CHINA unMADE – Não acredite em nada | CHINA unMADE – Don´t believe in anything

Sheila Ribeiro/dona orpheline está trabalhando em Nanjing, na China, pelos próximos seis meses. De lá, ela vai relatar suas experiências e observações da cultura local como correspondente do idança.

meu nome é…; moro em…; tenho x anos; sou casada; nao acredite em nada é tudo mentira… Assim começamos a aprender mandarim na “lição 1” do livro “Fale tudo em chinês”.

Na China atual, o falso tudo é, menos o contrário do verdadeiro. O falso não é fruto nem de traição, nem de deslealdade. Uma latente realidade do falso me leva a querer apresentar-lhes – em minha primeira correspondência Brasil-China para o idança – a coreógrafa, bailarina, mãe, esposa e ex-coronel, Jin Xing (na foto).

Esta artista é com quem nos deparamos ao chegar na China quando não conhecemos nada sobre a produção, a pesquisa e a criação em dança contemporânea daquele país. Inúmeros jornais, de diferentes partes do mundo e em inglês, francês, italiano, português (e não saberia dizer em chinês) a apresentam da mesmíssima maneira, que, por brincadeira, reproduzo como um disco riscado, assessoria de imprensa preguiçosa, ou ainda, como quem fala de um produto chinês manufaturado de exportação:

Jin Xing, “Estrela de Ouro” em chinês, é a primeira transexual oficialmente reconhecida pelo governo chinês. De pais coreanos, ainda garoto, recebe treino militar tornando-se coronel no Exército Popular de Libertação. Na jovem vida adulta vai para Nova York estudar Modern Dance (Murray Louis) e em seguida trabalha em Roma e em Bruxelas, voltando à China aos 26 anos. Hoje, como ressaltam todos os jornalistas, ela tem casa, carro, um pequeno hotel, um teatro, trabalha em filmes e isso a faz uma artista “bem sucedida”.

Seus trabalhos com a companhia Shanghai Jin Xing Dance Theatre trazem uma dança feita para o grande público: um dança com a vontade de ser forte, triste e de “expressar o que é de mais profundo no ser humano”; uma dança que é espetáculo, organizada dramaturgicamente com os elementos de luz, figurino, música e bailarinos; uma dança frontal em grupo com algum solista especial; uma dança de passos, organizados em um vocabulário entre o Ballet Clássico, o neo-clássico e a Modern Dance; uma dança temática, geralmente tocando algum assunto politicamente conservador através de um interesse no dualismo bem/mal; homem/mulher; beleza/feiura; Oriente/Ocidente, deixando sempre o lugar midiático de todos no mesmo lugar estereotipado de antes. Uma dança que vende, circula e aparece em grandes teatros, com direito à configuração de corpo de baile em meia lua, caminhada da coreógrafa para frente com os braços abertos e ovação: o kit completo do que a filosofia popular quebequense define tão bem na expressão “dança para a minha tia” – la danse ‘ma tante’.

Shangai Tango / Foto divulgação

Shangai Tango / Foto divulgação

Dez diferentes peças curtas sob música de Astor Piazzolla formam Shanghai Tango. Em uma delas, um chorus formado por uma dezena de bailarinos, homens e mulheres, vestidos em calças e camisas negras sem distinção de gênero, em uma estilização soft e urbana de uma roupa chinesa, seguram grandes leques vermelhos e dançam em grupo fazendo piruetas piquet, arabesques, contrações de Limon, poses com os leques, em um interessante toque de espacialidade militar. Em uma outra, um ambiente obscuro, semi-expressionista aludido por dois grandes spots de luz branca vazada, colocam em semi-penumbra as figuras de um homem e de uma mulher vestidos em negro. Do lado direito do palco, o homem é o músico, ou representa um músico. Ele segura um acordeon e dança como se acariciasse este instrumento. Do outro lado vemos Jin Xing. Enquanto rodopia em triplets e passos de valsa, segura e solta repetidas vezes a saia de seu vestido longo de tchu-tchu negro, leve e de pouco tule.

Explicitamente tudo em Shanghai Tango parece não propor transformação, somente repetição, mas o que nos desloca é a incongruência que foge do controle da artista. As dez peças, de certa forma distintas, cohabitam e nos abrem uma porta para os vários mundos vividos pela obra e pela artista. Mundos trans. O corpão masculinizado de Jin Xing, desloca o conto de fadas da sexy dama negra que sofre de tentação. Nesse sentido a valsa não é a mesma. O tchu-tchu é bem outro. A relação entre a figura masculina do músico, a feminilidade do acordeon e o corpo de muitas leituras de Jin Xing trazem uma coisa nova e inesperada àquele tango.

