Coletivos: conceitos em jogo

A decisão em avizinhar o Coletivo T1 e o Quadra – pessoas e idéias foi uma provocação instigante, uma vez que sabemos que, quando falamos em coletivos, não há dados a priori ou de modelos que assegurem o discurso neste território das escolhas circunstanciais e da relação com o outro. Por isso, do que estamos mesmo falando quando nos referimos a coletivos em dança? São, de fato, alternativas ou soluções para antigos problemas, tais como interação e diferenças, no campo artístico e cultural da dança? Mais um modelo ou uma forma de compreender processos complexos, como aqueles que muitas das formas de dança propõem hoje? O modelo, como ambos coletivos vão dizer, é algo a ser seguido, mas os coletivos são uma escolha. O que isso implica ao artista da dança?

Como faço parte de ambos coletivos, procurei um método para propor este encontro: perguntas feitas a ambos por e-mail foram respondidas de formas diferentes. No Coletivo T1, cada um (4 artistas do coletivo) apresentou suas respostas. No Quadra, eles formularam um texto conjunto para cada pergunta. A partir disso, aspectos importantes do trabalho coletivo emergiram, traçando relações possíveis com a definição que damos a coletivo hoje em dança.

Primeiramente, as apresentações. O Coletivo T1 foi concebido por Adriana Grechi que convidou 14 pessoas para participarem, em 2006, de uma série de encontros: primeiro, a leitura de textos e livros que ocorreu em abril, maio e junho [1], depois, a criação de solos sobre o tema utopias chamado Bazar Utopias (www.bazarutopias.buzznet.com) e finalmente, a temporada de dois meses no Estúdio Move, com os solos de Camila Canto, Clara Rubim, Danilo Rabelo, Eros Valério, Graziela Mantoanelli, Karina Ka, Lua Tatit, Luciana Chieregati, Mara Guerrero, Maria Carolina Macari, Nirvana Marinho, Rogério Salatini e Tatiana Melitello (ver artigo neste site de Maíra Spanghero).

O Quadra – pessoas e idéias (www.quadrapessoaseideias.com.br) é definido pelos próprios participantes como “ambiente/grupo que, em 2006, reuniu 156.000 pessoas, aglomerou artistas de nove estados, quatro países, 284 alunos participantes do projeto (Núcleo de Dança Votorantim), nove escolas municipais em Votorantim e o público em geral da comunidade. Desorientados por Marcelo Proença e Rodrigo Chiba, conta com a participação direta dos profissionais artistas da dança Preta Ribeiro, Ariane Sampaio, Rafael Bricoli, Felipe Vian, Vera Almeida, Denis Oliveira, Thiago Alixandre, Fernanda Barros, Lidi Nascimento, o rio (que ainda está limpo), a Av. 31 de Março (com 20 carros por minuto), o calor (sempre bem vindo), o Corpo de Bombeiros (recém instalados) e outros tantos que não quiseram citar seus nomes”. Neste ano, teve as seguintes atividades: em maio, o “Pública Dança”, em diferentes meses os projetos “Ovo Frito – Jogo de dentro e de fora”, “Sala Pequena – espaço aconchegante para experiências diversas”, “Bagunça Organizada”, “Programa Vídeo-dança” e permanentemente o Projeto Núcleo de Dança Votorantim, nesta mesma cidade.

Vamos as questões. Partimos do que poderia ser um início: como definir trabalho em coletivo? Veja que perguntamos como definir, e não definam e as respostas fazem jus a esta necessidade em nos perguntamos como fazemos, como agimos, como nos posicionamos diante de um “conceito”.

Coletivo T1: “auto-organização, autonomia, colaboração, atenção, ajuste, adaptação, exercício, co-autoria, sem funções hierárquicas”. Ainda na fala deles: priorizar colaborações e repensar decisões. Também é um desafio que contabiliza o “cada um”, do mesmo modo que conhecer o outro exige reavaliações das nossas próprias posições. Ou seja, uma atitude, completaria, contemporânea porque existe no tempo da ação de se estar com o outro. Para isso, é exigido a estar consigo, com suas próprias escolhas e decisões, nem que seja para mudá-las de lugar. Auto-organizar é uma chave de ação e resposta a este tipo de provocação de convivência com o outro.

