ou proposições para a formulação do documento.

A proposta do MEC com a BNC é buscar a padronização de 60% do currículo (parte comum) da educação básica e orientar a elaboração do Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas. A proposta prevê ainda que os outros 40% do currículo (parte diversificada) sejam formulados pela equipe de profissionais das escolas, considerando a diversidade, as particularidades e os contextos de onde estão inseridas. Outros países já realizaram proposições desse tipo, a exemplo da Coréia do Sul, Austrália, Chile e Estados Unidos, porém, com encaminhamentos distintos entre si. De acordo com o que foi divulgado pelas instituições apoiadoras da BNC, a proposta brasileira guarda grandes semelhanças com as implantadas na Austrália e EUA, especialmente no que se refere à metodologia utilizada. No Brasil, os principais apoiadores do projeto da BNC são a Fundação Lemann, a Fundação Victor Civita e a Fundação Itaú Social.

Por fim, mas não menos importante, vale lembrar da importância de uma reflexão sobre os impactos de um pensamento neoliberal na proposição de um currículo que se deseja balizador naquilo que deve ou não ser ensinado nas escolas de um país. Quais os interesses por trás desse processo? De que modo podemos (eu, você e todos os demais que estão lendo este texto) colaborar de forma crítica na tomada de posição sobre este tema? O convite é para seguirmos no debate.

As dúvidas são muitas e para ampliar o debate acerca do documento divulgado pelo MEC e contribuir com o posicionamento crítico no envio de sugestões através da consulta pública, compartilho aqui uma entrevista realizada com a pesquisadora e bailarina Carla Andrea Silva Lima, mestre e doutora em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, e que contribuiu como única especialista da dança na elaboração do documento preliminar da BNC. Carla é também professora do curso de licenciatura em dança da UFMG. A entrevista traz elementos esclarecedores do processo de elaboração da BNC, e vem somar aos diversos documentos publicizados por universidades, fóruns, associações e demais formas de organização dos profissionais das artes e da educação acerca do tema.

 

Alexandre Molina: Qual a diferença entre a BNC e os PCN?

Carla Andrea Silva Lima: Os PCN são parâmetros curriculares, ou seja, eles são um documento norteador na elaboração das propostas curriculares das escolas e/ou Secretarias de educação. A Base Nacional Comum, prevista no Plano Nacional de Educação, é um documento normatizador, ou seja, ela será implementada para normatizar 60% do currículo de todas as escolas e/ou Secretarias de Educação do país. Isso quer dizer que 60% da proposta curricular de qualquer escola de educação básica deve obedecer e seguir o disposto no documento que consolida a Base Comum de toda a educação brasileira. É um documento normatizador que carrega já nele uma proposição de currículo e o que deve ser ensinado nas escolas sob a perspectiva de objetivos de aprendizagem.

 

A.M. Considerando que a BNC tem propósito normatizador, quais as implicações de pensar um documento dessa natureza para a arte, que é uma área que, dentro outros aspectos, lida com instabilidade, criatividade, emergência e posicionamento crítico?

C.A. Isso traz como implicação a reflexão sobre de que comum se trata na BNC tal como ela está posta no documento preliminar. Sei que pode parecer estranho, sob um primeiro olhar, que eu, como pertencente ao quadro de especialistas que colaboraram com a elaboração desse documento preliminar apresentado para consulta pública, apresente uma perspectiva crítica em relação a ele.

Entretanto, acredito que apresentar essas dissidências se torna fundamental para a compreensão de como se deu minha participação em particular na elaboração do documento e para mostrar que a perspectiva crítica e a demanda por um debate mais aprofundado sobre as diretrizes apresentadas para elaboração da BNC existiram internamente na equipe, decorrentes do questionamento de alguns especialistas. Acredito que a instabilidade, a criatividade assim como a emergência de um posicionamento crítico devam ser fatores a serem trabalhados não somente no ensino de rte como também é fundamental que esses fatores sejam levados em conta na elaboração de um currículo. Acrescentaria a essa lista o respeito à diversidade e à diferença. Em decorrência disso me parece importante debatermos sobre de que “comum” estamos tratando e de como ele se apresenta nessa proposta preliminar da BNC.

