BTCA: um exemplo

Para alguns modos de existência, fica difícil sobreviver em tempos onde a regra é dada pelo capital e implica na utilização de pouco investimento e recursos para obtenção do máximo de retorno em termos financeiros. A perversa ordem da produtividade de riqueza na qual estamos todos imersos é altamente inclusiva, não deixa ninguém de fora, como nos ensina Eagleton (2005) [1] . Os corpos estáveis de música e dança, mantidos e gerenciados pelo Estado, foram criados em épocas onde não havia cinema e muito menos televisão. Nos nossos dias, eles precisam encontrar estratégias para se afirmar, pois a existência das coisas na contemporaneidade está sujeita a uma pragmática do necessário. No caso da dança, onde impera nesse ambiente a produção de obras que privilegiam o desempenho atlético dos intérpretes, dando terreno para o desenvolvimento da ideologia de que pregam que a carreira do bailarino é breve, os problemas são bem maiores.

Como resistir a mídias tão poderosas em termos de número de espectadores atingidos? Como otimizar os parcos recursos destinados pelos governos para manutenção do trabalho? O que fazer com os bailarinos, funcionários públicos estáveis, que são convidados a parar de dançar após os quarenta anos? Como lidar com a expectativa individual de artistas num grupo que pode chegar ao número de quarenta dançarinos? Essas são perguntas que os trabalhadores das companhias de dança mantidas pelos Estados ou prefeituras no Brasil – em torno de 10 – se fazem todos os dias.

As artes da cena (teatro, dança, opera, circo) durante muito tempo gozaram do privilégio de serem mídias com a potência de atrair a atenção de grandes grupos veiculando idéias. Por esse motivo, não é de se estranhar que a primeira companhia oficial tenha sido criada pelo estado francês, que no século XVIII pretendia impor seus hábitos e costumes como modelo a ser seguido por toda Europa. Porém, com o advento do cinema, o surgimento da televisão, a popularização das câmeras de vídeo e finalmente com as redes de comunicação eletrônicas, a importância, em termos econômicos e políticos, da mídia cênica teatral sofreu muitas perdas. No Brasil, um marco do descaso do Estado para com a produção artística, num plano mais geral, foi a sanção da Lei Rouanet em 1991, transferindo a responsabilidade do gerenciamento dos recursos destinados à produção e circulação das artes no país para as empresas privadas, que decidem o que devem fazer com o dinheiro que seria destinado a imposto, portanto dinheiro público.

Nesse contexto, todo um deslocamento se operou na cultura de modo geral. A proliferação dos programas sociais criados por iniciativas privadas, organizações não-governamentais, o desvelar sistemático e quase que cotidiano de atos de corrupção na esfera política foi ocupando os espaços em jornais e noticiários e reduzindo radicalmente os espaços antes destinados para a arte. Somada a esse fato a redução drástica do quadro de funcionários vivenciada nas empresas de comunicação, momento quando os poucos críticos e especialistas existentes perderam seus empregos e conseqüentemente seus espaços de fala. Como podemos deduzir, há uma complexidade de fatos que tornam a vida das companhias oficiais de dança nada fácil. Poderíamos acrescentar aos já citados a emergência de uma cultura de criação de dança norteada pelo conceito de intérprete-criador que se orienta pela atuação baseada não na reprodução coreográfica de um terceiro, e sim na construção de uma sintaxe cênica autoral.

Selecionar o coreógrafo para a renovação do repertório, criar uma programação que possibilite o exercício cênico dos intérpretes, propor alternativas de trabalho para os bailarinos mais experientes, estabelecer um clima de colaboração entre um grupo grande de artistas, em nosso contexto é tarefa bem difícil.

O Balé do Teatro Castro Alves (BTCA), este ano, faz vinte e cinco anos de existência. Sua nova diretora, Lílian Pereira, que ingressou como bailarina na companhia em 1982, seguindo uma trajetória que passa pela assistência de direção, assume os trabalhos em novembro de 2005 para superar uma extrema insatisfação do grupo de artistas com a direção anterior e com total apoio do grupo, além do apoio de colegas como: de Eliana Pedroso – que hoje é uma das mais importantes produtoras de dança em Salvador – e Konstanze Mello, atual diretora do Espaço Xisto Bahia. As duas também são ex-bailarinas do BTCA. Essa tomada de responsabilidade em áreas fundamentais para a sustentação de um corpo estável (direção, produção e gerência de espaço de apresentação), por quem conhece o ambiente de trabalho bem de perto, forma um contexto de colaboração gerando uma dada segurança propícia para construir as bases para sua sobrevivência e um produtivo ambiente de trabalho.