Quadra: “Compreende processos saudáveis, ou não, e que são relevantes para o todo”. É falso pensar em coletivismo, segundo eles, uma vez que as reações ao todo muitas vezes mantém a totalidade social. Portanto, o “coletivo é um estado ou pertencimento do qual você pode entrar ou sair, concordar ou discordar, sem que isso signifique a desistência do/no trabalho coletivo”. Como afirmam, um conceito que existe quando vivenciado, como todo processo exige. Teórico-prático, sem que possa haver um sem o outro. Um conceito vivo e vivenciável, do momento presente de se engajar.

Por que optar em trabalhar coletivamente? É factível considerar que ambos escolheram ou escolhem desenvolver seu trabalho artístico de maneira coletiva. No caso do Quadra, “tudo se deu pela necessidade de relacionamento”. Para o Coletivo T1 foi, intencionalmente, “uma maneira de exercitar convivência, de quebrar hierarquias, de promover processos em co-autoria”, reiterando novas formas de fazer dança hoje. Mara Guerrero chama atenção para os processos de co-autoria que se afirma como um interesse exequivel hoje em dança contemporânea, uma vez que as funções estão, há muito, borradas. Repare que compreende uma reação natural na qual novas necessidades exigem novas estratégias e vice-versa. Portanto, o coletivo “não é um modelo a ser seguido”, como afirma o Quadra, mas um “micro-laboratório” de um tipo de organização social que pode ou não ser artístico, como afirma Adriana Grechi. A convivência induz a tentativas de elaborar a criação de formas diferentes.

O conceito de TAZ – zona autônoma temporária de Hakim Bey [2] é uma referência para ambos coletivos, aliás, para muitos dos interessados na prática convergente de necessidades e interesses em arte. Convergente não quer dizer única nem dominante, mas uma preocupação política de arte como manifesto, como está presente no Coletivo T1, ou seja, uma nova forma de desenvolver pessoalmente e esteticamente, de organizar, com autonomia, idéias e colaborações o que, por sua vez, não nos isenta de questionamentos. Aliás, ainda do Coletivo T1, Graziela Montanelli devolve a pergunta: como unir formas de criar com autonomia e sustentabilidade?

Debruçados sobre o processo empírico, Quadra se concentra nas necessidades que surgem e adverte que não devemos vivenciar de modo arcaico tais práticas coletivas, participativas e colaborativas. Dito de outro modo, é iminente proporcionar “o desenvolvimento do entendimento corporal, de pensamentos em dança e das relações sociais”. Portanto, parece-nos que “ser TAZ” é estar no processo, e não somente implicado nele; é agir e interferir nele para, talvez, criar também novas formas de sustentabilidade.

Não pude não tocar no assunto mais cabeludo quando se junta muitas pessoas: e a hierarquia, como podemos repensar formas de liderança e engajamento que deêm conta de tais processos complexos de convivência e escolhas entre o indivíduo e o todo? O Quadra tem um posicionamento bem claro que é: “centralizar é descentralizar algo e, consequentemente, descentralizar é centralizar outro algo, e assim por diante”. Formar e informar é muito importante, segundo eles, na medida em que não devemos tornar ainda mais míopes as já distorcidas formas, inclusive públicas, de fazer dança. A chave: como fazer isso e se relacionar com esta questão.

No Coletivo T1, parto da afirmação de Grechi: “existem formas mais explícitas e outras mais sutis de hierarquia. No Coletivo T1, lidamos em geral com as mais sutis”. Em outras respostas de Mara, Graziela e também de Luciana Chieregati, reconhece-se a inevitabilidade das hierarquias. Afinal há maneiras e maneiras com as quais podemos nos posicionar diante da opinião do outro, nos colocando no lugar dele, reconhecendo as formas antiquadas de hierarquia que já estão incorporadas e agindo sobre as responsabilidade delegadas a você. As responsabilidades, de fato, são resultado da liberdade conquistada ou, por vezes, concecida, o que, por um lado, nos fazer sentir um pouco perdidos mas, por outro, exige um engajamento político. Há uma volatilidade ou maleabilidade, como afirma Graziela, em escutar o outro.