São questões que me faço cotidianamente, não sem um reflexão ética sobre a própria pertinência de minha continuidade ou não nesse processo. É importante sabermos se o foco numa educação cidadã já deu o que tinha que dar ou se ainda devemos insistir e sonhar com isso. A mim parece fundamental insistir numa formação integral e cidadã problematizando o que a torna possível e reconhecendo o que ainda podemos aprender e inventar conjuntamente para tornar isso possível.

Recentemente revi um trecho de uma entrevista de Eduardo Galeano que me tocou profundamente em que ele disse de um colega que se fazia uma pergunta todos os dias. Essa pergunta era: para que serve a utopia e ainda se a utopia servia para algo. Para esse colega de Galeano essa pergunta insistia como um objeto urgente que o colocava em trabalho de desejo e de vir a ser. Esse trabalho o fez, nesse movimento de se perguntar para construir, afirmar: “Veja bem, a utopia está no horizonte e se está no horizonte eu nunca vou alcançá-la porque se caminho dez passos a utopia se distancia dez passos e se caminho vinte passos a utopia se vai colocar vinte passos mais além, ou seja, eu sei que jamais, nunca vou alcançá-la. Para que serve? Para isso, para caminhar”. Desse modo, penso que, nesse caminhar, vamos inventando delineamentos, construindo o exercício ético e cidadão, e nos tornamos mais humanos, mesmo que não cheguemos ao ponto idealizado utopicamente. E esse caminhar nos torna sujeitos de desejo assim como sujeitos críticos, isso se não abdicarmos de nossa responsabilidade na construção de diversos conhecimentos de si e do mundo assim como na construção de um país que lide de forma contundente com suas idiossincrasias e com sua terrível desigualdade.

Nessa perspectiva, não acredito na opção por uma educação de formato tecnicista em detrimento de uma formação cidadã sob o argumento de que essa não surtiu o efeito esperado e de que devemos dizer ao professor o que ele deve ensinar assim como estabelecer o que nossos jovens devem aprender e os valores que eles devem desenvolver para atuar no mercado de trabalho. Ainda sob essa questão pergunto: qual o efeito esperado e a partir de qual perspectiva? Sabemos, e isso está posto, sobre os variados interesses de grupos e fundações na consolidação dessa Base sob um viés tecnicista. O risco que vejo nesse viés é o de construirmos um currículo baseado na demanda do que se acredita que o mercado necessite e não na inventividade humana e de com isso, acabarmos por tomarmos a educação como espaço de provimento de mão de obra para esse.

Dessa forma, se o mercado disser: “Precisamos de jovens que saibam apertar parafuso para o lado direito”, começamos a formar jovens que apertam o parafuso para o lado direito e se ele diz, a partir de agora precisamos de jovens apertando parafuso para o lado esquerdo” mudamos as coisas e vamos todos apertar para o lado esquerdo? E nesse rodo, a partir dessas demandas, comuns a todos, são arrastados os índios, os negros, os gays, as lésbicas sem qualquer reflexão a respeito da singularidade dos espaços a partir dos quais esses grupos se reconhecem e problematizam sua existência e ação no mundo. Penso que essa equação entre a busca por uma formação sensível e cidadã que torne sujeitos aptos a estar no mundo e lidar com ele de forma crítica e inventiva atenda também ao que se espera de um profissional atuante no mercado de trabalho com espaço, inclusive, para que essa pessoa critique a demanda mercadológica e problematize alternativas em relação a ela. Desse modo, penso que o caráter diretivo e tecnicista que muitas vezes percebi e pontuei internamente no processo de elaboração do documento seja extremamente ruim para a Arte, em particular, e para o Ensino como um todo.

 

A.M. O documento da BNC considera as artes visuais, a dança, a música e o teatro como subcomponentes do componente curricular arte. O que você pensa sobre essa forma de organização? Isto não seria uma maneira de continuar dificultando a presença das artes de forma autônoma no currículo?

