Como criar um quebra-cabeças em movimento?

Quais os objetivos a serem alcançados e quais estratégias pedagógicas auxiliariam o ensino da dança contemporânea? Essa é uma pergunta possível de se fazer? Quero aproveitar este espaço de interação para abrir o debate sobre a educação para dança contemporânea. Ela existe? Pode existir? O propósito desse texto é puramente especulativo e não conclusivo. As idéias que aqui aparecerem devem ser lidas como hipóteses, sem pretensões afirmativas, mas como matéria para estimular a discussão.

A dança contemporânea é algo que pode ser ensinada? Se a resposta for sim, então se pode supor que existam parâmetros que a define e modos de fazer próprios que delimitam um campo de ação/pensamento onde seus interesses transitam. Esse campo de ação/pensamento, definido por parâmetros e modos de fazer específicos à dança contemporânea, seria então o espaço para o exercício e a experimentação pedagógica da educação para a dança contemporânea? Se a resposta for positiva, deveríamos então perguntar quais seriam esses parâmetros definidores e modos de fazer específicos que constituem o tal campo de interesse chamado dança contemporânea.

O pensamento filosófico contemporâneo vem, desde Hegel, problematizando a metafísica e seu procedimento metodológico de conhecimento e descrição, que consiste em separar em classes e categorias distintas e identificáveis as coisas do mundo. Sendo assim, dizer que existe algo chamado “dança contemporânea” só pode servir pra diminuir a complexidade dos acontecimentos que nascem e morrem ao mesmo tempo em que são classificados por tal denominação. Se não dá pra pensar a dança contemporânea como uma coleção de coisas que se constituem de maneira exatamente iguais, não seria possível também estabelecer um modo único para seu ensino. Ai está! Esse me parece ser um problema muito grave, uma vez que as instituições de ensino trabalham estipulando um programa de estudo, separado em diferentes disciplinas que atendem a conteúdos também previamente determinados. De que maneira um sistema como esse, tão compartimentado, linear e progressivo poderia então gerar conhecimento sobre algo mestiço, multidirecional, caótico e complexo?

Michael Archer, historiador da arte contemporânea, relaciona alguns parâmetros relativos ao fazer da arte contemporânea (no livro Arte Contemporânea: uma história concisa, traduzido para o português por Alexandre Krug e Valter Lellis Siqueira e editado pela Martins Fontes), são eles: uma desconcertante profusão de estilos, formas, práticas e programas; desmistificação da aura do objeto de arte; a utilização indiscriminada de qualquer matéria para sua composição; a não separação entre vida cotidiana e arte; o entendimento de que a obra de arte se organiza a partir de um conceito e o reconhecimento que o seu significado, e que muitas vezes ele não está nela e sim no contexto em que ela foi criada; a simpatia por temas como identidade e política e o questionamento da natureza da arte. Poderíamos aqui fazer um exercício de investigar quais os exemplos legados pela “História Oficial da Dança” que ilustrariam tais características.

Com relação à desmistificação da aura da obra de dança, o que incluiria o questionamento da genialidade de seu criador, o coreógrafo, temos o exemplo de Merce Cunningham (1919), que experimentou em Event deixar ao acaso do sorteio de dados a ordem em que às seqüências de movimentos iriam aparecendo em sua obra coreográfica. Não se trata aí do reconhecimento da excelência da composição elaborada pela genialidade do coreógrafo. Pouco importa neste caso. O processo aleatório organiza a dança. O que está em jogo é a relativização do papel de decisão que antes cabia ao coreógrafo. Outro exemplo que radicaliza ainda mais essa situação são as experimentações em termos de improvisação baseada na consciência do corpo e na livre associação que tiveram lugar na Judson Church e mais especificamente na formalização proposta por Steve Paxton, conhecida por contato improvisação onde todos que dançam são em tempo real intérpretes e criadores. A idéia de aleatório é aí levada às últimas conseqüências e na coreografia Trio A de Yvonne Rainer que pregava a idéia de Corpo Democrático, onde qualquer um, mesmo aqueles que não tivessem treinamento corporal de dança, poderia executar a seqüência de seus movimentos. Ainda Paxton em Walking Pieces, que desafia a idéia de obra de dança apresentando uma criação que não passava de uma seqüência de diferentes pessoas que cruzavam a dimensão do palco caminhando simplesmente.