Uma das estratégias para driblar as adversidades de nosso tempo, que já vêm sendo usadas há algum tempo é ter tornado público o trabalho diário da companhia. Qualquer pessoa pode assistir às aulas e ensaios diários do grupo, bastando apenas agendar por telefone, além de possibilitar ao público o acesso à sua sala de ensaios. O BTCA realiza ensaios abertos, dessa vez no palco principal do Teatro Castro Alves, com aula demonstração e mostra de trechos de coreografias apresentadas com seus respectivos figurinos etc. Dando acesso ao seu dia-a-dia, o BTCA aproxima seu público e admiradores, facilita a vida de pesquisadores e ou bailarinos que querem conhecer o cotidiano da companhia ou acompanhar o processo criativo de um determinado coreógrafo etc. Uma segunda estratégia diz respeito a um projeto de excursionar pelo interior do Estado. Só este ano o BTCA visitou sete cidades em diferentes regiões do Estado, devolvendo para os verdadeiros financiadores desse projeto o resultado do investimento realizado através de impostos pagos.

Em abril de 2005, a exemplo do Balé da Cidade de São Paulo, foi fundado um segundo grupo para bailarinos acima dos 35 anos: a Companhia Ilimitada, com direção de Carlos Moraes e Ivete Ramos. Os bailarinos experientes deste grupo, em criações próprias, desfrutam de uma maior liberdade que se reflete nas obras caracterizadas por uma irreverência muito particular.

O Balé do Teatro Castro Alves é mantido pela Fundação Cultural, órgão da Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia. É composta por vinte e dois bailarinos e está planejando para a comemoração dos vinte e cinco anos, um evento que quer reunir todos os diretores de companhias oficiais do Brasil, num encontro em Salvador com previsão para Novembro deste ano. Esse evento me parece ser um ato muito importante para conhecer e aproximar os diretores dos distintos grupos, formalizar a troca de experiência nos diferentes contextos e quem sabe – o melhor que pode acontecer num evento assim – estabelecer uma rede de ações comuns e colaborativas para fortalecer e dar maior visibilidade ao trabalho que luta para se manter vivo.

A nova conjuntura em que existe o Balé do Teatro Castro Alves dá sinais de vitalidade, sobrevivendo criativamente nas brechas, nos intervalos, entre uma normativa e outra que vigora no sistema capitalista da era pós-industrial em que vivemos. Um dos operadores infalíveis que o BTC tem usado com inteligência é atuação com base na formação de redes solidárias de colaboração. Dessa maneira, nos ensina na prática a diferença básica entre valor e preço, produção e consumo, realidade e imagem superficial. Apesar de não estar livre de todos esses aspectos, lida com eles de modo a subverter seus resultados. Esse exemplo nos possibilita fazer uma reflexão maior sobre a idéia de necessidade e eficiência no plano social.

É dessa maneira que projetos de vida, como os de artistas que dedicaram 25 anos para um espaço de criação e disseminação da cultura da dança na cidade de Salvador, mantêm viva a história da qual, ainda hoje, continuam sendo protagonistas. No contexto contemporâneo do Brasil, a existência de uma companhia como a do Teatro Castro Alves tem sentidos muito diferenciados daqueles que proporcionaram a criação de uma instituição estatal de dança no século XVIII, e uma pesquisa que se dedique a compreender, nas diferentes épocas, os contextos sócio-políticos e econômicos em que emergiram as diferentes companhias de dança – que ainda está por ser feita. Iniciativas como as que vem desenvolvendo o Balé do Teatro Castro Alves devem ser endossadas para que tenham o espaço que lhes é de direito, numa cidade onde todo o dinheiro, espaço de mídia e valor simbólico são dedicados ao carnaval e produtos provenientes dele (abadás, camarotes, axé-music, etc.).

Ainda que mudanças mais radicais pudessem ser operadas na rotina de trabalho, na escolha dos criadores e do repertório, nos modos de apresentação e por fim na forma de existência, encaminhando sua prática artística para uma direção cada vez mais instigante, construir vínculos que se transformam em ato de resistência ao estado de exceção em que vivemos, no qual estamos expostos à “vida nua” (Agamben: 2004) [2], é de fato um ato de natureza política.
Notas:

[1] Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e a pós-modernidade. Civilização brasileira.

[2] Segundo Agamben (p.15) a vida nua é um estado de vida sobre o qual, na política ocidental, a exclusão se funda e na qual se está exposto todo o tempo a experiência de morte. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. UFMG.