C.A. Na verdade muito tem sido falado sobre essa questão. Uma das coisas que tem sido apontada é a de que essa nomenclatura seria uma jogada do MEC para tirar a Arte do currículo. Entretanto, infelizmente, a coisa não foi bem assim. Ou seja, não foi o MEC ou nós especialistas coadunados com o objetivo do MEC de tirar a arte do currículo que bolamos essa estratégia, por mais pertinente e necessária que seja a denúncia em relação a nomenclatura sub. Uso o termo infelizmente porque o fato disso ter sido uma elaboração nossa mostrou que naquela ocasião fomos ingênuos e não atentamos realmente para a etimologia da palavra sub. O que é péssimo. A estratégia equivocada foi a de que, uma vez demarcada a arte como componente curricular e tendo em vista a necessidade de delimitar muito claramente os quatro campos artísticos acabamos, como já coloquei, ingenuamente, nomeando-os como subcomponentes.

Acho, particularmente, as críticas e todo movimento contrário a essa nomeação extremamente pertinentes e salutares uma vez que não nos atentamos para a problemática dessa infeliz ação de nomeação e o que ela implicava. Me parece importante que essa questão seja esclarecida, pelo menos para mim, pontuar isso se faz importante nesse momento. Acredito ainda que existem questões que merecem ser discutidas por nós com maior profundidade. Particularmente penso que a proposição de uma Base Comum Curricular, nesses moldes de objetivos de aprendizagem é danoso para a nossa área. Penso ainda que é importante dar a conhecer a luta interna que muitos de nós, especialistas contratados para elaboração do documento preliminar, travamos de modo a registrarmos e documentarmos esse histórico para que juntos possamos construir as mudanças requeridas, a partir de uma leitura crítica, no documento.

Internamente, e de imediato uma das ações impetradas por alguns de nós, especialistas, foi a de pleitear para que a Arte se constituísse como área independente da área de Linguagens. E isto parece ser tão claro para alguns de nós que acredito que aqui não preciso dizer da pertinência dessa demanda. Basta ver a diversidade metodológica e de fundamentação teórica das pesquisas no ensino da Arte para percebermos que a compreensão da arte como linguagem, que resulta em sua inserção na área de Códigos e Linguagens, é apenas uma das várias abordagens possíveis de seu ensino e de sua investigação. Desse modo, faz-se importante que um documento que tem um caráter normatizador, como é o caso da BNC, se debruce sobre essa pluralidade.

Entretanto, diante dessa demanda, o retorno que tivemos das instâncias superiores e coordenadoras do documento era de que a BNC deveria seguir as Diretrizes Curriculares Nacionais e que lá somos pertencentes à área de Linguagens e ponto. Particularmente acredito que, se estamos nesse momento debruçados na construção de um currículo nacional e tendo em vista o tempo já decorrido das Diretrizes e o avanço no ensino e pesquisas vinculadas ao ensino de Arte na Educação Básica, essa era exatamente a hora de realizarmos atualizações e entendermos a importância e pertinência da Arte se consolidar como área, reafirmando seus componentes curriculares a saber: as Artes Visuais, a Dança, a Música e o Teatro  – por enquanto, até que novas formas de criação e demandas surjam.

A outra questão à qual não tivemos como propor mudanças – pois foi delineada antes da contratação dos especialistas que redigiram o texto preliminar – foi concernente à proposta de currículo apresentada pelo MEC que não pudemos debater e não tivemos como mudar o encaminhamento dado. E sabemos obviamente que a proposta curricular, assim como a epistemologia que a sustenta tem também um viés político e acarreta implicações políticas. Eu particularmente acreditava que, uma vez convidada para fazer parte da equipe de especialistas (é assim que nos chamam) que elaboraria o documento preliminar da Base Nacional Curricular, estaria sendo chamada para iniciar uma discussão sobre qual currículo seria mais pertinente para nosso contexto. Que nos debruçaríamos sobre estudos variados, uma vez que temos em nosso país grandes pesquisadores de currículo, que nos colocaríamos questões difíceis como: Como pensar uma Base Nacional Comum num país que carrega tanta diversidade e também (e ainda temos que falar nisso, sim) tanta desigualdade? Comum a partir de quê perspectiva? De que comum se trata?