O que quero salientar é que as coisas com as quais ando me deparando não são o que aparentam ser. Por mais que a obra de Jin Xing proponha o que possivelmente é a dança comercial, reproduzindo clichês universais – como a enésima versão de Carmina Burana – por outro lado o contexto em que esse fenômeno vive traz uma escultura psíquica específica desta dança (ou de todo o resto) made in China. A incongruência é parte da beleza e da complicação política do que estou percebendo aqui e desloca os clichês que as danças de Jin Xing poderiam representar se não fossem manifestadas naquele corpo, naquela história.

Não entende-se bem se Jin Xing é uma artista de alma inquieta, um freakshow ou um ícone nacional de mercado tal qual o Cirque de Soleil para o Canadá. Tendo passado pelo notório militarismo chinês, diasporado nos States e na Europa (como muitos terceiro mundistas e alpinistas sociais), sendo considerada como “transexual” e ao mesmo tempo fazendo parte de uma relativa banalidade enquanto mulher casada e mãe de três filhos, Jin Xing é um branding de múltiplas identidades. Diva e celebridade por excelência e com aparições de todo tipo, ela é modelo, faz comerciais e outras participações na televisão – sua corporeidade e signo são publicidade.

Sendo Jin Xing, a primeira em tudo, primeira coreógrafa reconhecida na China contemporânea e atualmente participando de “entusiasmantes trocas com coreógrafos Ocidentais” (segundo a própria artista) parece que ela (e seu país como coadjuvante) é capaz de ir além do agradar e desagradar “Ocidente e Oriente” e ser appeal em voga.

Os parâmetros não são os que conhecemos.  Em 2002, a artista foi convidada pela Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo) de Berlim a criar uma obra onde trabalharia aspectos de gênero na movimentação (por ser transexual?). Jin Xing ficou perdida porque, segundo ela, “não tinha conhecimento sobre o tema”. O que a faz famosa no exterior e é bandeira de libertação para algumas culturas ocidentais baseadas no indivíduo, para ela não parece ser a primeira de suas preocupações panfletárias. Assim como outras pessoas que consideram ter nascido no corpo errado, Jin Xing, busca o seu corpo pertinente sem explicitá-la em sua obra.

Nesse sentido, por mais que as obras tenham tudo para reproduzir uma arte de status quo e mercado, os fios que tecem o fenômeno desta artista (vida, obra, percurso, desejos, manifestações) trazem elementos de drive de mudança, conquista, ascensão e possibilidade. A obra de Jin Xing é bizarramente comparável ao que a China contemporânea mostra a um estrangeiro sinovirgem (mas atento): muitas coisas ao mesmo tempo; muitas coisas que funcionam com uma eficiência invejável; muita construção… e algo que paralisa. Jin Xing não é uma coisa só. Shanghai Tango é também o nome da autobiografia de Jin Xing.

Será que a existência, dança e corpo de Jin Xing manifestam o fenômeno trans da China contemporânea? Essa paisagem appeal, que é branding multiidentitário em expansão e que flutua onde parece falso e dissimulado por não estar mais no corpo “errado”?

Sheila Ribeiro/dona orpheline é artista em dança contemporânea, novas mídias, publicidade e cinema. Interessada pelas dinâmicas de poder, trata tensões pós-coloniais, ilusão, deslocamento e desejo na comunicação contemporânea, trabalhando sempre em trânsito. Faz duo com seu marido, o antropólogo Massimo Canevacci Ribeiro. Colabora também com Benoît Lachambre, Laurent Goldring, Sophie Deraspe, Edgard Scandurra, entre outros.

Sheila Ribeiro/dona orpheline is working in Nanjing, China, for the next six months. She will report on her experiences and observations about the local culture as a correspondent for idança.

my name is…; I live in…; I am x years old; I am married; don’t believe in anything it’s all a lie… That’s how we start learning Mandarin at the “lesson 1st” on “How to Say Anything in Chinese” book.

In the present China, fake would be everything, except the opposite of trueness. Fake is neither a result of treason nor betrayal. A latent reality of the fake makes me want to introduce you – in my first Brazil-China correspondence for idança – the choreographer, dancer, mother, wife and ex-colonel, Jin Xing.

This artist is whom we are faced with when we arrive to China without knowing anything on the country’s Contemporary Dance production, research and creation. Countless newspapers, from different parts of the world, in English, French, Italian, Portuguese (I wouldn’t be aware if in Chinese) present her in the exact same way, which I jokingly reproduce here, like a scratched record, lazy press relations, or better yet, like someone talking about a Chinese manufactured exportation good:

Jin Xing, “Golden Star” in Chinese, is the first transsexual to be officially recognized by the Chinese government. Born of Korean parents, still at a young age he received military training, eventually becoming a colonel of the People’s Liberation Army. As a young adult, he went to New York City to study Modern Dance (Murray Louis) and soon after he worked in Rome and Brussels, returning to China at age 26. Nowadays, as every journalist highlights, she has a house, a car, a small hotel, a theater, works in movies and all this makes her a “very successful” artist.