Hierarquia e dança é realmente um tema para refletir, segundo o pessoal do Quadra. Também é evidente que a hierarquia faz parte mas, novamente, é urgente compreender a maneira como entendemos e nos relacionamos com a hierarquia. O tema não está isolado da nossa forma de lidar com ele. Estar vulnerável, se sentir culpado ou tolerante faz parte do espaço hierárquico de lideranças que possam “não oprimir, não limitar o pensamento, não assentar idéias” e facilitarem o caminho. Segundo eles, as relações hierárquicas são, especialmente, “lugares transitórios, especialmente, não estagnadas”.

É, vale mesmo a pena pensar nisso: se existe hierarquia e é uma forma a partir da qual algo se organiza, como isso acontece? Não necessariamente de um único jeito – líder e liderados, pensador e pensados, quem idealiza e quem realiza, quem é o autor e quem são os usados, ou qualquer forma dicotômica e restritiva de relação. Há mais informações a serem consideradas. São da ordem da volatilidade ou da transitoriedade e devem ser consideradas no processo de decisão, de escolha ou do resultado. As estratégias são nada mais do que possibilidades de se lidar com as hierarquias. Um jogo.

A última questão impôs listas que servem como manifestos que nos fazem pensar sobre muitos aspectos da dança hoje. A pergunta foi “na dança que vocês fazem hoje, o que não cabe mais?”.

Para o Quadra, temos “vocábulos que melhor contam suas significações”, são eles:
“Coreógrafo – facilitador do pensamento e movimento de dança
Bailarino, dançarino – artista da dança
Coreografia – escrita do corpo
Diretor – organizador de idéias
Coordenador – problematizador
Professor – provocador
Espetáculo – idéias de dança
Cia de dança/ grupo de dança – coletivo, pessoas e idéias
Método de dança – processos colaborativos
Reprodução de passos – autonomia do movimento
Alunos – propositores
Profissional de dança – distanciamento dos conceitos de mercado e proximidade dos conceitos de entendimento de dança.
Projeto social (em dança) – distanciamento dos formatos de separabilidade da diversidade
Dança – convívio com idéias, coisas ou pessoas”

Para o Coletivo T1, não cabe mais:

“ouvir, porque eu sou o diretor e eu…; achar que algo está pronto… sempre pesquisar, se permitir pesquisar, se permitir a jogar coisas fora…” – Graziela Montanelli
“Nesse momento não tem sentido não aliar ao trabalho de criação questões ?relacionadas a condição que temos para trabalhar e nos mantermos como ?artístas. Buscar outras formas de organização (…) são prioridades, mesmo que, ao final do processo ?não respondam as expectativas; se isso acontecer, no próximo projeto ?tentam-se outras estratégias”. – Mara Guerrero

“Não cabe mais fazer dança como uma prática desconectada do ambiente em que está inserida. Não cabe mais fazer dança sem reflexão e posicionamente sobre o que significa fazer dança neste ambiente. Cada maneira específica de praticar dança carrega significados específicos e não cabe mais deixar de reconhecê-los”. – Adriana Grechi

Vale citar a última consideração do Quadra: “Todas estas definições, idéias e comprometimentos estão diretamente ligados e construídos sobre processos orgânicos e flexíveis, provavelmente eles não se darão mais desta maneira quando você estiver lendo estas palavras. Isto é importante para os processos de pensamento em Dança do Quadra – Pessoas e Idéias”.

Por fim, detecta-se que, neste território minado de circunstâncias e escolhas, a presença do outro faz toda diferença no posicionamento do artista. Com maior liberdade, responsável por certa sustentabilidade, provocador da realidade, hoje, atuar em dança contemporânea e estar engajado ao exercício da arte coletivamente nos força a repensar a própria noção de modelo, os nomes e definições. Com estratégias, as possibilidades e oportunidades tornam-se chances de posicionamento e de ser líder das suas idéias. Até porque autonomia não se dá, nem de graça.
Notas:

[1] Os principais livros do estudo foram “Provos – amsterdan e o nascimento da contracultura”, 2001 de Matteo Guarnaccia da Coleção Baderna da Editora Conrad do Brasil; “Amor Líquido”, 2004 de Zygmunt Bauman da Editora Zahar; “Assalto à cultura –
utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século”, 2005 de Stewart Home e “TAZ – zona autônoma temporária”, 2001 de Hakim Bey.

[2] BEY, Hakim. (2001). TAZ – zona autônoma temporária. Coleção Baderna. São Paulo; Conrad do Brasil.