Entretanto quando chegamos para o trabalho o desenho da proposta curricular já estava delineado, ou seja, a proposição do currículo por objetivos de aprendizagem, por exemplo, já estava posta. Não era possível questioná-la, ou ainda, até era possível e isto foi feito por alguns de nós, mas só tivemos como resultado uma certa indiferença a tudo que não aderisse à proposta inicial já dada. As demandas e os questionamentos não tinham escuta. Uma outra questão demandada por nosso grupo de especialistas em arte e que teve meu apoio foi sobre a necessidade de que o MEC contratasse mais especialistas para Dança e a Música, em função da discrepância gritante da representatividade desses dois campos artísticos em relação aos demais campos da arte na equipe de elaboração do documento preliminar. A equipe contava com quatro especialistas das Artes Visuais, quatro especialistas do Teatro e apenas um da Dança e um da Música. Na Dança e na Música não tivemos pares para debate. Essa foi mais uma demanda que não obteve escuta.

 

A.M. A BNC propõe uma compreensão da arte como linguagem. Quais as implicações disso para o ensino das artes nas escolas?

C.A. A implicação disso é a da implementação, via proposta curricular, de uma abordagem unicista e monolítica, uma vez que a abrangência do que podemos entender e conceituar como arte é enorme, o que tem trazido anos e anos de problematizações extremamente ricas nesse campo. Digo isso na perspectiva de uma proposição curricular que, mais uma vez, ao invés de problematizar a diversidade e, mais ainda, o lugar da diferença, a ignora. E isso é reducionista. Propor um currículo com caráter normatizador, encaixando-o somente numa das diversas perspectivas de abordagem da arte como campo de conhecimento de forma geral e de seu ensino em particular é reducionista.

 

A.M. A arte está no currículo da educação formal no Brasil desde os anos 1970 e de lá para cá ela tem sido considerada em diferentes dimensões, partindo de atividades até o formato de disciplina, mas que ainda não garante o ensino, no mínimo, dos quatro setores que dispõem de licenciaturas autorizadas pelo MEC (artes visuais, dança, música e teatro). De que maneira a BNC poderá colaborar com a garantia do ensino desses segmentos artísticos na escola?

C.A. Isso vai depender da qualidade do documento que a gente conseguir produzir, e quando digo a gente, aqui, não estou falando do grupo de especialistas contratados, porque acho que consegui oferecer um quadro de como as nossas demandas, críticas e contribuições vêm sendo recebidas e sobre o caráter diretivo do processo. Reitero que essa dimensão crítica se dá sob minha perspectiva em particular não abrangendo todo do grupo de especialistas, digo isso para deixar claro que não falo em nome de todo o grupo. Enfim, retomando, quando digo “a gente” estou dizendo a sociedade civil de um modo geral (se ela for obviamente sensível à pertinência e importância da arte na educação básica) e do grupo de pesquisadores, professores universitários e professores da educação básica da área de arte especificamente. E ainda das associações como a Abrace, a Faeb, a Fabem, a Anped, para citar algumas. É necessário forçar essa fronteira, esse muro, para que uma escuta efetiva possa se dar. Uma escuta que realmente viabilize o debate de forma horizontal e que lide com a emersão da diferença com a qual a BNC deve se haver e não ignorar.

 

A.M. A dança aparece como conteúdo em dois componentes curriculares na BNC: na arte e na educação física. Como se deu essa escolha durante a elaboração do documento e quais as implicações educacionais dessa opção, considerando a autonomia da dança como área de conhecimento?

C.A. Eu fui uma das pessoas que lutei contra esse encaminhamento, mas nesse ponto acredito que posso dizer que havia um consenso entre todos os especialistas do componente curricular arte de que ali havia ingerência, sim, de um campo de conhecimento sobre o outro. Quando tive conhecimento dessa situação comecei de imediato a trocar e-mails com o assessor do componente curricular Arte, o professor Marcos Villela acreditando que com o debate aberto e a solidificação de argumentos pudéssemos efetivamente convencer a todos da pertinência de se pensar a Dança como componente curricular pertencente à Arte reiterando sua autonomia. Foi feita uma carta com a assinatura da maioria dos especialistas do componente curricular Arte (somente um colega não assinou) endereçada à coordenação da BNC, ao diretor de currículos e ao secretário de Educação Básica demandando que a BNC reconhecesse a autonomia da Dança como campo de conhecimento pertencente à Arte e não à Arte e à Educação Física.