Her works with the Shanghai Jin Xing Dance Theatre company bring a dance created for a large audience: a dance willing to be strong, sad and to “express what is deepest in the human being”; a dance that is spectacular, dramaturgically organized with elements of light, costumes, music and dancers; a frontal group dance with some special soloist; a dance of steps organized in a vocabulary revolving around Classic Ballet, neo-classic and Modern Dance; a thematic dance, usually touching upon some politically conservative subject through an interest in dualisms such as good/evil; man/woman; beauty/ugliness; East/West; sustaining stereotypes. A dance that sells, circulates and appears in big theaters, entitled to corps de ballet configured in half moon, the choreographer walking down the stage with open arms and ovation: the complete kit of what popularly in Quebec we would call “my aunt’s dance” – la danse ‘ma tante’.

Shangai Tango / Foto divulgação

Shangai Tango / Foto divulgação

Ten different short pieces under Astor Piazzolla’s music compose Shanghai Tango. In one of them, a chorus with dozens of dancers, men and women, dressed in black trousers and shirts without any gender distinction, in a soft and urban version of a Chinese outfit. They hold red fans and dance in group, doing piquet pirouettes, arabesques, Limon contractions, poses with the fans, in an interesting touch of military spatiality. In another piece, a dark, semi-expressionist environment, illuminated by two big white light spots, place the figures of a man and a woman dressed in black in half-light. On the right side of the stage, the man is the musician, or he represents the musician. He holds an accordion and dances as if he was caressing the instrument. On the other side we see Jin Xing. While she spins in triplets and waltz steps, she repeatedly holds and drops the skirt of her black, light with little tulle, tutu dress.

Explicitly, everything in Shanghai Tango. seems not to propose transformation, only repetition, but what brings us displacement is the incongruence that escapes the artist control. The ten pieces, somewhat distinct among them, coexist and open the door for the many worlds experienced by the work and the artist. Trans worlds. Jin Xing’s manly body dislocates the fairy tale of the sexy lady in black suffering from temptation. In this sense, the waltz is not the same. The tutu is something else. The relationship between the male figure of the musician, the femininity of the accordion and the Jin Xing’s multiple reading body brings something new and unexpected to that tango.

What I want to stress is that the things I’ve been faced with here are not what they seem to be. Even if Jin Xing’s work proposes what is possibly a commercial dance, reproducing universal clichés – like the nth version ofCarmina Burana– on the other hand, the context in which this phenomenon takes place brings a psychic sculpture specific to this dance (or of everything else) made in China. The incongruence is part of the beauty and the political complication I’m observing here and shifts the clichés that Jin Xing’s dance could represent if they weren’t expressed by that body, within that history.

We can’t quite understand whether Jin Xing is an artist with a restless soul, a freakshow or a national market icon like Cirque de Soleil is for Canada. Having gone through the known Chinese military, living “diaspora” in the States and Europe (like many third-worlders and social climbers), being considered a “transsexual” and at the same time being part of a kind of banality as a married woman and mother of three kids, Jin Xing is a branding of multiple identities. Diva and celebrity par excellence and with every kind of appearance, she is a model, she does commercials and other participations in television – her corporeality and sign are advertising.

Since Jin Xing is the first in everything, first Choreographer to be acknowledged in contemporary China and currently participating in “enthusiastic exchanges with Western choreographers” (according to the artist herself) it seems like she (and her country supporting her) is able to please and displease “West and East” and to have fashionable appeal.

The parameters are not the ones we are used to. In 2002, the artist was invited by the Haus der Kulturen der Welt (House of World Cultures) in Berlin to create a piece in which she would work gender aspects in movement (because she is a transsexual?). Jin Xing was lost, because according to her, “she didn’t have any knowledge on the subject”. That which makes her famous abroad – and is a slogan for liberation in some western cultures based on the individual – doesn’t seem to be the first of her activist preoccupations. Just like other people who consider they were born in the wrong body, Jin Xing seeks her adequate body without making the search evident in her work.

Thus, even if her pieces have everything to reproduce a status quo, commercial art, the threads that weave this artist’s phenomenon (life, work, path, desires, manifestations) bring elements that push for change, conquest, rise and possibility. Jin Xing’s work is bizarrely comparable to what China displays for a first time (but observant) foreign visitant: many things at the same time; many things that work with enviable efficiency; a lot of construction… and something that paralyses. Jin Xing is not only one thing. Shanghai Tango is also the title of Jin Xing’s biography.

I wonder if the existence, the dance and the body of Jin Xing express the trans phenomenon in contemporary China. This landscape appeal, which is an expanding multi-identity branding and floats where it seems fake and dissimulated in order to avoid being in the “wrong” body.

Sheila Ribeiro/dona orpheline is a contemporary dance, new medias, advertisement and cinema artist. Interested in power dynamics, she deals with issues of post-colonial tensions, illusion, displacement and desire, always working in transit. She forms a duo with her husband, anthropologist Massimo Canevacci Ribeiro. She also collaborates with Benoît Lachambre, Laurent Goldring, Sophie Deraspe, Edgard Scandurra, among others.