Aconteceu…Quem quer saber?

Aconteceu em Belém! Para os menos atentos, Belém é a capital do Estado do Pará, que fica na Região Norte do país, não na Região Nordeste como alguns no Sudeste costumam me perguntar. Pois é, aconteceu nesta cidade, conhecida pelos saudosos como Santa Maria de Belém do Grão Pará, quem quer saber?

Giselle Moreira que leciona na Universidade do Estado do Pará (UEPA) e no ensino superior privado em Belém, publicou um livro e o mais espantoso ainda, um livro sobre dança. Sobre a memória da dança. Dando para o leitor uma exaustiva literalidade de documentos , de arquivos e trechos de antigos livros que remetem a um passado irreversível da dança daquela cidade e que também está ligado ao passado de um dos ícones da Dança Russa no início do século 20: Ana Pavlova. No Brasil, país violentamente colonizado desde 1500, a memória é algo que deve ser estrategicamente apagado e a circulação de informações algo a ser deliberadamente interditado. Quantos que dançam no Brasil hoje têm noção ou a possibilidade de acessar o contexto da dança cênica de Belém? Ou de outras cidades desta nossa República Federal?

Para lembrar o importante trabalho desta Mulher: ginasta da seleção estudantil estadual na pré-adolescência, bailarina do Grupo Coreográfico da Universidade Federal do Pará quando se graduou em Educação Física na juventude, especialista em Dança e em Ensino Superior e também pesquisadora na atualidade. Ele deve ser divulgado, lido, debatido e notificado, podendo, dessa maneira, representar um ato alternativo ao vigor do colonialismo em que ainda hoje vivemos.

O Episodio Pavlova – 2004, como Giselle batizou a sua primeira publicação, é o número um do que promete ser uma série (Dança, Tempo e Movimento) de três tomos. Juntos, eles vão reunir o grande volume de informação e documentos resultantes de sua pesquisa defendida no Mestrado em Educação na Universidade da Amazônia (UNAMA), que é também quem edita a obra. Em suas 160 páginas figura um pouco da trajetória do Teatro da Paz (casa de espetáculos em estilo elisabetano construído entre 1869 e 1878 em Belém); textos publicados pelo jornal Folha do Norte sobre as dez apresentações feitas em Belém por Ana Pavlova; dados sobre a dança local entre 1919 e 1928; a visita de outros importantes nomes da dança a Belém entre 1934 e 1957; além de dois quadros com datas e local de apresentação que dão ao leitor uma cronologia de fatos ocorridos desde 1919 até o ano de 1996. Tudo isso aparece mesclado com um farto número de imagens, entre matérias publicadas, cartazes, programas e fotos. Uma parte delas é de épocas passadas da dança paraense e a outra grande maioria de imagens digitais publicadas virtualmente em sites na internet.

A autora ignora completamente a discussão contemporânea sobre os métodos historiográficos _ que tem como referência emblemática a publicação da revista Annales, editada entre 1929 – 1989 na França – , o impacto dos modelos interpretativos provenientes das ciências sociais, do estruturalismo, pós-estruturalismo e da desconstrução proposta por Derrida (1) … Ignora também as transformações operadas nas metodologias historiográficas da dança e discutidas, por exemplo em Rethinking dance history a reader (2004), editado por Alexander Carter em Londres, e no Brasil na tese de doutorado de Fabiana Britto, Mecanismos de comunicação: parâmetros para uma história contemporânea – defendida em 2002 no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP .

Giselle se limita a conduzir o leitor pela íntegra de textos do passado que narram os eventos os quais lhe parecem pertinentes. Dessa maneira ela quase que cria uma metodologia própria, onde os documentos são hipérbole na narrativa e seu trabalho é mais relativo à compilação do que à critica reflexiva.

A única conclusão, apresentada superficialmente, é de natureza determinista e vincula as transformações ocorridas na dança local, em especial no movimento por Giselle batizado como As Pastorinhas (pg. 81), diretamente com os espetáculos apresentados pelos bailarinos russos. Todo o restante da massa informacional, de tão imperativa presença documental, parece prescindir de conclusões.

O primeiro mérito visível na publicação O Episódio Pavlova está em sua própria iniciativa, por se tratar de produção intelectual em dança do estado do Pará (geografia amazônica inconsciente no imaginário de parte da população das grandes cidades brasileiras). É relevante também por ser a possibilidade de ignição para o debate sobre conhecimento, informação e memória produzidos nos pólos culturais centralizadores e nas periferias à margem das prioridades das políticas públicas culturais. Em muitos casos, estes discursos reproduzem ideologias subservientes motivados por vontades de verdades (Foucault 1971), que associam a verdade a um desejo de poder como estratégia para exclusão.

O trabalho de Giselle também pode ser referência para aqueles que, no futuro, queiram relacionar modos de narrativas sobre dança em diferentes épocas; para aqueles que se interessam pela maneira como a imprensa noticiou eventos de danças no passado em nosso país e é também, claro, um elemento que ajuda a balizar o nível intelectual da historiografia local, apontando para a importância do desenvolvimento de estratégias que dinamizem a circulação de informação, para promover o crescimento da complexidade do ambiente em questão.

Para além de uma valoração parcial desta obra, deve-se aqui ressaltar a importância do evento em si e clamar aqueles inconformados com os esquemas de poder instaurados nas relações do contexto profissional da dança em nosso país a ler O Episódio Pavlova, a contatar a autora, a debater tal realização, a propor colaboração e maior troca de informação usando, como sugestão, espaços como o do www.idanca.net, ou ainda, o site da Rede Sul Americana de Dança (www.movimiento.org), como interlocução entre diferentes grupos com seus temas e questões, gerando um contra movimento que objetive um contexto democrático de participação menos segregador.

* Paulo Paixão é doutorando do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, curador do Programa Pedagógico de Formação em Criação de Dança do IAP (Instituto de Artes do Pará). Professor de Dança da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará.

Notas:

(1) Para um detalhamento maior do tema, ver DOSSE (1987 e 2001).

Bibliografia:

DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. Trad. Ivone Castilho Beneditti, São Paulo:UNESP, 2001.
_____. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Trad. Dulce Oliveira Amarante dos Santos, Bauru, SP: EDUSC, 2003.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio, São Paulo: Loyola, 1996.
PAIXÃO, PAULO. Processos de comunicação em evolução: coreografia eGramaticalidade, Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica – PUCSP, 2003.