O estranho nesse processo é que a vinculação da Dança como componente curricular da Arte está nas Diretrizes Curriculares, as mesmas que na ocasião da defesa da Arte como área na BNC não puderam ser revistas, devendo ser respeitadas, alijando da pauta qualquer debate em defesa de que a arte se consolidasse como área na Base Nacional Comum Curricular. Nesse caso, da alocação dos conteúdos pertinentes à dança sob sua égide, as Diretrizes não foram cumpridas sob o argumento de que as DNC diziam que a Dança era conteúdo obrigatório da Arte, mas não específico dela.

Convém salientar ainda que essa passagem nas Diretrizes diz respeito à Música e não à Dança e é historicamente sabido que no texto há referência a um outro debate que visa garantir na área das Artes o ensino de todas as suas manifestações: a música, a dança, o teatro, para além das artes visuais que tradicionalmente está melhor consolidada nas escolas de ensino básico. Deste modo, ao dizer-se que a música é conteúdo das artes, mas não exclusivo, quer-se dizer que além da música, nas artes, cabe ensinar as artes visuais, a dança e o teatro. A ambiguidade da formulação colocada nas DCN foi logo reconhecida e é por isso que, no momento, tramita um projeto de lei para a correção deste trecho.

Entretanto, este posicionamento das instâncias superiores e coordenadoras da BNC foi sustentado mesmo com nosso esclarecimento de que existia o projeto de Lei de revisão do texto e que tornava as Artes Visuais, a Dança, a Música e o Teatro conteúdos obrigatórios do componente curricular Arte. Convém salientar que o projeto de Lei (PL 7032) não faz qualquer menção de que esses conteúdos não sejam específicos da Arte e convém também salientar que esse projeto de Lei modifica exatamente esse trecho citado pela coordenação da BNC sobre as Diretrizes. O PL7032 proposto já foi aprovado na câmara, passou pelo CNE e aguarda tramitação final. Tendo isso em vista, a BNC corre grande risco de, quando apresentada para aprovação no CNE, no tocante a esse tópico, receba parecer negativo, como um documento “fora da lei” e que desrespeita a dança como campo de conhecimento autônomo. Se não quisermos adentrar nessa questão e aceitarmos o argumento de que a dança é conteúdo obrigatório mas não específico da arte, aí, sim, evidencia-se o desrespeito.

O problemático nessa argumentação é que continuamos perpetuando a confusão entre dança como tema e Dança como campo de conhecimento. A dança pode ser tema a ser abordado por qualquer componente curricular, entretanto, ela é componente curricular pertencente à Arte. Explico melhor: um professor de Matemática pode abordar a dança como tema para que seus alunos entendam melhor determinada relação espacial, entretanto o objetivo do componente curricular matemática continua sendo o ensino de um conteúdo da Matemática: as grandezas espaciais. A Educação Física, ao elencar objetivos de aprendizagem de dança está afirmando que esta é conteúdo próprio do componente curricular Educação Física. É por isso que não se sustenta a argumentação que tem sido usada em defesa da Educação Física de que o que ocorre aí é uma inferência interdisciplinar.

A interdisciplinaridade vai nos ajudar a pensar modos de tomar temas e partes de conhecimentos de outras áreas para que possamos compreender melhor um conteúdo específico à nossa própria área ou disciplina. Isso não tem nada a ver com tomar o conteúdo de um outro componente curricular, como se fosse conteúdo específico nosso. E isso fere as Diretrizes pois não se trata simplesmente de abordar a Dança como tema ou de trazer um ou outro conteúdo de dança a ser desenvolvido nas aulas de educação física. Trata-se na verdade de dizer que a abordagem da dança compete ao componente curricular Educação Física.