Com relação à não separação entre vida e arte, os exemplos remontam a datas muito anteriores. Isadora Duncan (1878-1927) já propunha dançar sua vida; as experiências vivenciadas por artistas como Rudolf Laban (1879-1958) no Monte Verità é um modo diferente de exemplificar tal característica. Temas políticos também foram propostos por Duncan, por exemplo, quando ela dança a Marseillaise no contexto politicamente agitado pela guerra de 1914. A noção de dança conceitual iria se definir nos anos 60 nas artes plásticas, onde a obra procura se ocupar de uma única idéia, em sintonia com a idéia de minimalismo. Dali também se pode extrair exemplos da “História Oficial” muito anteriores, como o Balé Triádico de Oscar Schlemmer. Professor da escola de arte Bauhaus na Alemanha entre 1920 à 1929, criou uma cena chamada Espiral, em que um bailarino, vestindo um traje que simula o desenho de uma espiral (no centro de uma espiral desenhada como cenário no chão), dança simulando uma espiral com o movimento do corpo seguindo a linha desenhada no chão, sobre uma música que tenta reproduzir sonoramente o conceito de espiral. Ele segue até o fim da linha desenhada no chão, então a luz se apaga e a música cessa.

A discussão mais específica sobre a identidade me parece ser um pouco mais recente na dança. Alguns exemplos emblemáticos que me ocorrem é o de Pina Bausch, de modo mais etnográfico, e o Bill T. Jones quando expõem em dança as particularidades de ser negro, gay e portador do vírus do HIV, em seu contexto social na década de oitenta. Em compensação, na utilização de matérias de qualquer natureza podemos perceber um exercício inicial desde as experiências implementadas pelos Balés Russos de Diaghilev (1872-1929) com a interferência criativa de artistas como o poeta Jean Cocteau, os pintores Picasso, Matisse, músicos como Stravinski, Erik Satie. Uma das obras que bem ilustra esse aspecto é Ode, de 1928, do coreógrafo Léonide Massine. Essas são apenas algumas referências emblemáticas da experiência histórica da representação do corpo que dança elaborando aspectos da contemporaneidade. Por fim, todos os exemplos citados servem, no meu entender, para ilustrar a profusão de maneiras de fazer, formas e programas adotados pela dança contemporânea, bem como a relação direta de significado que elas estabelecem com seus diferentes contextos.

Este exercício nos leva a deduzir que a dança contemporânea não somente é uma coisa difícil de definir e identificar, pois reúne sob esse nome coisas muito diferentes, como também indica que não dá pra definir precisamente o momento exato quando ela ganha existência na experiência da comunidade de dança.

Isabel Marques, em Ensino da Dança Hoje editado pela Cortez (2001), diagnostica o ensino da dança e o universo da criação contemporânea afirmando: “ao contrário do que se pensaria, um forte movimento conservador tem invadido nos últimos anos escolas, universidades e academias de dança. O conceito de corpo, de arte, de tempo e de espaço, desenvolvido por muitas das instituições de ensino de dança no Brasil e no exterior são muitas vezes avessos às transformações radicais que a dança sofreu”. Ela chama atenção para o fato de que muitas das escolas formais de dança trabalham com a filosofia de ensino do enciclopedismo, do tecnicismo, do aluno tabula rasa, onde prevalece uma idéia de dança e de ensino de dança que remete ao século 18 (virtuosismo, espetáculo, aprimoramento técnico etc.).

Como ensinar o artista a elaborar no corpo sua questão? É importante que a questão escolhida tenha sintonia com o contexto em que se vive? Como ajudar o aluno de dança a criar uma coerência entre suas idéias de criação, o jeito que o corpo encontra pra apresentar essas idéias e a pertinência dessas questões no seu contexto? É importante resguardar limites na expressão do corpo para resultar num produto que seja facilmente reconhecível como dança? Pode-se fazer dança contemporânea utilizando procedimentos de composição tradicionais? O ensino do intérprete em dança contemporânea pode ser diferenciado daquele que quer ser criador? Tal ensino deve problematizar a relação do produto artístico e as regras do mercado de produção, apresentação e circulação das obras de dança?

Creio que a problemática do ensino para dança contemporânea é algo importante e necessário discutir. No Brasil existem algumas experiências tanto recentes quanto mais antigas. Algumas avançaram mais em uns aspectos, outras em outros, mas me parece que o número de experiências que tentam de algum modo propor uma pedagogia para a dança contemporânea ainda é muito pequeno em relação à necessidade de constituir um campo da arte de representação no corpo voltado para questões da contemporaneidade. Além de pesquisador, também sou professor de dança contemporânea, mas não sou especialista em educação da dança. Por esse motivo levanto todas essas questões, aproveitando desse espaço de interlocução, para que os colegas que se dedicam a pensar e propor pedagogia para o ensino da dança contemporânea possam debater, apresentar sua posição, propor ações conjuntas…Quem sabe. Enfim, revisar os detalhes da questão.