Sabemos que há a argumentação de que abordar a Dança na Educação Básica se tornou uma tradição na educação física. Entretanto, a escravidão foi uma tradição durante anos nesse país e isso não significou que ela não devesse ser combatida, assim como não significa que o racismo não deva ser combatido até hoje. Há ainda a argumentação, feita inclusive por colegas da dança, de que durante muitos anos a educação física cuidou do ensino de dança nas escolas e que muitas vezes não há professores de dança na escola. Entendo essa questão. O Teatro durante muitos anos foi também ensinado pelo professor de Português, certo? Entretanto, a partir do momento que um campo vai se consolidando com pesquisas e licenciaturas voltadas exclusivamente para seu ensino (atualmente temos por volta de 34 licenciaturas de dança no país criadas no Reuni), o quadro de professores especialistas se forma.

Também temos de considerar que é um direito do aluno ser ensinado por professor especializado no campo para o qual ele se preparou. Estranharíamos se houvesse um professor de Português, formado e habilitado para ensinar português ensinando física, não? Foi dito a ela por um profissional da Educação Física: “a gente não quer competir com vocês, a gente só quer poder dar aula de dança na escola assim como damos aulas de vôlei e de basquete”. Entretanto ela argumentou: “me diga onde tem licenciaturas de vôlei e basquete? Vocês percebem a diferença?” Me parece uma chamada para reflexão muito salutar e importante. A Dança se consolidou como campo de conhecimento e precisa ter seu espaço respeitado. Aqui me parece que há também uma confusão em tomar a Dança como uma modalidade da Educação Física. Chegam a falar que a Dança é uma das competências da Educação Física. Entretanto, é preciso maior aprofundamento acerca do universo da dança, pois me parece muito, mas muito redutor e equivocado pensá-la como uma competência da Educação Física, principalmente se pensarmos no contexto em que a Educação Física nasce em nosso país e sob quais objetivos. E sim, os contextos são importantes tendo em vista que eles trazem em seu bojo visões de mundo, do sujeito e nesse caso da relação desse com seu corpo. Sabemos que o corpo é lugar de inscrição dos mais variados discursos de poder e não me parece que devamos ignorar essas questões ao pensar toda a problemática do corpo na escola. Lugar que, por excelência ou por costume, acaba por correr o risco de silenciar os corpos ou insistir na produção de corpos dóceis e disciplinados.

Desse modo, me parece extremamente importante, nesse momento de normatização de uma BNC que se quer comum pensar sobre os diferentes discursos de poder que incidem sobre os corpos na escola, tanto dos alunos quanto dos professores. E isso que trago não é novidade. São vários os estudos que tocam nessa problemática. Nesse sentido é inelutável reconhecer a singularidade da visada da Educação Física e da Dança acerca do corpo e da corporeidade, são perspectivas de entendimento e uso do corpo muito diferentes, com percepções políticas, sensíveis e filosóficas acerca do corpo muito distintas e singulares e nisso reside também toda a potência de um possível diálogo e de propostas interdisciplinares entre os dois componentes e quero deixar claro que não sou contrária a isso. Me parece que reduzir uma ao lugar de modalidade ou competência da outra não é um caminho em que o respeito e o diálogo se colocam como via em busca da pluralidade ou ainda da tão sonhada interdisciplinaridade. Se eu excluo ou fagocito o outro, eu não dialogo, eu corto exatamente as vias de diálogo e troca. É somente uma questão de respeitar os campos e as pessoas que estão construindo conhecimento de forma dialógica nesses campos.

Insisto nessa posição porque não entendo o respeito às singularidades dos campos de conhecimento e o reconhecimento da autonomia desses como uma afronta às propostas interdisciplinares ou transdisciplinares. Sob meu ponto de vista (questão que debati bastante e que agradeço a interlocução com a professora Andrea Penteado) a interdisciplinaridade tem a ver com o como fazer e não com o quê ensinar. Elencar objetivos de dança como pertencentes a seu componente curricular diz respeito a o que ensinar. O mais triste disso é que campos de conhecimento que têm o corpo como lugar de escuta, realização e pesquisa primordiais acabam se vendo numa situação de conflito em decorrência da ingerência, ausência de debate, de reflexão e do desrespeito de um campo sobre o outro. Outra coisa que ouvimos também é que a BNC não era lugar de disputa de espaço. Ora, se a elaboração de um currículo não é lugar de disputa de espaço, desde sempre, não sei o que é. Na minha perspectiva, essa disputa assim como os debates decorrentes dela não devem ser vistos como algo ruim, uma vez que sabemos que a implementação de uma proposta curricular acarreta questões políticas e filosóficas a respeito da formação cidadã, sensível e humana dos habitantes desse país. Desse modo, a constituição de um currículo é feita de escolhas e essas escolhas sinalizam uma opção política e filosófica a respeito da formação do ser.

Outra questão pertinente apresentada e da qual não discordo é a perspectiva de uma formação integral, entretanto não vejo a formação integral como uma ausência pura e simples de delimitações, projetos e desenhos que trabalha e problematiza as fronteiras. Dou como exemplo a diferenciação que se faz por vezes no teatro entre processo colaborativo e criação coletiva (e aqui espero não estar incorrendo em nenhum erro grave). O processo colaborativo não abole a função do dramaturgo, do diretor, do ator numa ausência desses lugares, mas as articula, as coloca em relação próxima, podendo criar, por vezes, a partir desse diálogo profundo e íntimo, a percepção da ausência de fronteiras ou delimitação desses espaços de ação, mas eles estão lá, em exercício, de forma dialógica ou ainda topológica, o que me parece mais interessante.

Desse modo, penso que a formação integral do sujeito na escola deve ser feita a partir da problematização dos campos, dos espaços de construção de conhecimento, repensando, inclusive, a autonomia e participação do aluno na construção e problematização de sua própria formação. Deve ser feita pensando a fundo a consolidação dos discursos de poder, dos espaços solidificados e da não reflexão  sobre esses espaços que acabam por se tornar estagnados. O que se vê nesse caso é a luta por uma área em participar de forma crítica e consistente na formação desse cidadão e que merece ter sua autonomia respeitada como campo de conhecimento. Sabemos que o conflito da dança e a luta da dança com a educação física é antiga e essa contextualização não pode ser ignorada em um projeto de elaboração de uma BNC que se quer normatizadora. Não podemos confundir ingerência de um componente curricular sobre o outro com perspectiva interdisciplinar ou formação integral, sob o risco de não olharmos profundamente e não realizarmos nem uma coisa nem outra por medo do contato, da escuta e do debate efetivo.

Começamos a “dourar a pílula”, a despistar os fatos, a chamar de processo de miscigenação o estupro de centenas de índias e negras como se isso (nossa tão orgulhada mestiçagem) fosse somente e meramente resultado de algo natural e não de uma ação territorialista e de exploração e porque não dizer, incapacidade de ver o outro, de lidar com a diferença reduzindo-o ao tamanho da minha mandíbula. Corremos o risco de tomar como interdisciplinaridade a cooptação de um campo de conhecimento sobre o outro cuja razão não deixa de ser territorialista e de defesa de mercado. Quem perde com isso é o aluno e, exatamente, nós mesmos na possibilidade de pensarmos conjuntamente ações interdisciplinares e de formação integral.

Friso ainda a postura conflitante do MEC que, por um lado, através de uma política do governo, incentiva a criação de licenciaturas em dança, num reconhecimento salutar da autonomia dessa área como campo de conhecimento e por outro tira-lhe a autonomia e campo de atuação a partir da elaboração do documento da BNC.

Finalizo ainda sinalizando que meus posicionamentos podem parecer radicais e talvez sejam, mas lembro então da etimologia da palavra radical que é ir na raiz e reflito, num exercício crítico sobre minha forma de me colocar nessa questão, que, se a construção de um documento que se pretende normatizador não é motivo para se ir à raiz das questões e de realização de um debate efetivo sobre elas, desconheço o que pode ser um bom motivo para isso.

 

 

[Alexandre Molina é pesquisador e artista da dança, professor do Curso de Dança da Universidade Federal de Uberlândia, especialista e mestre em dança pelo PPGDANÇA/UFBA e doutor em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA.]